Em 1973 foi criada no Largo de S.Francisco a disciplina de Teoria Geral do Processo. No ano seguinte, chegava ao mercado editorial a obra de mesmo nome, verdadeiro marco da disciplina no país. Para celebrar as datas, o advogado Flávio Luiz Yarshell (Yarshell, Mateucci e Camargo Advogados) narra encontro com consagrados nomes do Direito pátrio responsáveis por esses fatos (ver íntegra abaixo).
História de sucesso
Ao surgir, a disciplina foi prevista para todo o segundo ano, com conteúdo para 58 tópicos, sendo 20 para o primeiro semestre e 38 para o segundo. Atualmente, a cadeira ocupa um semestre do mesmo segundo ano.
Quem definiu com precisão a disciplina foi Cândido Rangel Dinamarco:
"Sistema de conceitos e princípios elevados ao grau máximo de generalização útil e condensados indutivamente a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual."
A definição do professor Cândido mantém-se atual até hoje, conforme afirma Flávio Luiz Yarshell: "Ela enfatiza o papel metodológico que a teoria possui".
O advogado destaca também a evolução da disciplina nesses 40 anos, especialmente a partir da CF e da EC 45/04 e a produção doutrinária nesse período. "A matéria se firmou como método de investigação, seguido por acadêmicos, nas teses, trabalhos, etc", disse.
Recebida com entusiasmo pelos alunos das Arcadas na então década de 70, a cadeira de Teoria Geral do Processo é hoje ministrada em diversos cursos país afora, em claro sinal do sucesso da idealização de consagrados nomes do Direito pátrio.
A Editora Malheiros Editores Ltda. lança hoje a obra "40 anos de Teoria Geral do Processo no Brasil – Passado, Presente e Futuro", coordenada por Camilo Zufelato e Flávio Luiz Yarshell, do escritório Yarshell, Mateucci e Camargo Advogados. O evento será em SP, na Faculdade de Direito da USP, a partir das 18h30.
Sobre a reedição da obra, o professor Flávio (que foi aluno dos professores Ada Pellegrini, Antonio Carlos Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco) assinala que não é apenas uma homenagem aos autores e nem apenas a uma disciplina, "mas na verdade é uma demonstração da disposição de continuidade do estudo sobre essa ótica da teoria geral do processo, importante no contexto da escola processual de São Paulo. A edição mostra que a teoria está em contínua evolução e é um compromisso dos atuais professores da escola processual de SP".
Confira narração do encontro, ocorrido em 20 de abril deste ano, no qual esses consagrados juristas relembraram a história do surgimento da disciplina e da obra.
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Muitos e muitos anos de Teoria Geral do Processo
Primeiro nasceu /a ideia da homenagem; não apenas mais uma a juristas de primeira grandeza, mas também ao resultado de seu trabalho, corporificado em uma de suas mais relevantes obras. Quarenta anos da disciplina Teoria geral do processo na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e trinta edições do livro que – com o mesmo título e conteúdo – nos ofertaram ANTONIO CARLOS ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO. Esses são motivos mais do que suficientes para uma justa e devida celebração. E que feliz inspiração teve o Professor CAMILO ZUFELATO ao idealizá-la!
Depois, surgiu a ideia de reunir os homenageados para falar sobre a gênese da disciplina e da obra que a ela se seguiu. Foi num sábado do outono paulistano. Na hora marcada, além de nós coordenadores, estavam lá ANTONIO CARLOS e ADA; CÂNDIDO chegou um pouco mais tarde. Na verdade, nossa intenção era a de gravar depoimentos em vídeo. Pensávamos que essa era a melhor forma de registrar aquele momento histórico. Apesar de termos parcial apoio para tanto, houve um veto às vésperas do encontro e isso bastou para descartarmos a ideia. Queríamos que todos pudessem se sentir a vontade para falar do assunto e isso não combinava com qualquer coisa que pudesse ser interpretada como constrangimento. Ficou o limitado e restrito registro do áudio; feito com o intuito de sermos fiéis ao reproduzirmos para o público um pouco do que ali se passou.Depois de um pouco de conversa, veio a primeira pergunta: de quem partira a iniciativa de criar a disciplina?
- Surgiu do programa, o programa da faculdade, disse CINTRA, referindo-se à decisão tomada pela Congregação.
- Aí você começou a lecionar, completou ADA, que ainda acresceu: – Nem nós sabíamos muito bem o que era... Em 73 foi criada a disciplina. E o livro veio em 74. De repente, nós nos vimos encarregados de reger uma disciplina, e eu confesso, posso confessar piamente, que eu só pensei que era alguma coisa mesclando disciplinas processuais. Mas não tinha ideia de uma disciplina de síntese. Você tinha essa ideia? Perguntou para CINTRA, que assentiu enfaticamente.
O diálogo nos transportou para um passado que não vivemos, mas que nos pareceu tão familiar...
- Era do segundo ano diurno e noturno. A Ada foi indicada para o segundo diurno e eu fui indicado pro segundo noturno, disse CINTRA.
- Mas você começou a fazer algumas anotações.
- Eu fiz uma apostila. Eu fiz apostila porque eu comecei a dar as aulas e eu senti falta de um texto mais genérico. Poderia citar um monte de livros, mas não; queria alguma coisa mais fácil para os alunos.
- É, e começou com as apostilas; à mão... com a letrinha... com a sua letrinha pequenininha.
Risos gerais...
- E a gente tinha um entusiasmo danado, né? Completou o CINTRA.
E continuaram lembrando e contando. ADA falou de como tomaram aquela apostila como um roteiro inicial das aulas e como ponto de partida para a cooperação que, depois, redundaria no livro. CINTRA havia concluído a livre docência antes dos demais, ainda doutores. Logo chegou a vez do mesmo concurso para ADA, que se inspirou no material e propôs: por que não aproveitamos isso e escrevemos um livro? E CINTRA completou:- Foi ela quem sugeriu: o Cândido pode vir trabalhar com a gente... Falei: ótimo! Foi assim...
Mas, insistimos: quem tinha levado a ideia da disciplina à Congregação?
- Não sei. Não sabemos, disse ADA.
Alguém cogitou da possível iniciativa do Mestre dos três, LUIS EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL. Mas, logo descartaram pelo relativo ceticismo que VIDIGAL mostrara em relação à teoria geral do processo. E isso sem embargo das palavras que escreveu em prefácio à primeira edição: um elogio rasgado ao “alto nível científico” do “novo compêndio” e à capacidade dos então “jovens mestres de direito”; mas não muito convicto do acerto metodológico, diante das perplexidades geradas, por exemplo, pela busca de uma lide penal...E quem era o Chefe do Departamento na ocasião? Nova cogitação sobre LUIS EULÁLIO. Mas, meses depois descobrimos que não era ele. A partir do acesso à ata da quadragésima segunda (42ª) “sessão” do Departamento de Direito Processual, que conseguimos recuperar com a ajuda da ELOÍDE (Assistente Acadêmica), desfez-se o mistério: ocupava a função de Chefe o Professor CANUTO MENDES DE ALMEIDA; justamente aquele referido por LUIS EULÁLIO, no prefácio à primeira edição, ao lado de CARNELUTTI, como “um dos mais profundos e originais pensadores da matéria”. Nada mais justo.
Então, foi no dia oito (8) de novembro de 1972 que o Chefe do Departamento deu conhecimento, ao Conselho, da deliberação da Congregação – ocorrida em sessão de 12 de outubro de 1972, conforme também viemos a descobrir. Discutia-se o novo currículo a ser adotado (discussão, pelo visto, eterna!...), de acordo com a Resolução 3/72 do Conselho Federal de Educação, que fixava “o mínimo de conteúdo e de duração” obrigatórios a partir de 1973; donde ser necessária nova programação. Para tanto, submeteu-se àquele primeiro Colegiado um anteprojeto elaborado por ninguém menos que o Professor CELSO NEVES. Foi então nomeada Comissão formada pelo Chefe do Departamento e pelos Professores MOACIR LOBO DA COSTA e JOSÉ IGNÁCIO BOTELHO DE MESQUITA. Deliberou-se que o projeto seria votado na reunião seguinte.
Isso ocorreu já no dia 14 do mesmo mês: o projeto foi aprovado por unanimidade. Lá estava a disciplina Teoria Geral do Processo, prevista para os dois semestres do segundo ano (atualmente ela está concentrada em um só), com conteúdo exposto em cinquenta e oito tópicos (vinte para o primeiro e trinta e oito para o segundo semestre). E, no dia 28 de novembro do mesmo ano de 1972, foram feitas as designações de docentes para o ano seguinte: ADA para o período diurno e CINTRA para o noturno, figurando como assistente o Doutor LUIS CARLOS DE AZEVEDO, de saudosa memória.
Teria sido um nome ambicioso demais? ADA chegou a cogitar disso. Ponderou que talvez a disciplina pudesse ter sido chamada de “Instituições” (judiciárias ou algo assim). O assunto não foi adiante, mas pessoalmente estou convencido do rigoroso acerto do título dado à matéria; que, para além de seu conteúdo relevante, é também um método. Ela é um “sistema de conceitos e princípios elevados ao grau máximo de generalização útil e condensados indutivamente a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual”, como bem definiu CANDIDO, em sua consagrada tese sobre a instrumentalidade do processo. Nenhum nome teria ficado melhor.
E a receptividade dos alunos diante da nova disciplina? Resposta unânime: houve boa aceitação, tanto pelos alunos quanto pelos professores. Todos se interessaram. Alunos sempre são tão curiosos, disse alguém...– A teoria geral do processo entrou em todas as faculdades. E praticamente todas adotam nosso livro, lembrou a ADA, com toda razão.
Foi então que comentei sobre minha própria dificuldade em ministrar a disciplina: é um desafio falar o tempo todo sobre autêntica teoria geral, sem acabar enveredando – no meu caso – para a teoria geral do processo civil... Isso sem falar no elevado grau de abstração de uma disciplina “altamente teórica”, como falou LIEBMAN; ou na relativa imaturidade dos alunos do segundo ano da Faculdade – mal iniciados nas coisas do Direito e, menos ainda, no Direito Processual. Foi quando ADA lembrou que, em dado momento, foi designado para a matéria um “especialista em processo penal”, referindo-se ao GUSTAVO BADARÓ; que muito provavelmente não foi o único.
E assim caminhou a conversa, até que veio o assunto – misto de delicado e necessário – do futuro da obra. A esta altura CANDIDO já havia chegado. Modificações constitucionais e legislativas (havidas e por vir), avanços da doutrina e da jurisprudência: todos os presentes – os autores e os palpiteiros de plantão – concordaram que é preciso continuar a rever e a alterar a obra. Mas, de que forma? Estratégicos acréscimos e enxugamentos? Alterações estruturais? ADA expôs algumas ideias. Ela falou em dar ênfase para o exame dos conflitos e tutelas adequadas correspondentes. CÂNDIDO falou da necessidade de modernizar o exame de tema, “produto da nossa cultura naquele tempo”; mencionou a importância de novos temas como arbitragem, processo coletivo, meios alternativos de solução de controvérsias; além de falar de um glossário que estava preparando – que confidenciou já ter mais de trezentos verbetes... Ele e ADA falaram do tratamento a ser dado ao tema (fundamental) dos princípios; o quê, no contexto de uma obra que é essencialmente principiológica, gerou concordâncias e alguma controvérsia.- A diferença entre princípio e regra. Nas últimas edições eu escrevi alguma coisa sobre princípios, disse ADA.
- Os verdadeiros princípios estão fora da ciência. Eles são um suporte da ciência e raízes dessa ciência; mas a ciência é maior, observou CANDIDO. –Então você fala princípio do livre convencimento só pelo uso de dizer princípio, porque não está fora do sistema, ele tá dentro do sistema (...). O princípio serve de guia para o legislador para não legislar contra os princípios e serve de guia ao intérprete, para não interpretar contra os princípios...
E assim a conversa prosseguiu por mais algum tempo; não muito, infelizmente. CANDIDO, que acabou chegando mais tarde, teve que sair mais cedo para resolver relevantes questões pessoais. Uma pena para nós; e acho que para ele também. Seguiu-se um almoço simples, mas penso que muito agradável para todos. Os assuntos processuais deram lugar a outros e assim foi até que nos despedíssemos.
Nosso encontro foi breve; ou, pelo menos, assim me pareceu. Foi breve como quase tudo que é bom na vida; mas, inesquecível. Há Mestres que, ao longo de anos, ensinam-nos mesmo quando nada dizem. Basta contemplar sua atitude ou até seu silêncio. Há obras perenes, como é o livro Teoria Geral do Processo. Ele continuará a ser o nosso Livro; o Livro de nossos alunos; dos alunos dos nossos alunos e quem sabe quanto mais...
Flávio Luiz Yarshell
Novembro de 2013