Executando a Lei de Execução
Integrantes de facções criminosas dizem que suas ações tem o escopo apenas de ver cumprida a lei (!)
Método usado por terroristas, os bandidos libertaram o auxiliar Calado horas depois, ainda na noite de sábado, nas proximidades da TV, com a incumbência de que falasse (logo ele, Calado) para a emissora sua exigência : a Globo deveria exibir um DVD com imagens nas quais um suposto integrante do PCC lê uma carta de repúdio ao sistema prisional paulista.
A emissora, respaldando-se em consultas a órgãos internacionais, reproduziu a fita, conforme exigiam os bandidos. Portanova foi solto ontem. (veja ao final a transcrição)
Se é assim...
Marcola afirmou que aos presos não têm sido fornecido nem produtos básicos para a sobrevivência. Após o Deputado Paulo Pimenta, relator da reunião, indagar "Se ele (qualquer preso) não entrar para a organização ele tem dificuldade de sobreviver", Marcola respondeu : "Não perante o preso, mas materialmente, porque o Estado não dá".
O condenado trouxe à baila questões sobre saúde pública, reclamou da falta de preocupação com a integridade física dos presos e expôs o que o PCC tem feito para melhorar a condição de vida do condenado dentro da prisão (!).
Se tudo o que foi relatado pelo líder do PCC for fato, de acordo com a Lei de Execução Penal n° 7.210, de 11 de julho de 1984, muito não poderia ocorrer. Os artigos 10 e 11 da lei assim preceituam :
Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.
Art. 11. A assistência será:
I - material;
II - à saúde;
III -jurídica;
IV - educacional;
V - social;
VI - religiosa.
Um ex-diretor* de penitenciárias do Estado de São Paulo, em entrevista ao portal Migalhas, contradiz o líder da facção criminosa e assegura que a lei é, sim, cumprida.
"É dado por ocasião da entrada na penitenciária um kit com roupas necessárias. Ele passa por uma profilaxia no setor de saúde e é dado a ele itens de higiene pessoal."
Ainda segundo esse ex-diretor, "todos esses produtos são fornecidos de 6 em 6 meses".
Ele complementa dizendo que esse processo de afiliação ao grupo criminal ocorre não por necessidade ou falta de material e sim por falta de escolha:
"A filiação serve para a própria sobrevivência do preso, ou seja, ou ele se afila ou ele morre. Não tem escolha. Se contrariar ele morre."
Mas voltando ao depoimento de Marcola, que mesmo sigiloso foi publicado em vários jornais, o bandido diz que graças ao PCC foi extinto o tráfico e o uso de crack, droga que, segundo ele (vejam só onde chegamos!), "degrada o ser humano, diferentemente de outras como a maconha e a cocaína" que são classificadas como "mais leves".
Marcola teria também proibido o homossexualismo, que, em seu atual (sim, deve mudar como o vento muda a biruta) moralismo, "é considerado uma afronta à dignidade humana". Ai, ai, ai...
Além disso, Marcola conta que "foi abolido o espancamento, tanto dos presos quanto de parte da polícia". Porém, segundo o condenado, a prática não foi totalmente encerrada :
"Em Presidente Vesceslau I e Taubaté ainda ocorre. Chegou presos de lá esta semana dizendo que eles estão comendo comida com vidro, vingança mesmo do Estado ou dos maus funcionários, eu não sei, e espancamento. Tem vários com braços quebrados...".
Ele conta ainda que as decisões do PCC são tomadas por meio de um consenso - a idéia é passada a todos os presídios e se a maioria decidir pela aceitação, assim será - com essas medidas há uma melhoria na saúde pública dos presos, nas condições em que eles vivem e conseqüentemente uma diminuição nas doenças.
O ex-diretor assevera que a informação não procede e diz que as declarações têm o intuito de inverter os papéis; mostrar um Marcola vítima de um regime brutal e a sociedade como culpada pelos maus tratos sofridos pelos presos.
Com efeito, na Lei de Execução Penal, na Seção II, Art.40, é posto que :
Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
Reservando-se, porém, na Subseção III, no Art. 53, as seguintes sanções :
Art. 53. Constituem sanções disciplinares:
I - advertência verbal;
II - repreensão;
III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);
IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei.
V - inclusão no regime disciplinar diferenciado. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
Argumentam os leigos que a lei de Execuções Penais prevê coisas absurdas, que só na Suíça seriam possíveis. Enfrentando o tema, Francisco de Assis Toledo ensina :
"A reforma, como toda reforma inovadora, quer modificar o que está errado; volta-se para o futuro; não pretende remendar ou camuflar os males do passado; por isso constitui, em boa parte, um projeto de modificação da realidade que se tem por insuportável, apesar de brasileira (sem qualquer orgulho). Comporta eventuais correções de falhas, não o retrocesso, já que o curso da história felizmente não enseja esse fenômeno mecânico."
De fato, a culpa não está na lei, que nem de longe é bondosa com os presos. A culpa está na falta de efetivo cumprimento da pena que lhes são impostas.
Ademais, existem regras, dentro do Estado de Direito, para se exigir o cumprimento da Lei. E, neste sentido, incluem-se mecanismos aos presos para exigir do Estado o cumprimento da Lei de Execução Penal.
Cometer crimes para que se cumpra a lei, é agir como bárbaros. É querer justificar a auto-tutela. Se assim fosse a atuação punitiva do Estado, muitos deles nem estariam aqui para contar história.
O que acontece, afora especulações de interesse político no caso, é a atitude de bandidos, encantoados pelo poder repressivo.
E quem assistiu ao depoimento diz que ele não ficou nem vermelho depois dessa.
Durma-se com um barulho desses.
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Leia abaixo a transcrição da filmagem que os integrantes do PCC exigiram que a Rede Globo exibisse, como de fato exibiu.
"Como integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, venho pelo único meio encontrado por nós para transmitir um comunicado para a sociedade e os governantes.
A introdução do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003, no interior da fase de execução penal, inverte a lógica da execução penal. E coerente com a perspectiva de eliminação e inabilitação dos setores sociais redundantes, leia-se 'a clientela do sistema penal', a nova punição disciplinar inaugura novos métodos de custódia e controle da massa carcerária, conferindo à pena de prisão o nítido caráter de castigo cruel.
O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo [sic] e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP.
Já em seu primeiro artigo, traça como objetivo do cumprimento da pena a reintegração social do condenado, a qual é indissociável da efetivação da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento de pena em que não haja constância dos dois objetivos legais --castigo e a reintegração social--, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal, em contradição à Constituição Federal.
Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido, desumano, no qual sofremos inúmeras humilhações e espancamentos.
Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei. Se nossos governantes, juízes, desembargadores, senadores, deputados e ministros trabalham em cima da lei, que se faça justiça em cima da injustiça que é o sistema carcerário, sem assistência médica, sem assistência jurídica, sem trabalho, sem escola, enfim, sem nada.
Pedimos aos representantes da lei que se faça um mutirão judicial, pois existem muitos sentenciados com situação processual favorável, dentro do princípio da dignidade humana.
O sistema penal brasileiro é, na verdade, um verdadeiro depósito humano, onde lá se jogam seres humanos como se fossem animais.
O Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional. O Estado Democrático de Direito tem a obrigação e o dever de dar o mínimo de condições de sobrevivência para os sentenciados. Queremos que a lei seja cumprida na sua totalidade. Não queremos obter nenhuma vantagem.
Apenas não queremos e não podemos sermos [sic] massacrados e oprimidos. Queremos que, um, as providência sejam tomadas, pois não vamos aceitar e não ficaremos de braços cruzados pelo que está acontecendo no sistema carcerário.
Deixamos bem claro que nossa luta é contra os governantes e os policiais. E que não mexam com nossas famílias que não mexeremos com as de vocês. A luta é nós e vocês."
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*O nome do entrevistado e a penitenciária na qual ele trabalhou serão omitidos por questões de segurança. O ex-diretor está há 30 anos no ramo e atualmente está na direção de um Centro de Ressocialização (CR).
** (Depoimennto de Marcola à CPI - clique aqui).