Migalhas Quentes

As notícias estão tomando Doril

Desde que o Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu "direito ao esquecimento", houve uma proliferação de pedidos e decisões que determinam a remoção de links.

12/11/2015

As notícias estão desaparecendo do Google.

Desde que o Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu um inapropriado "direito ao esquecimento" – instituto ainda sem qualquer previsão legal no Brasil –, houve uma proliferação de pedidos e decisões que determinam a remoção de links do buscador.

Mas, ao que parece, a coisa está saindo de controle.

Esquecimento

O processo no qual se formou o temerário precedente europeu teve como mote uma prosaica notícia veiculada no jornal "La Vanguardia", no longínquo ano de 1998.

Era um edital de leilão de uma casa, por dívida, de um cidadão espanhol. A notícia estava adormecida, mas como o matutino digitalizou seu acervo, bastava colocar o nome dele no Google para que surgisse a referência à vetusta dívida. Por isso, com base na invocação do direito de "ser esquecido", em maio de 2014 a Corte Europeia determinou que o Google removesse de seu buscador o referido link. 

E mais, usou o caso para determinar que a empresa fizesse o mesmo em todos os casos em que alguém pedisse para excluir links que remetessem conteúdos "irrelevantes", ou que tratem de dados pessoais.

A decisão modificou o entendimento até então vigente de que esses sites não tinham responsabilidade pelo conteúdo, por não hospedar os links, e apenas remeter para sites de terceiros.

"Desreferenciando"

A partir da decisão europeia, litigantes tupiniquins vêm invocando na Justiça este "direito" de ser esquecido, o qual infelizmente vem sendo, em alguns casos, deferido.

Quando isso acontece, e há decisão de obrigação de fazer contra o Google, o buscador faz a cortesia de informar ao veículo autor da página de que o link será "desreferenciado" dos resultados, em obediência a uma decisão judicial.

O Google se limita a enviar a URL (Uniform Resource Locator), que nada mais é do que o endereço da página, indicando que ela deixará de constar nas buscas.

Poucas vezes, pouquíssimas mesmo, recebemos essa comunicação.

E, em todas elas, demos de ombros, por se tratar de bobagens. Por exemplo, leitor que escreveu uma missiva contra uma coisa, e agora trabalha no ramo criticado, quer que não apareça nas buscas suas opiniões anteriores (isso, acreditem, é mais comum do que se imagina). É o esqueçam o que escrevi presidencial fazendo escola.

O fato é que nesta semana nos surgiu um desses e-mails do Google informando que por decisão judicial uma notícia estava sendo "desreferenciada" das buscas.

Para nossa surpresa, envolvia dois personagens públicos, fato que nos causou espanto.

Capez x Kfouri

Seguindo o procedimento cortês já informado, o Google informou à alta Direção de Migalhas que o link de uma notícia a respeito de litígio envolvendo o deputado estadual Fernando Capez (SP), que atualmente preside a Alesp, e o famoso jornalista Juca Kfouri, seria removido de suas buscas.

E o que tinha no link?

Nada de mais. Uma matéria puramente informativa, narrando o ingresso de uma ação inibitória, ajuizada em 2007, na qual o parlamentar buscava proteção preventiva dos direitos da personalidade, tendo em vista o que chamava de ataques a sua imagem.

Sob o título "Deputado Fernando Capez move nova ação contra Juca Kfouri", a reportagem noticiava a propositura da ação, reproduzia alegações da assessoria e dos advogados do deputado, bem como trechos de decisão de 1º grau que deferiu a tutela antecipada e fixou multa de R$ 50 mil para cada ofensa praticada pelo jornalista contra o deputado, a partir da publicação da decisão.

O processo seguiu seu curso regular (v. mais informações sobre o processo), sendo que as decisões posteriores – as quais são contrárias à pretensão do deputado –, foram até mesmo noticiadas em outras oportunidades por este vibrante matutino.

Então, por se tratar de notícia verídica e relevante, uma vez que envolve pessoas públicas, por que será que algum deles pediu a exclusão da referência no Google? O que se queria deixar esconso?

Aumentando ainda a dúvida, é preciso notar que são personagens de certa forma ligados à comunidade jurídica, objeto de trabalho deste site – Capez é procurador de Justiça licenciado; e Kfouri é filho de saudoso promotor de Justiça paulista.

Enfim, achando tudo muito estranho, fomos buscar entender o que estava acontecendo.

E tivemos nova surpresa.

Pedido de remoção

Para nosso espanto, o pedido não foi formulado nem por um, nem por outro, mas sim pelo advogado Rogério Auad Palermo, cunhado de Fernando Capez, que era mencionado na referida matéria como advogado do deputado.

E ele, de fato, como pode se ver pelo andamento do processo, era, sim, o causídico que tocava a demanda.

Mas vejamos agora o processo no qual ele pede a exclusão dos links no Google.

Na petição, informa-se que Palermo exerceu por aproximadamente dois anos (2010/12) o cargo de Assessor Técnico Procurador do TCE/SP e que, após pedir exoneração do cargo, "passou a ser vítima de uma campanha difamatória por parte da imprensa".

De acordo com os veículos de comunicação – que, a saber, parece não foram alvo de nenhuma ação judicial – na mesma época em que Palermo passou a integrar a equipe de um então conselheiro da Corte de Contas, Eduardo Bittencourt Carvalho, um cunhado do então conselheiro teria sido nomeado por Capez para o posto de assessor especial parlamentar. 

Os matutinos sugeriam que isso seria um típico caso de nepotismo cruzado. Por conta disso, diz-se que o TCE havia exonerado Palermo, e que ele estava sendo investigado.

Na inicial, rebatendo essas informações, os advogados afirmam que Palermo nunca foi alvo de investigação criminal, processo crime, e que não foi exonerado do cargo. Ele teria requerido sua exoneração, "tendo em vista as limitações que o cargo lhe impunha para o exercício da advocacia".

Buscando, com o perdão do trocadilho, preservar sua imagem e tendo em vista o "potencial lesivo" das notícias, o advogado pediu ao buscador Google que promovesse a retirada de links previamente indicados, "os quais conduzem a conteúdo difamatório e inverídico". 

"As pessoas têm o direito de serem esquecidas pela opinião e até pela imprensa. Os atos que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem punições eternas", afirma Palermo pela pena de seus advogados.

Vê-se que aqui há algo mais grave. E é bom que isso fique inteligível

O peticionário mistura alhos e bugalhos. Diz que as notícias trazem conteúdo inverídico e difamatório e, por isso, pede direito ao esquecimento. 

Ora, ou uma coisa, ou outra. 

Se as notícias são inverídicas, cabe ação própria de indenização. A mera retirada do buscador não irá fazer sumi-las. De maneira que o alegado conteúdo inverídico e difamatório continuará a existir. Por esse motivo, até mesmo, o magistrado deveria negar o pleito, não determinando a retirada dos links do buscador, porque o suposto conteúdo precisa ser objeto de contraditório para ser reconhecido como inverídico e, sobretudo, difamatório.

E antes que acabemos esse tópico, é preciso consignar que não sabemos porque estamos a falar disso, porque Migalhas nem sequer tocou nesse assunto em suas páginas. 

Ou seja, hoje é a primeira vez que falamos disso. De modo que se o doutor queria ser esquecido, o tiro saiu pela culatra.

Sigilo

Como se não bastasse de esdruxularia, os representantes de Palermo também pediram na inicial para que o feito tramitasse em segredo de Justiça. Segundo os advogados, a divulgação dos fatos e elementos do processo seria lesiva ao interesse individual do autor, uma vez que dizem respeito diretamente a sua honra e dignidade.

O sigilo, no entanto, e ainda bem, não foi decretado pela Justiça bandeirante.

Não e sim

Em análise do pleito referente à remoção dos links, o juízo de 1ª grau julgou improcedente o pedido, alegando que o Google é apenas um pesquisador de páginas, podendo-se falar em "censura a uma atividade empresarial", caso a ação fosse julgada procedente.

"O Google não tem qualquer controle ou responsabilidade pelo conteúdo [que] publica nos diversos websites por ele pesquisados."

Rogério Palermo recorreu da decisão, e a 9ª câmara de Direito Privado do TJ/SP deu provimento ao recurso. Segundo o colegiado, a ferramenta de pesquisas disponibilizada pelo Google, ao mesmo tempo que traz grande contribuição para o rápido e fácil acesso de informações, também acarreta riscos ao direito de terceiros, tendo em vista sua rápida disseminação e seu alcance.

De acordo com os magistrados, "é perfeitamente admissível o pedido de remoção de determinados resultados de pesquisa, quando demonstrado o seu caráter ilícito, e a desvinculação ao direito de informação/manifestação do pensamento".

"A medida será incidente, portanto, apenas sobre aquelas páginas que veiculam o conteúdo ofensivo, e somente elas não aparecerão no buscador, de maneira que não haverá violação aos direitos de terceiros, nem ao exercício regular da atividade comercial do réu."

No caso específico, conforme o colegiado destacou, "o autor apresentou documentos indicativos de que as notícias divulgadas através das URLs elencadas não correspondem à realidade".

Embora a regra diga que decisão judicial "cumpre-se, e não se discute", aqui é bem o momento de exercer a famosa exceção, a qual, como sabido, prova a regra. 

Com o perdão dos doutos desembargadores, não foi justa a decisão. Afirma que as notícias são inverídicas sem permitir o contraditório do autor da notícia? Ai, ai, ai...

Link "jabuti"

Mas o leitor agora deve estar se perguntando por que cargas d'água Migalhas está envolvido nisso?

Por que Migalhas, que apenas informou de processo de Capez x Juca Kfouri, foi parar em affaire do TCE/SP envolvendo o mencionado parente de Capez?

Ops. Parente não, porque como já ensinou o jingle de campanha: "Cunhado não é parente, Brizola para presidente". O cunhado, no caso, como se sabe, era João Goulart.

Como já dito, Migalhas não falou nada do caso do TCE/SP, de modo que não teria que estar na lide. Ademais, a referida matéria do processo movido por Capez contra Kfouri é datada de anos antes de o caso vir à tona – antes até de o advogado tomar posse no TCE/SP.

E aí nova surpresa, para não dizer indignação. 

Não é que o link da reportagem de Migalhas não constava na inicial, e foi estranhamente inserido na réplica?

Para mantermos nossa confiança no ser humano, queremos crer, sinceramente, que tudo não passou de um equívoco.

Queremos crer que isso rapidamente será desfeito.

De qualquer forma, mesmo estando certos de que foi algum erro na checagem dos links ("culpa do estagiário"?), isso é um alerta para os efeitos nefastos do uso, e do abuso, do chamado "direito ao esquecimento".

Está-se promovendo, ninguém duvide, uma restrição ao direito de informação.

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