O ministro Barroso, em apresentação na ONU, sustentou ser "difícil" a ideia de desenvolvimento sustentável – econômico, social e ambiental – "sem incorporar a justiça como um elemento essencial". Veja a íntegra da apresentação abaixo.
Em 2000, a ONU definiu os objetivos de desenvolvimento do milênio, com metas a serem realizadas até 2015. No momento, ex-chefes de Estado, diplomatas, ONGs e militantes de direitos humanos de diferentes partes do mundo conduzem um debate global sobre a escolha dos novos objetivos.
O ministro do STF demonstrou na explanação o papel desempenhado no Brasil pelo sistema de justiça, aí incluído o MP, a Defensoria, os juizados especiais, o STF e o STJ, com ênfase ao papel que essas instituições têm na concretização de direitos fundamentais em áreas diversas.
"É preciso uma atuação firme fora dos tribunais, na definição de política públicas, na elaboração dos orçamentos e na fiscalização do seu cumprimento. O que, uma vez mais, traz o foco para a questão do empoderamento legal dos desfavorecidos, como um instrumento indispensável para uma agenda capaz de enfrentar a pobreza."
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JUSTIÇA, EMPODERAMENTO JURÍDICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Luís Roberto Barroso1
I. INTRODUÇÃO
1. Agradecimento
Eu tenho muito prazer de estar aqui e de compartilhar com todos algumas ideias e reflexões sobre a incorporação da Justiça como um dos objetivos do desenvolvimento sustentável na sua configuração Pós-2015. Sou grato à Open Society Foundations e, particularmente, ao Sr. Pedro Abramovay pela distinção do convite. Eu intitulei a minha apresentação como “Justiça, Empoderamento Legal2 e Direitos Fundamentais”. Após breves considerações teóricas, eu procuro analisar a experiência brasileira, sobretudo o papel que o sistema de justiça tem desempenhado na concretização de direitos fundamentais, inclusive os que já figuravam nos objetivos do milênio definidos no ano de 2000.
2. Generalidades
Justiça é uma demanda natural e instintiva da condição humana. Pessoas são seres morais que, como regra geral, se regozijam com o bem, com o correto e com o justo. E, como consequência, condenam o mal, o errado, o injusto. As teorias da justiça, em suas múltiplas formulações, de Platão a John Rawls, passando por Amartya Sen e Michael Sandel, mobilizam a consciência individual, o imaginário social e a reflexão intelectual daqueles que se dedicam a pensar e aprimorar a convivência humana. A busca por justiça vem associada à percepção de que as pessoas têm direitos fundamentais. E que tais direitos não estão subordinados a fatalidades históricas nem à vontade política de minorias privilegiadas. Em verdade, o conceito de justiça tem um apelo tão grande ao espírito e se conecta, simultaneamente, com tantos valores e circunstâncias, que é prudente demarcar o seu sentido e alcance, ainda que de maneira bem genérica.
II. A IDEIA DE JUSTIÇA
Em primeiro lugar, a ideia de justiça tem uma dimensão substantiva. Nesse sentido, ela corresponde aos direitos humanos básicos. Vale dizer: o núcleo essencial dos direitos humanos equivale a uma reserva mínima de justiça (Alexy) a ser respeitada ou promovida pela sociedade e pelo Estado. Chega-se aqui ao conceito de mínimo existencial, que inclui o acesso a algumas prestações essenciais – como educação básica e serviços de saúde –, assim como a satisfação de algumas necessidades elementares, como alimentação, água, vestuário e abrigo. Este conjunto mínimo de direitos sociais é exigível judicialmente e não deve ficar na dependência do processo político majoritário.
Em segundo lugar, a ideia de justiça tem uma dimensão institucional: ela depende de instituições capazes de fazê-la prevalecer quando não seja espontaneamente respeitada. Tais instituições incluem a Constituição, a definição de direitos fundamentais, a separação de Poderes e a presença de um Judiciário independente e imparcial. De forma breve, a justiça precisa de democracia, de rule of law. Por fim, em terceiro lugar, a justiça tem uma dimensão processual: deve existir o direito de ação, as pessoas devem ter o direito ao seu dia no tribunal, assim como devem ter o direito de defesa quando sejam rés. Em suma: é preciso que haja devido processo legal. Enunciado de forma simples, justiça significa o reconhecimento de direitos humanos básicos, a possibilidade de exigir o seu cumprimento perante órgãos estatais independentes e devido processo legal.
III. EMPODERAMENTO JURÍDICO E ACESSO À JUSTIÇA
Empoderamento jurídico dos pobres e acesso à justiça são instrumentos valiosos para a promoção de direitos humanos, especialmente aqueles que passam despercebidos pelas classes média e alta. Empoderamento jurídico é a possibilidade efetiva de fazer valer os próprios direitos. Tal possibilidade depende de consciência de cidadania, informação e meios de atuação, não necessariamente judiciais. O acesso à justiça, por sua vez, envolve a possibilidade, sobretudo das pessoas mais pobres, de levar sua demanda a um tribunal, mesmo que ela não seja expressiva economicamente, à luz dos padrões usuais. Para tanto, é preciso, além do empoderamento legal, isenção de custos ou custos baixos e assistência judiciária para quem não tem recursos para pagar um advogado privado.
O Brasil tem uma rica experiência nessa área, com institutos processuais e instituições públicas que contribuem para o empoderamento e para o acesso à justiça. Entre os institutos processuais, merecem destaque a ação civil pública e a legitimação extraordinária. A ação civil pública é uma variação da class action americana, destinada à defesa de interesses da sociedade ou de grupos específicos. Ela tem se prestado à proteção de interesses em áreas como educação, saúde, saneamento, proteção ambiental e moralidade administrativa, bem como para a defesa de consumidores e usuários de serviços públicos. Esta ação pode ser proposta por entidades que têm legitimidade extraordinária, isto é, podem atuar em nome e no interesse da sociedade como um todo ou de grupos determinados. Entre estes public interest litigators, figuram o Ministério Público e a Defensoria Pública, além de associações privadas que preencham certos requisitos.
O Ministério Público é uma instituição pública, sem similar exato no direito americano. Na área penal, ele corresponderia aos District Attorney Offices ou State Attorney Offices. Sua singularidade, no entanto, está em uma ampla atuação nas áreas cível e administrativa, normalmente como representante da sociedade ou de grupos vulneráveis, aí incluídos pobres, deficientes e índios. A maior parte da public interest litigation é conduzida pelo Ministério Público. Existe, também, como instituição estatal, a Defensoria Pública, cujo papel é prestar assistência judiciária aos pobres, tanto em processos penais como cíveis. É extraordinário o espectro de atuação da Defensoria Pública, em quantidade e qualidade3. Por fim, existem os Juizados Especiais, nos quais os indivíduos podem comparecer pessoalmente com suas demandas, independentemente de advogado, se o litígio envolver disputas até 20 salários mínimos.
É curioso observar que o maior problema no Brasil, em termos de justiça, não está propriamente no empoderamento ou no acesso, mas no excesso de judicialização e no congestionamento decorrente da multiplicação de atores e de autores que têm acesso ao sistema.
IV. PROMOTING HUMAN RIGHTS THROUGH THE JUSTICE SYSTEM: THE BRAZILIAN EXPERIENCE
O Brasil, como boa parte dos países da América Latina, tem uma tradição de Executivo forte e de Legislativo relativamente frágil. A novidade na paisagem institucional do país é uma vertiginosa ascensão política do Poder Judiciário e, particularmente, do Supremo Tribunal Federal. Nos últimos anos, o STF tem desempenhado, com grande visibilidade, o papel de defensor dos direitos fundamentais e das regras do jogo democrático. Também o Superior Tribunal de Justiça, mais alta Corte para aplicação do direito federal, tem proferido decisões relevantes. A seguir, uma breve notícia da atuação de ambos os Tribunais em áreas como educação, saúde, igualdade perante a lei e proteção ambiental.
Em matéria de educação fundamental, existem decisões determinando (i) a efetiva realização do investimento mínimo em educação exigido pela Constituição (que é de 25% da receita de impostos, no caso dos Municípios), (ii) a obrigatoriedade da matrícula de crianças em creches e em pré-escolas próximas da residência ou do trabalho dos pais ou responsáveis, (iii) o oferecimento de transporte da residência até a escola, (iv) a contratação de professores e (v) a realização de obras de recuperação de prédios de escolas. A Constituição prevê a educação fundamental como um direito constitucional e juízes e tribunais, em diversos casos, têm entendido ser seu papel dar concretude a esse direito.
Em questões envolvendo saúde, as decisões judiciais são mais numerosas ainda. Há julgados determinando (i) o fornecimento de medicamentos para portadores de AIDS/HIV, (ii) o fornecimento de medicamentos de alto custo a pessoas que demonstrem sua necessidade e a impossibilidade de adquiri-los com recursos próprios, (iii) a realização de tratamentos médicos complexos, mesmo quando não oferecidos na rede de hospitais públicos, (iv) a contratação de médicos e técnicos para hospitais públicos e (v) o aumento da oferta de vagas e UTI em hospitais públicos. A judicialização da saúde e seus limites tornou-se um importante debate público no Brasil.
No tema da promoção de igualdade, há decisões importantes em questões variadas. No tocante à liberdade de orientação sexual, há julgados (i) equiparando as uniões homoafetivas entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis convencionais, (ii) reconhecendo o direito ao casamento civil de pessoas do mesmo sexo e (iii) permitindo a adoção por casais homossexuais. Em relação à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres, há decisões marcantes reconhecendo (i) o dever da Previdência Social de pagar a integralidade do salário da mulher que se encontra em licença maternidade (pelo período de 6 meses), (ii) a constitucionalidade da lei que impõe um regime penal e processual penal mais rígido para a proteção da mulher contra a violência doméstica e (iii) o direito de as mulheres interromperem a gestação em casos de grave doença fetal que tornem inviável a vida extrauterina (a questão do aborto ainda é um taboo não superado no Brasil). Há decisões igualmente dignas de nota em favor de ações afirmativas e de proteção dos direitos dos deficientes físicos em relação à acessibilidade e direito ao trabalho no setor público mediante concurso.
Em matéria ambiental e conexas, há uma importante decisão do Supremo Tribunal Federal validando a demarcação de uma imensa área indígena no norte do país, com grande impacto sobre a proteção florestal. Em cortes de primeiro e segundo grau, há julgados significativos suspendendo a realização de obras em usinas hidrelétricas, por inobservância de leis ambientais e dos direitos das populações afetadas. E existe, igualmente, uma expressiva quantidade de ações relacionadas ao fornecimento de água e saneamento básico, particularmente no que se refere ao esgotamento sanitário e tratamento de resíduos. A esse propósito, recente pesquisa levada a efeito demonstrou que as ações envolvendo as questões de saneamento beneficiou um número relevante de comunidades pobres, embora não as mais miseráveis.
É pertinente mencionar, ainda, o papel desempenhado pela Justiça do Trabalho na garantia de direitos dos trabalhadores pelo país afora. A Justiça do Trabalho é a mais próxima dos pobres (à exceção da Justiça Penal, bien sûr) e percebida como defensora dos seus direitos nas relações de trabalho. Finalmente, uma terrível chaga no Brasil são os chamados “Grupos de Extermínio”, expressão que identifica milícias privadas e clandestinas que funcionam como “justiçadores”, matando supostos criminosos, predominantemente em áreas nas quais a polícia e o sistema penal em geral não fazem um trabalho minimamente aceitável em termos de prevenção e punição da criminalidade. Assim, um sistema de justiça penal eficiente, capaz de combater o crime dentro do quadro do Estado de direito e do devido processo legal, é um instrumento indispensável à proteção dos direitos humanos, tanto dos acusados quanto das vítimas.
A constatação a que se chega é que a judicialização é um componente importante, mas claramente insuficiente para a promoção de justiça em larga escala. Para isso, é preciso uma atuação firme fora dos tribunais, na definição de política públicas, na elaboração dos orçamentos e na fiscalização do seu cumprimento. O que, uma vez mais, traz o foco para a questão do empoderamento legal dos desfavorecidos, como um instrumento indispensável para uma agenda capaz de enfrentar a pobreza
V. CONCLUSÃO
Penso ser difícil conceber a ideia de desenvolvimento sustentável, em qualquer de suas três dimensões – econômico, social e ambiental –, sem incorporar a justiça como um elemento essencial. Em primeiro lugar, porque ela expressa, de maneira sintética, algumas conquistas materiais imprescindíveis para a dignidade humana, materializadas nos direitos humanos básicos e na possibilidade de exigir a sua observância. Em segundo lugar, porque a justiça simboliza uma ambição do espírito humano, uma realização interior mais fácil de sentir do que medir, e que permite às pessoas viverem não apenas uma vida melhor, mas uma vida maior.
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1Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre pela Yale Law School, Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Visiting Scholar na Harvard Law School (2011).
2 Empoderamento legal é a tradução literal da expressão inglesa legal empowerment. Ela expressa a ideia de tomada de consciência e efetiva postulação dos próprios direitos, conforme explicitado mais adiante no texto.
3A Defensoria Pública, em âmbito federal e estadual, promove mais de 10 milhões de atendimentos por ano. Cerca de 50% do seu trabalho é em matéria penal, na defesa dos acusados que não tenham constituído advogado. A outra metade se divide por áreas diversas, que incluem benefícios previdenciários, questões de direito de família e disputas possessórias. Muitas questões são resolvidas extrajudicialmente, sem necessidade de ajuizamento de ações.
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