Migalhas Quentes

Novela em Migalhas, a revelação

Descubra detalhes sobre a 5ª edição da Novela.

4/10/2018

Obrigado, migalheiro, por ter vindo até aqui, acompanhando conosco mais uma Novela em Migalhas. É sua companhia que confere sentido a nossa caminhada. 

Assim como as outras novelas, adaptações de clássicos da literatura, esta novela que acabamos de acompanhar foi adaptada do romance Helena, de Machado de Assis, publicado originalmente em capítulos, a partir de 6 de agosto de 1876, no jornal carioca O Globo


Primeiro Capítulo de Helena.  (clique aqui)
Fonte: O Globo, 1876 

Foi escrita, pois, à moda dos “folhetins”, a fim de proporcionar entretenimento às famílias leitoras do jornal. 

Na intenção de manter certo suspense, e evitar que o leitor fizesse associação imediata com a trama original, tomamos a liberdade de trocar os nomes dos personagens. Nessa senda, o Conselheiro Vale passou a ser Conselheiro Alcântara; o interesseiro Dr. Camargo, foi chamado Dr. Correa; sua frívola filha, de Eugênia passou a Laura; sua esposa, que pouco aparece na história, de D. Tomásia passou a D. Tônia; o diligente Padre Melchior, fez-se Padre Eustáquio; o jovem filho do Conselheiro, antes Estácio, foi rebatizado de Vinícius; sua tia, de D. Úrsula tornou-se D. Constança; o amigo de Estácio, originalmente Mendonça, passou a ser Paiva; por fim, a protagonista passou de Helena a Isabel, enquanto seus progenitores passaram de Salvador e Ângela da Soledade a Cícero e Mariana Lopes.

O romantismo em Helena, do grande prócere do Realismo brasileiro, Machado de Assis

Ao lado dos romances A mão e a luva e Ressurreição, Helena pertence à primeira fase da produção literária do grande escritor carioca, período apontado como de experimentação, ainda carregado de traços do Romantismo. 

Em Helena é fácil perceber a aproximação com a escola romântica pela própria temática, o amor impossível, e pelo desfecho, precipitado pela morte trágica de um dos integrantes do par romântico. Não é menos verdade, contudo, que em razão do apurado senso de observação do autor e de sua erudição, o romance também permite entrever leitura crítica da incipiente sociedade urbana carioca do Segundo Império, antecipando assim características de seus trabalhos futuros, especialmente alguns de seus contos – O espelho, Teoria do medalhão, A igreja do diabo –, a impagável novela O alienista, e seus dois grandes romances, o irônico Memórias Póstumas de Brás Cubas e o monumental Dom Casmurro, trabalhos que lhe destinariam à posteridade. 

A protagonista feminina

A protagonista Helena não é personagem plana, simplesmente doce e cordata, satisfeita com o lugar limitado reservado à época à mulher brasileira. Helena é, antes de tudo, crítica ao arquétipo da personagem feminina idealizada pelo Romantismo, pois embora o autor lhe atribua um rol de características que de tão extenso deixa de ser crível, e que em uma leitura apressada lembra a lista de predicados comum à heroína romântica, um olhar mais atento permite entrever que tal caracterização serve, antes, à construção da dúvida sobre o caráter de Helena na cabeça daqueles que com ela convivem. Se é capaz de agradar a todos, não é apenas dócil, podendo ser também capaz de dissimular – impossível não enxergar em Helena traços que em Capitu, alguns anos mais tarde, serão marcantes. 

Note o próprio leitor o excerto do capítulo IV (numeração do original, não de nossa adaptação) 

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com igual interesse e gosto, frívola com os frívolos, grave com os que o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de virtudes domésticas e maneiras elegantes. Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da família. Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava correntemente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e resignação, — não humilde, mas digna, — conseguia polir os ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis.

A dúvida ganha corpo ao longo do enredo: Helena finge não saber montar, mas em sua primeira lição demonstra prática em cavalgadas; muito antes de cometer a grande transgressão de visitar um homem às escondidas, já se havia lançado a leituras não autorizadas “a moças solteiras”, mostrando que ultrapassa, muitas vezes, limites sociais. 

O papel da Igreja

A Igreja Católica é representada na obra pelo personagem do Padre Melchior, apresentado como “guia espiritual da família”, homem bondoso, mas sobretudo, homem sensato, capaz de reunir características que evitam os extremos: 

Tinha sessenta anos o padre; era homem de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave, austero sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecera a família do conselheiro algum tempo depois do consórcio deste. (...) Morando na vizinhança daquela família, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se as obrigações eclesiásticas não o chamavam a outro lugar, não se arredava de Andaraí, sítio de repouso após trabalhosa mocidade.

Aqui também ao mesmo tempo em que parece apenas seguir a receita romântica, Machado de Assis vai além, e permite ao leitor vislumbrar de maneira crítica a grande influência aberta à Igreja nas famílias brasileiras de então. No enredo de Helena, a atuação do Padre Melchior é preponderante para o seu desfecho trágico. Se leitura superficial mostra-o como consolador, acolhedor – o que talvez no plano individual até ocorra –, uma aproximação crítica permite entrever o papel social por ele desempenhado, papel ideológico em que prepondera o aspecto conservador, na medida em que não permite aos personagens questionarem o status quo, levando-os a abafarem a verdade factual, trabalhosa, em nome da verdade formal, já convencionada. 

Assim, mesmo depois de revelada a verdadeira paternidade de Helena, quando o maior obstáculo ao amor dos jovens estaria superado, Padre Melchior continua a trabalhar intensa e incessantemente para que tanto Estácio como Helena encontrem outros pares, mesmo que à custa da felicidade – e da vida, como acaba ocorrendo –, em nome das aparências, do que é mais fácil, conhecido, das leis sociais. Vejamos no próprio texto: 

Estácio esteve silencioso alguns instantes. 

— Mas, posso eu, à vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena um título que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã; é absolutamente estranha à nossa família; o título que nos ligava, desaparece. Por que motivo continuaríamos nós uma falsificação... 

— De seu pai? atalhou Melchior. 

— Padre-mestre! 

— Aquele homem falou verdade; mas nem a lei nem a Igreja se contentam com essa simples verdade. Em oposição a ela, há a declaração derradeira de um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e lágrimas; a eclesiástica não extingue, com um traço de pena, a afirmação póstuma. Demais, não se espera que esse homem reproduza perante ninguém as declarações de há pouco; só o fará quando perder a última esperança. É evidente que ele nada quer alterar do que se pai estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha. Sente-se disposto a fazer o que ele recusa? 

Estácio não respondeu; tinham entrado na chácara, e caminhavam lentamente na direção da casa. Melchior deteve-o. 

— Estácio! disse o padre, depois de olhar para ele um instante. Compreendo, quisera despojar Helena do título que seu pai lhe deixou, para lhe dar outro, e ligá-la à sua família por diferente vínculo... 

Estácio fez um gesto como protestando. 

— Esquece duas coisas graves: o escândalo e o casamento de um e outro; já se não pertence, nem ela se pertence a si. Vamos lá; seja homem. 

(...)

 

— Nada podemos fazer já agora, disse o padre; provocaríamos um escândalo sem esperança do resultado.

A tal ponto chega a atuação do padre pela conservação das leis sociais, que chega a aceitar, de antemão, a possibilidade da morte da jovem:

O capelão obedecia docilmente. Ao pé dela, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, porque ele aceitava sem murmúrio os decretos da vontade divina; depois, porque não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a morte. Em todo caso, consolava-a.

A loucura como expressão dos sentimentos verdadeiros 

Se na sociedade não há espaço para outra verdade que não a formal – a narrativa de Salvador não teve forças para desconstituir a declaração testamentária do Conselheiro, não tem forças tampouco para vencer os preconceitos (“o escândalo”) –, então não há espaço para os sentimentos verdadeiros, caso não sejam congruentes com as leis sociais. 

Nesse contexto, em continuação ao diálogo acima, Padre Melchior, ao notar que Estácio encontra-se “tentado” a viver o amor que sente por Helena, recomenda:

Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio, e a situação de ontem será a mesma de amanhã.

Sepultar significa esconder, soterrar, tirar do alcance da vista, mas não deixar de existir. Assim, em recurso estilístico puramente romântico, Helena vai adequar-se às convenções sociais conscientemente, mas não nos momentos em que o autocontrole está relaxado. Em outras palavras, o Romantismo vai trabalhar literariamente a loucura como possibilidade de expressão de sentimentos não aceitos socialmente. Para as emoções rejeitadas pelas convenções, criava-se o delírio. E assim chega a acontecer em Helena:

Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas horas houve de delírio, durante o qual dois nomes volviam frequentemente aos lábios da enferma, — o de Estácio e o do pai. Nas horas da razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que ela queria ver junto de si. 

A diferença é que em Machado de Assis esse delírio não vem acomodar os personagens, trazer sossego ou possibilidade de redenção. Tal é o Realismo, a agudeza de observação que perpassa toda a obra que o delírio de Helena em vez de marcar o deslocamento dos enamorados, destaca, antes de tudo, o descompasso existente na sociedade. 

Ainda assim, o epílogo é trágico, não escapa ao ideário romântico, e a nós, leitores do século XXI, só resta lamentar e perguntar porque razão não houve espaço para tão puro amor. Mas a resposta já nos havia dado o grande escritor, na epígrafe aposta à obra:

“(...) cada obra pertence a seu tempo”.

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