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Jacob Dolinger, especialista em Direito Internacional, falece aos 84 anos

Professor titular aposentado da UERJ, jurista dedicou anos ao estudo do Direito Internacional Privado.

28/10/2019

Faleceu, neste domingo, 27, aos 84 anos, o jurista Jacob Dolinger. Especialista em Direito Internacional, era professor titular aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde graduou-se em 1958 e tornou-se doutor em 1969.

Jacob Dolinger era judeu nascido em Antuérpia, na Bélgica, em 1935. Atuou por diversas vezes como professor visitante em universidades americanas e israelenses.

Dedicou sua vida ao estudo do Direito Internacional, sendo autor de diversas obras renomadas como os livros Direito Internacional Privado; Direito Internacional Privado: a Criança no Direito Internacional e Direito e Amor.

Dolinger foi professor do ministro do STF Luís Roberto Barroso no curso de Direito da UERJ. O ministro redigiu, em 2015, o prefácio do livro “Panorama do Direito Internacional Privado Atual e outros Temas Contemporâneos”, organizado por Carmen Tiburcio, Wagner Menezes e Raphael Vasconcelos em homenagem ao jurista.

Segundo Barroso, Jacob Dolinger era figura ímpar: “Com seu chapéu atípico e forte sotaque europeu, ele era um homem a um só tempo imponente e acolhedor, exigente e carinhoso, culto e desafetado. Formal e afetuoso. Um amigo leal e dedicado a todos que desfrutaram esse privilégio”.

Veja o prefácio na íntegra:

Prefácio

“UM DOS MAIORES QUE JÁ PASSARAM POR LÁ”

Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Conheci o Professor Jacob Dolinger em uma manhã de março de 1980. Eu estava no último ano da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para ser franco, já não alimentava grandes expectativas àquela altura do curso. Ademais, a disciplina que ele ensinava – direito internacional privado – era uma matéria muito específica, que atraía a atenção de poucos interessados nas suas intrincadas questões. Tudo sugeria um curso sem grandes emoções, mera etapa inevitável para a conclusão da Faculdade e obtenção do diploma. Pois bem: esta não foi a primeira vez que a minha bola de cristal foi incapaz de acertar o que viria pela minha frente. Não apenas tivemos um curso diferenciadamente bom, como aquele encontro não marcado foi decisivo na definição dos rumos da minha vida pessoal, profissional e acadêmica. Por muitas razões.

Jacob Dolinger não era uma figura comum. Com seu chapéu atípico e forte sotaque europeu, ele era um homem a um só tempo imponente e acolhedor, exigente e carinhoso, culto e desafetado. Formal e afetuoso. Um amigo leal e dedicado a todos que desfrutaram esse privilégio. Mas, sobretudo, era um professor extraordinário. Sua matéria, como regra, mobilizava apenas os que tinham vocação específica. Porém, Jacob Dolinger conseguia produzir nos alunos uma espécie de excitação intelectual, potencializada por exemplos que davam um sentido de importância e centralidade ao que ensinava. Parecia não haver salvação para quem não dominasse conceitos como ordem pública internacional, direitos adquiridos no exterior ou fugidias regras de conexão. Uma coisa me chamava a atenção e influenciou de modo relevante a minha própria vida acadêmica: mesmo após haver se tornado professor titular, reconhecido nacional e internacionalmente, Jacob Dolinger continuo a estudar e a produzir intensa e prolificamente, vindo a elaborar os preciosos volumes que compõem o seu curso de direito internacional privado, o mais completo existente em língua portuguesa.

Para minha sorte, a vida nos aproximou logo após nos conhecermos. Ao se tornar diretor do Centro de Ciências Sociais da Universidade, Dolinger formou um grupo de reflexão, reunindo alunos que se encontravam em diferentes estágios da Faculdade para troca de ideias e apresentação de propostas. Tive o prazer de participar desses encontros. Eram reuniões memoráveis, conduzidas por um homem de espírito aberto, disposição para ouvir e senso de humor. Nosso querido professor tinha um misto de idealismo e boa-fé, aliados a uma certa falta de malícia, que produzia resultados variáveis. Às vezes, as portas se abriam escancaradas, cativadas por aquele espírito franco e objetivo. Outras vezes, se fechavam bruscamente, movidas por uma certa mediocridade que ainda não vencemos inteiramente. Uma espécie de ressentimento contra quem deseja pensar fora da caixa e romper com o marasmo de sempre. Mesmo assim, jamais o vi amargo ou desanimado, mas sempre em busca de outras portas para bater.

Mais do que um professor exemplar, Jacob Dolinger era um descobridor de talentos e um fomentador de novas vocações. Após a minha formatura, no final de 1980, e por muitos anos que se seguiram, Jacob Dolinger formou um grupo de estudos que se reunia em seu escritório às 6as feiras, na hora do almoço. Entre outros, lá sempre estavam Carmen Tiburcio, Vera Jatahy, Nádia Araújo, Lauro Gama e Marilda Rosado. Discutíamos desde a criação de um programa de mestrado (que ainda não havia na UERJ) até textos dos principais autores internacionalistas. Por um longo período, debatemos os originais do Manual de Direito Internacional Privado, que Jacob Dolinger escrevia à época, e que viria a se tornar uma obra clássica. Lembro-me com saudades dos debates acalorados, bem como do enorme Big Bob com Ovomaltine que a juventude me permitia consumir, sem medo e sem culpa, naqueles anos dourados.

Foi nesses encontros que o Professor Jacob Dolinger insistia regularmente que eu deveria fazer mestrado nos Estados Unidos. Isso não era tão comum naquela época como depois veio a ser. A persistência dele, devo reconhecer, foi determinante na minha decisão de enviar applications para as mais afamadas universidades americanas, que ele mesmo me apontou. Tive a ventura de ser admitido nas principais delas e de estudar na número um do ranking, que era – e continua a ser – a Yale Law School. Nenhuma experiência acadêmica se compara àquela temporada de estudos e aprendizado geral sobre a vida. Abro aqui um parêntese que bem revela a personalidade do nosso homenageado. Certo dia, às vésperas de enviar os materiais que acompanhariam os applications, fui até o seu escritório para revermos juntos o que estava sendo encaminhado. Com interesse e paciência, ele percorria a papelada, fazendo alguma sugestão aqui e ali. A certa altura fiquei sabendo que ele teria um julgamento no Tribunal de Justiça naquela tarde, para o qual certamente precisava preparar-se. Prontamente ofereci-me para voltar outro dia. A resposta dele nunca se perdeu da minha memória: “Não se preocupe. Isso que estamos fazendo é mais importante”.

Esta foi só uma das muitas atenções que recebi desse grande mestre. Antes dela, passou-se uma estória que já faz parte da história da UERJ. Durante os meus anos de estudante, tive uma intensa militância no movimento estudantil, que fazia a resistência democrática ao regime militar. Já não eram os anos de chumbo, mas ainda eram tempos difíceis. Após a minha formatura, fui convidado pelo professor titular de direito constitucional para dar algumas aulas e assim começar minha iniciação acadêmica. Pouco após, porém, no segundo semestre de 1981 – portanto, meses após o atentado do Riocentro – o referido professor me comunicou que eu havia sofrido um veto dos organismos de segurança, e não poderia continuar a dar aulas. Foi um momento de profunda tristeza para mim.

Foi o Professor Jacob Dolinger quem pessoalmente se empenhou em superar este veto. Vencendo a minha própria descrença, e com a ajuda de outros professores que ele próprio contactou, a proibição foi levantada. Mas eu não poderia ensinar direito constitucional. E foi assim que a convite de Jacob Dolinger migrei para o direito internacional privado, como seu assistente, tendo dado aula dessa disciplina de 1982 a 1987. Somente com a redemocratização e a abertura de concurso para direito constitucional, voltei às minhas origens. Mas fiz excelente proveito do estudo sistemático do direito internacional privado que empreendi ao longo daqueles anos. Tempos depois, em 1995, quando submeti minha tese de concurso de titularidade na UERJ, comecei o texto com um capítulo dedicado ao direito constitucional internacional. Uma sutil homenagem ao professor que por mais de uma vez fora decisivo na minha formação acadêmica. É uma versão atualizada desse texto que publico nesta obra.

No ano de 2000, fui assistir ao curso que Jacob Dolinger ministrou na Academia de Direito Internacional da Haia, um conjunto de aulas primorosas sobre a evolução dos princípios para a resolução de conflitos em matéria de contratos e responsabilidade civil. Ali, ao lado de minha amiga de toda a vida acadêmica, Carmen Tiburcio, sua principal discípula, assistimos ao memorável desempenho do nosso professor. Ao final das aulas, meia centena de jovens de todo o mundo aplaudiram-no de pé, reverenciando um dos maiores que já passaram por lá. Foi dos momentos de maior emoção acadêmica que me lembro de ter testemunhado.

O livro que se segue reúne um conjunto abrangente de escritos de ex-alunos, amigos e admiradores do Professor Jacob Dolinger. São textos que revelam a amplitude de sua influência intelectual nos temas mais diversos associados ao direito internacional, como imunidade jurisdicional dos Estados, condição jurídica dos estrangeiros, homologação de sentenças proferidas em outras jurisdições, competência internacional, relações entre o direito internacional e o direito interno, direito comparado e cosmopolitismo. Destaco, especificamente, a questão da arbitragem, doméstica e internacional, tema no qual Jacob Dolinger foi um dos pioneiros no Brasil. Fui testemunha presencial de um concorrido seminário em São Paulo, no qual ele defendeu a regulamentação do tema e a expansão do seu uso, muitos antes da promulgação da lei específica. Enfim, tem-se aqui uma boa síntese de diversas matérias às quais ele dedicou sua vida acadêmica.

 Com a aposentadoria e posterior ida para Israel, deixei de encontrar Jacob Dolinger nos corredores da Faculdade ou nos almoços que marcávamos vez por outra, quando a saudade apertava. Ainda assim, continuamos a nos falar, aqui e ali, por email. Uma correspondência mais pessoal do que acadêmica. Mas, independente de contatos formais, carrego no espírito e no coração a luz de uma relação acadêmica e de amizade que iluminou o meu caminho. Jacob Dolinger influenciou toda uma geração, tocou de maneira profunda a vida de muitas pessoas e certamente deixou o mundo melhor. Cumprimento Rebeca, Iona e Miriam (que era luminosa presença no escritório do pai naquele tempo do Big Bob e do Ovomaltine!) pela felicidade da iniciativa, e agradeço o privilégio de ter podido prefaciar esta obra.

                                                                                   Brasília, 8 de janeiro de 2015.

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