"Quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado". O verso da música de Paulinho da Viola, “Dança da Solidão”, pontuou as palestras, debates, apresentações de estudantes e o espetáculo do grupo Afoxé Filhos de Gandhi durante o seminário “Intervenções na Zona Portuária: um novo olhar”.
Iniciativa da Justiça Federal do Rio de Janeiro, o evento aconteceu no dia 21 de agosto, das 10h30 às 19h30, no auditório do Fórum Federal da Avenida Venezuela, sendo patrocinado pelo Banco do Brasil e recebendo apoio da Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo e do Centro Cultural Justiça Federal.
O diretor do Foro, juiz Federal Osair Victor de Oliveira Júnior, presidiu a abertura dos trabalhos, acompanhado pelos desembargadores Federais Letícia Mello e Sérgio Feltrin; pela coordenadora do evento, juíza Federal Adriana Cruz; e pela presidente da Organização Remanescentes de Tia Ciata, Gracy Mary Moreira. Todos destacaram a importância da iniciativa, o papel dos africanos escravizados e seus descendentes na construção da cidade e do país, a necessidade de combate ao racismo e o apoio a ações de integração e promoção da igualdade, entre outras questões.
Gracy Mary lembrou que, nas comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro, tia Ciata, matriarca do samba, foi reconhecida como uma das oito mulheres heroínas da cidade. Ela chegou ao Rio pelo Cais do Valongo e, com outras baianas, trabalhava e vivia na área da Pedra do Sal, considerada por seus descendentes um local sagrado. A juíza Adriana Cruz lembrou os 130 anos da Lei Áurea e declarou que, à época, também os seus ancestrais “estavam sob ferros”. A magistrada citou o livro “Racismo estrutural”, de Sílvio Almeida, ressaltando que, do mesmo modo que a sociedade reproduz as desigualdades raciais, também pode romper esse paradigma e se transformar, reiterando também que é preciso dar visibilidade à questão sob todos os aspectos.
Desumanização
Na primeira mesa, que abordou o tema “Igualdade, propriedade e cidade”, com mediação da desembargadora Federal Letícia Mello, a juíza Federal Jane Reis abordou os conceitos de igualdade e Justiça de transição e afirmou que a cidade manifesta e oculta o passado. O procurador da República Julio Araujo citou o conceito de colonialidade, destacando que, embora o país não seja mais uma colônia, o pensamento colonizado está presente na nossa realidade até hoje. Entre outros desdobramentos dessa mentalidade, destacou a desumanização da população negra, a desvalorização do trabalho manual e a hierarquização nas políticas de preservação do patrimônio.
Ao final do primeiro ciclo de debates, o procurador da República Jaime Mitropoulos lembrou que o mercado de escravos no Brasil cresceu substancialmente com a chegada da família real à colônia e o Rio se consolidou como a principal entrada de escravos nas Américas. Mitropoulos, que recentemente participou de uma audiência pública no MPF sobre a situação do Cais do Valongo, porta de entrada dos escravizados no país, analisou os deslocamentos forçados de pessoas desde o século XIX e, mais recentemente, as expulsões das populações que professam religiões de matrizes africanas de suas comunidades.
Crime contra a humanidade
“A Pequena África: passado, presente e os novos desafios” foi o tema da segunda mesa, mediada pela juíza Federal Adriana Cruz. A diretora do IPN, Instituto dos Pretos Novos, Merced Guimarães, contou como descobriu o cemitério dos pretos novos ao fazer a reforma de um imóvel e falou sobre a fundação e funcionamento da instituição. Ela disse que o deslocamento forçado, a morte de crianças e jovens e a forma desrespeitosa de tratar os corpos configuram crime contra a humanidade. O historiador Cláudio Honorato explicou como a modernização urbana expulsou as populações tradicionais do centro da cidade e que, apesar de todas as políticas embranquecedoras e disciplinadoras, a população da Pequena África resiste na cidade remodelada, na Estiva e no Cais do Porto.
O presidente da Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal, Damião Braga, revelou que o território simbólico do quilombo se estende da Praça Mauá ao Estácio, abrangendo, inclusive, a área onde está instalado o Fórum da Justiça Federal. Damião também relatou as ações para obter o reconhecimento do quilombo pelo Estado Brasileiro e os processos judiciais para a regularização e titulação do território.
Esperança e Justiça
O fotógrafo e antropólogo Milton Guran, consultor do IPHAN para elaboração do dossiê de candidatura do Sítio Arqueológico Cais do Valongo a Patrimônio Mundial, começou sua palestra afirmando que o “caminho da esperança passa pela Justiça”. Ele citou o conceito de “sítio de memória sensível”, desenvolvido pela historiadora Mônica Lima. O termo representa um fato que a humanidade não quer que se repita e se aplica ao Cais do Valongo, que está no mesmo patamar de horror que Hiroshima e Nagasaki e o campo de concentração de Auschwitz. Guran também explicou porque é preciso instalar o museu do Valongo no prédio Docas Pedro II. Além de atender a uma exigência da Unesco, o espaço tem valor simbólico para a região e a cidade, pois foi projetado pelo primeiro engenheiro negro do país, André Rebouças, tendo sido ainda a primeira edificação construída sem mão de obra escrava.
Na roda de conversa, o tema foi “inter-relação entre o direito penal e a formação da sociedade brasileira: o controle das manifestações culturais no início do século XX”, com mediação da juíza federal Valéria Caldi. A historiadora Mônica Lima elencou as perseguições infligidas aos capoeiristas, sambistas e adeptos das religiões de matrizes africanas desde o século XIX, parte de um projeto de branqueamento racial e mental. O doutorando pela UERJ em Direito Penal, João Guilherme Leal Roorda, falou sobre sua pesquisa nos processos relativos a “vadiagem” do início do século passado, a falta de definição clara do termo e a política de criminalização da pobreza.
Em seguida, professores e alunos que estudam e moram na zona portuária ocuparam o palco com apresentações inspiradas na herança cultural africana e abordaram as perspectivas para o grupo e a região. Os estudantes do CAIC Tiradentes contaram como produziram os textos exibidos em móbiles e as fotos tiradas no Campo de Santana, mostradas em um monitor, ambos instalados no hall do auditório. Também deram depoimentos sobre como são recebidos em certos lugares públicos e relataram situações de discriminação racial. Os alunos do Colégio Estadual Reverendo Hugh Clarence Tucker apresentaram um número de dança e um rap, crítico e irônico, de autoria do jovem Nícolas Malthez. As duas escolas já haviam participado do programa educativo da Justiça Federal, “Conhecendo a SJRJ”. Quinze livros editados e doados pela Fundação Palmares foram sorteados entre os participantes do evento.
Sobrevivência e força
O presidente do TRF da 2ª região, desembargador Federal André Fontes, encerrou as atividades, enfatizando a herança africana e a força dos sobreviventes, que, apesar de sofrimentos atrozes, construíram o país em termos econômicos, culturais, religiosos, sociais e políticos. “Temos muito orgulho disso”, ressaltou. Em seguida, o grupo cultural da região Afoxé Filhos de Gandhi apresentou-se para o público, que acompanhou várias músicas e aplaudiu músicos e dançarinos.
Além do público inscrito e do grupo de estudantes das escolas da Região Portuária, o diretor do Foro, juiz Federal Osair Victor, a diretora da Secretaria Geral, Luciene Dau Miguel, os diretores de subsecretarias Luciana Barão, Martha Kinach, Cláudia Rangel, Cláudia Lima e Daniel Uchôa e servidores do Núcleo de Comunicação, Divisão de Segurança e Núcleo de Gestão Organizacional e outros acompanharam todo o evento. O evento contou também com a presença do cantor e compositor Paulinho da Viola, que tem ligações históricas, culturais e afetivas com a zona Portuária e a Justiça Federal do Rio de Janeiro.