Migalhas Quentes

Direito na vida e obra de Machado de Assis

"Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos ; mas ao tempo dá Deus habeas corpus". A passagem de Machado de Assis revela o quanto o Direito invade a vida e a obra do Bruxo do Cosme Velho.

3/4/2013

"Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos ; mas ao tempo dá Deus habeas corpus". A passagem de Machado de Assis revela o quanto o Direito invade a vida e a obra do Bruxo do Cosme Velho.

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Na cronologia da vida de Machado de Assis, o livro Esaú e Jacó está catalogado no outonal período. De fato, já lhe passa o fogo primaveril, mas ainda, é certo, não lhe é chegado o inverno.

O título bíblico é apenas a sugestão do que vai se dar. No livro sagrado, a mãe que privilegia um dos filhos, em detrimento do outro, faz com que eles se tornem inimigos eternamente irreconciliáveis.

Aqui também há dois personagens, Pedro e Paulo, fraternalmente inimigos. Não – é bom que se diga – por conta da mãe, que neste caso faz tudo para vê-los unidos.

Jogando com as palavras, os pais de nossos personagens são Santos e Natividade .

Antes, porém, de os filhos nascerem, os pais já lucubravam sobre o sexo dos santos. Para eles “a perfeição seria nascer um casal”.

A curiosidade durante a gravidez foi tanta que Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta espírita. Ele estava sendo iniciado nessa religião, e por isso “tinha a fé noviça e firme”. Já a mulher tinha outra ideia, a de consultar “a cabocla do Castelo”, que era uma “adivinha célebre do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as futuras”.

Santos achou que procurar a Cabocla seria imitar as crendices da gente reles. No que rapidamente foi advertido pela mulher que citou o caso recente de uma “pessoa distinta, um juiz municipal, cuja nomeação foi anunciada pela cabocla”. Sem perder a ironia, Machado coloca na boca de Santos a afirmação de que “- Talvez o ministro da Justiça goste da cabocla”.

Mas vamos à obra, e o quê de jurídico há nela, além do supersticioso magistrado.

Nascem, antagônicos, os gêmeos Pedro e Paulo. Ainda fraldados, os pais sonhavam com os pimpolhos formados: um haveria de ser advogado, e o outro médico. “Houve quem os fizesse ministros, desembargadores, bispos, cardeais...”

Já com a prole maior, a mãe sacramenta: “– Você será médico, disse Natividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as piores demandas.”

Mas isso foi, em verdade, um hábil recurso para separá-los, pois embora nunca se tenham dado bem, brigavam. Com a escolha dos estudos, um ficaria no Rio de Janeiro, estudando Medicina, outro ia para São Paulo, estudar Direito nas Arcadas.

Assim se fez. E eis que surge nosso personagem jurídico, o irmão Paulo.

Mas a incompatibilidade dos gêmeos ainda haveria de aflorar mais forte nas paixões políticas. Antes, no entanto, é preciso situar o leitor na quadra da história. A obra é ambientada entre os anos de 1888 e 1891. É a chegada da tão sonhada libertação dos escravos. Estamos vivendo os efervescentes momentos da transição da monarquia para a república. Há o anúncio de decretos, e o prenúncio da revolução constitucional; a nova Carta Magna nasce no seio do povo.

Paulo, estudante das Arcadas, um republicano, vive este momento histórico nos bancos da Academia. E tem lá sua participação em alguns momentos. Pedro, por seu turno, era monarquista. Eram, assim, a personificação da rivalidade política da época.

Um pouco antes de os irmãos terem definido suas preferências, o pai anuncia a boa nova: tinha recebido o título de Barão de Santos. Mesmo a monarquia estando nos estertores (talvez aí o motivo da distribuição nobiliária à farta), muitas foram as comemorações do novel Barão. Primeiro vieram os cartões e as cartas de parabéns. Mais tarde, visitas. E, das primeiras, a dos “homens do foro”. O que é certo é que o título de Barão causou nos garotos marcas, surgindo daí, também, suas predileções políticas.

Para aumentar o mistério, Pedro e Paulo nasceram no Dia da Abdicação (7 de abril). Para um, era o dia em que perdíamos o imperador D. Pedro. Para o outro, com novo olhar, era o dia em ganhávamos o imperador D. Pedro. É certo que este era o II, e aquele o I, mas são, de fato, visões bem diferentes.

Na vida dos jovens, uma passagem merece ser contada. É a que trata do desejo deles de capturar o tempo, pois estavam os dois imberbes ansiosos pelo fim da lanugem no rosto. Mas “as barbas não queriam vir, por mais que eles chamassem o buço com os dedos”. E não queriam vir porque há o remédio heroico concedido por Machado, ao lembrar que “ao tempo dá Deus habeas corpus”.

E os irmãos seguem rivalizando-se. E eis que lhes chega o “cozido de ervilhas” [1]. É a jovem Flora, filha de Batista e D. Cláudia. O pai era advogado cível e político. Muito mais político, é preciso que se diga, do que advogado. Motivado pela esposa, vivia almejando cargos públicos de importância. Ora conservador, ora liberal. Enfim, um pusilânime manipulado pela ardilosa consorte.

A propósito de D. Cláudia, é dela uma das melhores tiradas do livro. Ela queria ir ao último Baile do Império, na Ilha Fiscal, menos pelo interesse em danças, e mais por ser um fato político “que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência”[2]. Batista, com pudores (não lá muito convictos), balouçava entre o conservadorismo e o liberalismo, e assim hesitava em confirmar sua presença. No que D. Cláudia, matando o argumento e encerrando a dúvida, diz : “não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha”. Eis, aliás, o que bem poderia ser o lema de alguns partidos de hoje em dia.

E o que tenho eu com isso? Questiona agora o leitor que procura notas jurídicas. É mesmo, não tem nada a ver uma coisa com outra. Mas, parafraseando o Bruxo do Come Velho, não é preciso ter as mesmas ideias para ler as mesmas migalhas.

Voltemos ao texto.

Entre as desavenças dos irmãos, num ponto ao menos eles concordaram. Foi em 1888, na libertação dos escravos.

Na Academia de São Paulo, em 20 de maio, Paulo teria feito um discurso (subversivo discurso), que assim se encerrou: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.”

E o acadêmico Paulo tinha razão.

A revolução começara, e o fim da monarquia era iminente. Um ano e alguns meses depois eis que está proclamada a República. Foi um bulício daqueles. Machado de Assis acalma o leitor, que está preocupado como o frenético movimento nas ruas da Corte, dizendo que “no sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

Quando vem a República, nossos gêmeos estão juntos no Rio de Janeiro. Paulo muito provavelmente de férias da Faculdade.

Monarquista, Pedro naturalmente se entristece. Já Paulo era só felicidade. Na rua, festejando, propôs aos amigos que cantassem, em homenagem ao novo regímen, a Marselhesa; o canto das revoluções.

Saímos de 1889 e rapidamente chegamos em 1891.

As pretensões políticas dos irmãos agora estavam arrefecidas, e eram olvidadas quando o assunto era o petit-pois. De fato, “agora pensavam mais em Flora que na subida”. E isso apesar da advertência machadiana, para quem “a boa moral pede que ponhamos a coisa pública acima das pessoas”.

Mas a eles seria exigir muito que “cuidassem mais da Constituição de 24 de fevereiro que da moça Batista”.

E ao falarem sobre aquela (a Constituição), eram completamente divergentes. Narrando em metáfora, “para não decair do estilo”, Machado afirma que se a Carta Magna “fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a própria Minerva nascida da cabeça de Jove”[3].

Mas quando o assunto era Flora, posto as injúrias continuassem, o debate constitucional esmorecia. “Iam chegando ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido”. Aliás, “cada um faria com ela a sua Constituição, melhor que outra qualquer deste mundo”.

O capítulo que narra as últimas magnas passagens é intitulado, por mais de um par motivos, de “Três Constituições”.

E por falar em Constituição, eis que surge um capítulo denominado “Estado de Sítio”. Era a oposição ao estado de direito dos gêmeos; é a morte de Flora. É, também, seu enterro. O féretro “teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio”. E acrescenta-se à metáfora que “a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver”. Ao cabo do decreto, todas as liberdades serão restauradas, “menos a de reviver”. “Quem morreu, morreu.”

No período em que estes fatos se dão, Paulo está formado em Direito pela Academia de S. Paulo. Nosso escritor não traz a data, mas é muito provavelmente um integrante da Turma de 1891. Meses depois, ele abria sua banca de advogado, na qual o procuravam os carecidos de justiça. Pedro também abriu seu consultório.

“Um prometia saúde, outro ganho de causa, e acertavam muita vez, porque não lhes faltava talento nem fortuna.”

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[1] Na Bíblia há, resumidamente, a seguinte passagem: “Um dia em que Jacó preparava um guisado, voltando Esaú fatigado do campo, disse-lhe: ‘Deixa-me comer um pouco dessa coisa vermelha, porque estou muito cansado.’ Jacó respondeu-lhe: ‘Vende-me primeiro o teu direito de primogenitura.’ ‘Morro de fome, que me importa o meu direito de primogenitura?’ ‘Jura-mo, pois, agora mesmo’, tornou Jacó. Esaú jurou e vendeu o seu direito de primogenitura a Jacó. Este deu-lhe pão e um prato de lentilhas.”

[2] A presidência que sonhava D. Cláudia era a presidência de alguma província, o que equivaleria hoje ao cargo de governador do Estado. Ocorre que em 1821 as capitanias viraram províncias, e assim permanecem durante todo o período imperial. Seus governantes - denominados presidentes - eram nomeados diretamente pelo imperador (Constituição de 1824, art. 165: “Haverá em cada Província um Presidente, nomeado pelo Imperador, que o poderá remover, quando entender, que assim convém ao bom serviço do Estado”).

[3] Na mitologia, Minerva, a deusa da Sabedoria, é filha de Jove (Júpiter). Conta-se que depois que Júpiter devorou sua primeira mulher, Métis, passou a sentir-se mal e surgiu-lhe uma terrível dor de cabeça. Pediu então para que Vulcano lhe abrisse a cabeça ao meio, de onde saiu, instantaneamente, Minerva. Foi imediatamente admitida entre os deuses, tornando-se uma das mais fiéis conselheiras de seu pai.

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* O trecho foi retirado de capítulo da obra "Doutor Machado - O direito na vida e na obra de Machado de Assis".

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Doutor Machado - O direito na vida e na obra de Machado de Assis

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