Migalhas Quentes

Gilmar Mendes é protagonista de marchinha de carnaval em 2018

Nos últimos anos, políticos e integrantes da Lava Jato também foram inspirações.

16/1/2018

 

O carnaval deste ano já tem sua popular marchinha pronta. De autoria do compositor João Roberto Kelly, de 79 anos, a canção que estará na boca dos foliões em 2018 tem como protagonista o ministro Gilmar Mendes. Com o nome de "Alô, Gilmar", a cantiga ironiza a sequência de solturas dos inúmeros presos envolvidos em esquemas de corrupção. Confira a letra da marchinha e dê o play:

"Alô, alô Gilmar/ eu tô em cana / vem me soltar /Eu roubei, eu roubei, eu roubei/ não estou preso à toa/ mas no mundo não há quem escape/ de uma conversinha boa"

A marchinha e os seus personagens

O folião não perdoa ninguém, principalmente, os políticos. Com letras maliciosas e divertidas, os fanfarrões transformam situações sérias da política em uma grande brincadeira. O pacote vem completo: versos, rimas, fantasias e, claro, as máscaras dos políticos brasileiros marcam presença na festa.

Michel Temer

Assim que assumiu a presidência, Michel Temer teve que ouvir sua impopularidade nos carnavais de rua. O "Fora, Temer" extrapolou o coro daqueles que se opõem ao governo do peemedebista e chegou às fanfarras carnavalescas. A versão tem Gregório Duvivier dentre seus criadores. A letra faz uma paródia de uma canção antiga e já conhecida de carnaval:

"Ei, você aí. O Temer vai cair. O Temer vai cair. É golpista, é ladrão. Ele jamais ganharia a eleição. Ele é vampiro de capa de gibi. O Temer, Temer, Temer. O Temer vai cair"

Outra marchinha que também fez sucesso foi a "Presidento da Transilvânia". De autoria de Os Marcheiros, a letra brinca com a suposta familiaridade de Temer com as forças malignas ao dizer que o presidente "montou uma gangue para o inferno governar" e "muitos sinistros foi buscar no cemitério/ Para formar seu ministério". Confira a letra e a canção:

"De madrugada ele deixou a Transilvânia / Com seus morcegos e caixões numa scânia/ E se mandou para as bandas de uma capital/ Onde o terreiro é fértil para o mal/ Querendo sangue, começou a matutar/ Montou uma gangue pro inferno governar/ Muitos sinistros foi buscar no cemitério/ Para formar seu ministério/ E fez de vítima a donzela inocente/ Uma senhora solitária, tão carente/ Abocanhou seu pescocinho quase a ponto de morrer/ Deixando a pobrezinha sem poder/ Difícil não temer, o terror está no ar/ Se protejam, sua hora vai chegar/ Vai buscar alho/ vai buscar alho/ Deus que me livre 12 horas de trabalho/ Vai buscar alho/ vai buscar alho/ O conde viu o presidento no atalho/ Vai buscar alho/ vai buscar alho/ Ele assombra de Brasília até a casa do carvalho"

 

 

João Dória

No começo do ano passado, João Dória resolveu acabar com as pichações, os grafites e a arte de rua de São Paulo passando um jato de tinta cinza por cima. A atitude do prefeito não agradou muita gente e acabou por render uma série protestos também nas redes sociais. Próximo ao período festivo do carnaval, a banda mineira Orquestra Royal viu aí a oportunidade de mostrar o seu descontentamento tirando sarro das pinturas do prefeito. Relembre a canção:

"Você pode pichar primeiro /Não deixo mole e pinto atrás/ Eu quero ver se eu pinto inteiro/ Um muro de Moema até o Brás/ Pra cidade ficar mais top/ Na 23 e na Faria Lima/ De fantasia pra dar mais ibope/ Poso pra foto e pinto por cima/ Pinto da fonte/ Pinto no muro/ Pinto de branco/ Ou pinto mais escuro/ Pinto de fora/ E pinto dentro/ Pinto na Mooca e depois pinto no centro/ Eu te faço um convite/ Esqueça essa bobagem de grafite/ Esse muro fica muito mais bonito/ Com um quadro de Romero Britto"

A paródia “Dança da Vassoura”, de autoria de Os Marcheiros, relembrou quando o prefeito se vestiu de gari em seu primeiro dia útil de trabalho a fim de dar um exemplo de servidor. Confira a canção:

"Se eu for no Rubaiá / Eu vou varrendo / Se eu for lá no Fasano! / Eu vou varrendo /Vou varrendo, vou varrendo Vou varrendo, vou varrendo Vou varrendo, vou varrendo Vou varrendo, vou varrendo.../ Oh Soninha eu sou seu fã / Oh Soninha eu sou seu fã / Marquei contigo 6 da manhã / Marquei contigo 6 da manhã / Vc chega atrasada/ Eu já vou passar a tesoura!/ Vc chega atrasada/ Eu já vou passar a tesoura!/ Quero todos secretários/ Na dancinha da vassoura/ Quero todos secretários/ Na dancinha da vassoura"

Lava Jato

Em 2016, a marchinha do “Japonês da Federal” viralizou no Carnaval e teve uma reviravolta a gosto dos foliões meses mais tarde. A canção que, até então, abria com "Ai meu Deus, me dei mal/ bateu a minha porta/ o japonês da federal" passou a ser "Ai meu Deus, se deu mal / Foi preso em Curitiba/ O Japonês da Federal!" em virtude da prisão do agente por facilitação de contrabando. Relembre a versão atualizada:

"Ai meu Deus, se deu mal / Foi preso em Curitiba/ O Japonês da Federal!/ Acordava o povo no susto/ Raiava o dia já era xadrez/ Era o guia da excursão/ Com meu Uber/ camburão/ Já fiz sucesso/ mas agora acabou/ Foram me enquadrar/ Agora tô em cana/ Aqui no Paraná!"

Os farristas também capricham ao escrachar a própria operação Lava Jato. De autoria da Orquestra Royal, a música "Solta o Cano" ironiza os vazamentos da Lava Jato que favorecem o PSDB no Judiciário. Veja a letra:

"Solta o Cano/ Em Mais um dia mais um vazamento/ Segura o cano ou a casa cai/ O furico tá na mão/ E já não aguento / A pressão está demais! / Eu já rezei pedi pra Cristo/ E finalmente achei a solução/ Eu arrumei o meu registro/ Agora a casa não cai mais não/ Solta o cano que não cai/ Solta o cano que não cai/ Meu irmão/ Já vai baixar a pressão/ Solta o cano que tá tranquilão."

Carnaval como reflexo da história

Dê o play no vídeo e confira um breve histórico das marchinhas carnavalescas no Brasil:

Ó abre alas que eu quero passar
Ó abre alas que eu quero passar
Eu sou da lira não posso negar
Eu sou da lira não posso negar
Ó abre alas que eu quero passar
Ó abre alas que eu quero passar
Rosa de ouro é que vai ganhar
Rosa de ouro é que vai ganhar

Foram com esses versos que Chiquinha Gonzaga iniciou uma tradição que se arraigou na identidade do carnaval brasileiro ao compor a primeira marchinha carnavalesca em 1899. Anos mais tarde, compositores como Braguinha, Alberto Ribeiro, Noel Rosa, Ary Barroso e Lamartine Babo deram conta de colocar na boca do povo as músicas que embalavam as festas carnavalescas. As letras fáceis de cantar e dançar falavam sobre temas do cotidiano: amores e desamores, a vida pacata do povo e a felicidade de se festejar.

Os tempos mudaram e os temas das marchinhas também. Os foliões perceberam que o carnaval também servia para expressar os seus descontentamentos de forma bem-humorada e irônica. As letras festivas e ingênuas deram lugar às cantigas que mais pareciam um "desabafo reprimido" de forma irônica. As marchinhas passaram a falar sobre os mais diversos aborrecimentos que o brasileiro enfrentava no seu dia a dia, dentre eles: problemas habitacionais, de transporte, salarial e até abastecimento de luz e água já foi assunto musicalizado. As letras, no entanto, não parecem obsoletas.

Versos da marcha "uma andorinha não faz verão" de João de Barro e Lamartine Babo, carnaval de 1934: Dizem morena/ que teu olhar/ tem corrente de luz que faz cegar/ O povo anda dizendo que essa luz do teu olhar/ A Light vai mandar cortar.

Versos do famoso samba "Com que roupa?", de Noel Rosa, Carnaval de 1934: Agora eu não ando mais fagueiro/ pois o dinheiro/ não é fácil de ganhar/ mesmo eu sendo um cabra trapaceiro/ não consigo ter nem pra gastar/ eu já corri de vento em popa/ mas agora com que roupa/ com que roupa eu vou/ pro samba que você me convidou


(Fonte: O Estado de S. Paulo, 1972)

Para o professor de história do Departamento de Ciências Humanas da Unesp de Bauru, Maximiliano Vicente, esta forma de se expressar mostra a consciência que os artistas tiveram em relação ao sistema político que muitas vezes se mostrou ineficiente com relação aos problemas sociais. Para o professor:

"Via de regra os artistas se identificaram com as causas populares e encontraram na cultura popular um espaço para poder se expressar atendendo as demandas sociais. Daí que o conteúdo das músicas se relacione com seu público alvo, no caso, as demandas das classes menos favorecidas"

Com o passar do tempo, personalidades políticas se tornaram alvos da criatividade imperdoável dos foliões. Getúlio Vargas, por exemplo, foi protagonista frequente nos temas dos carnavais de rua. De 1929 a 1959, mais de 40 músicas falavam do ex-presidente.


(Fonte: O Estado de S. Paulo, 1994)

Engana-se quem pensa que as marchinhas são letras superficiais de uma época. Além de ser personagem, Getúlio Vargas também se utilizou dos sambas-enredos. Segundo matérias jornalísticas da época, durante o Estado Novo, Vargas obrigou as escolas de samba a confeccionarem enredos para engradecer a história do Brasil.

Em 1939, com a instituição do DIP, era obrigatório que os quadros com o retrato de Getúlio estivessem nas paredes das repartições públicas. Quando o presidente saiu em 1945, os quadros também se foram. Os foliões não perderam o tom da deposição de Vargas:

Salada política, de Alvarenga e Ranchinho, 1946: Quem não conhece/ esse baixinho tão gordinho/ Que agora está quietinho/ Já morou lá no catete/ Quinze anos/ Hoje tá só urubu reservado.

Anos mais tarde, em 1951, quando Vargas foi eleito por voto popular, o episódio dos quadros caíram na boca do povo. A forma populista de governar casou muito bem com a proposta inicial das marchinhas. Uma das canções famosas foi a "Retrato do Velho", confeccionada por Haroldo Lobo e Marina Pinto, para comemorar a volta do presidente ao poder. Ouça:

Ditadura militar

O carnaval se transformou em festa política, mistura que não combina com um regime ditatorial. Foi o que aconteceu entre os anos de 1964 a 1985, durante a ditadura militar do Brasil. As críticas jocosas não agradaram os militares, mas nem por isso os carnavais de rua foram extintos. Os governantes perceberam o poder da data festiva para ampliar o seu controle sobre a diversão pública a fim de barrar comportamentos subversivos e ditar o que seria considerado folia. As marchinhas de carnaval foram consideradas como "desabuso popular" em 1972, ano em que o país estava sob o governo do Emílio Garrastazu Médici.


(Fonte: O Estado de S. Paulo, 1972)

O carnaval, enquanto momento festivo mais liberal do ano, significava cuidado redobrado por parte dos militares, os quais eram responsáveis por garantir que a moral e os bons costumes estivessem alinhados com a ordem política. Com a promulgação do AI-5, músicas, filmes e festas eram censurados. As escolas de samba tinham suas liberdades criativas cerceadas. A Império Serrano, por exemplo, teve que modificar a letra de sua música, porque ela fazia referência ao Hino da Independência e a outros protestos que ocorreram na época.

"Ao longe, soldados e cantores/ Alunos e professores/ Acompanhados de clarim/ Cantavam assim: Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Essa brisa que a juventude afaga/ Essa chama que o ódio não apaga/ É a revolução/ Em sua legítima razão"

De acordo com o professor da Unesp, Maximiliano, mesmo com a censura, o regime militar não conseguiu barrar a criatividade dos foliões.

"Vale a pena destacar que em épocas de repressão, a criatividade fica mais estimulada e sua manifestação se torna um dos componentes políticos de contestação ao regime estabelecido. Não creio que a ditadura impediu manifestações espontâneas e de cunho popular ligas as festas e as tradições. O que sim podemos afirmar é que em muitas vezes ela se apropriou dessas manifestações para manipular e ocultar fatos, mas mesmo assim, a contestação ocorreu apesar das dificuldades para que ela chegasse à população".

De volta à sátira
Com o fim do regime militar, a liberdade criativa pôde respirar mais aliviada. A recém democracia restabelecida assistiu nos anos 90 o primeiro impeachment. Fernando Collor e Paulo Cesar Faria foram os protagonistas da vez. O bloco "Filhos da pauta" foram para as ruas cantando "Chora miséria", que tinha como letra: Quando seu dinheiro acabar/ Não custa nada lembrar/ Quem te preparou essa armadilha.

(Fonte: O Globo, 1993)

O samba-enredo das escolas de samba também se tornaram cada vez mais politizados e o sambódromo virou palco de protesto. No carnaval de 1995, a escola São Clemente colocou em xeque a popularidade do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Intitulada de "O que é, o que é. Que não é, mas será?", o enredo da escola mostrou ao público que as medidas de vetar o salário mínimo de R$100 e a aprovação da anistia aos políticos que usaram a gráfica do senado eram impopulares. Assista ao desfile:

Homenagens

O carnaval também serve para homenagear. Na mesma Marquês de Sapucaí em que foi alvo de críticas, FHC também foi homenageado pela Unidos da Vila Isabel, que preparou um enredo para contar a história do dinheiro chamado "Cara ou Coroa".

Em 2003, a escola de samba Leandro de Itaquera dedicou o enredo "Qualidade de vida – direito do povo" ao então presidente Lula. Um dos carros alegóricos levou o nome "Brasil sem fome", um dos programas assistenciais do governo do petista. Anos mais tarde, em 2012, já sendo o ex-presidente, a escola Gaviões da Fiel homenageou a história dele com o nome "Verás que o filho fiel não foge à luta – Lula retrato de uma nação".

(Fonte: O Estado de S. Paulo, 2012)

A ex-presidente Dilma também foi homenageada em alguns desfiles, como a Grande-Rio, que teve uma ala destinada a mulheres para desfilarem com a tradicional roupa vermelha de Dilma. Os blocos de rua também lembraram da ex-presidente. O "bloco da querida", em Copacabana, teve até a atriz Letícia Sabatella como madrinha.

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