Migalhas Quentes

Fraude para recebimento de seguro rende condenação por litigância de má-fé

Carro furtado cruzou a fronteira com o Paraguai dois dias antes do sinistro.

31/7/2012

A 4ª câmara de Direito Civil do TJ/SC, em decisão relatada pelo desembargador Luiz Fernando Boller, condenou uma agência de turismo por litigância de má-fé ao entender comprovada fraude em furto de veículo.

Em seu voto, o relator ressaltou a existência de prova robusta, consubstanciada em documento expedido pela PF, composto inclusive por registros fotográficos, dando conta de que dois dias antes do alegado furto em Florianópolis, o veículo cruzou a fronteira com o Paraguai, inexistindo anotação de seu retorno ao Brasil.

O relator anotou que "em momento algum a apelante refere a data em que o Honda Civic teria regressado ao Brasil, e tampouco elucida o motivo de seu deslocamento até o Paraguai, merecendo destaque que a segurada sequer pugnou pela produção de prova testemunhal, a fim de comprovar que o bem segurado encontrava-se, efetivamente, em Florianópolis, na data do sinistro".

Assim, a empresa de turismo restou condenada em pena por litigância de má-fé, ordenando-se, ainda, a remessa de cópia dos autos ao MP, motivada por possível prática dos delitos de falsidade ideológica e fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro. A decisão foi unânime.

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Apelação Cível n. 2011.007058-2, da Capital

Relator: Des. Luiz Fernando Boller

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE VEÍCULO - NEGATIVA DE PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO PELA SEGURADORA SOB O ARGUMENTO DE QUE A SEGURADA NÃO TERIA COMPROVADO A EFETIVA OCORRÊNCIA DO FURTO - JUNTADA DE CERTIDÃO EXPEDIDA PELA SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA ATESTANDO QUE, DOIS DIAS ANTES DO REGISTRO POLICIAL DO SINISTRO, O VEÍCULO EM QUESTÃO TEVE SUA PASSAGEM REGISTRADA EM FOZ DO IGUAÇU-PARANÁ, EM DIREÇÃO À FRONTEIRA COM O PARAGUAI - ESCRITO QUE NÃO FOI OBJETO DE IMPUGNAÇÃO - INEXISTÊNCIA DE INFORMAÇÃO DA DATA DE REGRESSO DO AUTOMÓVEL A FLORIANÓPOLIS - AUSÊNCIA DE SUBSTRATO PROBATÓRIO CAPAZ DE COMPROVAR QUE O BEM SEGURADO ENCONTRAVA-SE EFETIVAMENTE NESTA COMARCA NA DATA DO EVENTO - ÔNUS DE QUE NÃO SE DESINCUMBIU A APELANTE - ART. 333, INC. I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR NÃO CONSTATADA - UTILIZAÇÃO DESVIRTUADA DO PROCESSO PARA O ATENDIMENTO DE CÚPIDO ANSEIO - ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA - COMINAÇÃO DE PENA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - ARTS. 16, 17, 18 e 18, § 2º, TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - MULTA NO EQUIVALENTE A 1% (HUM POR CENTO), CALCULADO SOBRE O VALOR ATRIBUÍDO À CAUSA, DEVIDAMENTE CORRIGIDO - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2011.007058-2, da comarca da Capital (4ª Vara Cível), em que é apelante Turisman Agência e Turismo Ltda., e apelada Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais:

A Quarta Câmara de Direito Civil decidiu,por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, condenando o apelante à pena por litigância de má-fé. Custas legais.

O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Victor Ferreira, com voto, e dele participou o Excelentíssimo Senhor Desembargador Substituto Jorge Luís Costa Beber. Funcionou como Representante do Ministério Público, o Excelentíssimo Senhor Doutor Mário Gemin.

Florianópolis, 26 de julho de 2012.

Luiz Fernando Boller

RELATOR

RELATÓRIO

Cuida-se de apelação cível interposta por Turisman Agência e Turismo Ltda., contra decisão definitiva prolatada pelo juízo da 4ª Vara Cível da comarca da Capital, que nos autos da ação de Cobrança nº 023.07.119677-6 (disponível em <_https3a_ esaj.tjsc.jus.br="" cpo="" pg="" _search.do3f_paginaconsulta="1&localPesquisa.cdLocal=23&" cbpesquisa="NUMPROC&tipoNuProcesso=SAJ&numeroDigitoAnoUnificado=&foroNumeroUnificado=&dePesquisaNuUnificado=&dePesquisa=023071196776">acesso nesta data), ajuizada contra a Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais, julgou improcedente o pedido, impondo à autora o dever de honrar as custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em R$ 1.000,00 (hum mil reais), consoante o disposto no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil, cuja exigibilidade restou sobrestada nos termos do art. 12 da Lei nº 1.060/50 (fls. 152/156).

Fundamentando a insurgência, a empresa apelante argumentou, em síntese, que o furto do Honda Civic de placa MCK-5116 (Renavam nº 810322340), de propriedade de sua sócia administradora Maria Amâncio, estaria devidamente comprovado nos autos através da juntada do Boletim de Ocorrência nº 60-2006-03625 (fls. 16/17), que goza de presunção juris tantum de veracidade.

Não bastasse isso, alegou que retirou previamente o kit de alimentação por gás natural instalado no automóvel furtado, porque "estava em andamento negociação para aquisição de veículo novo", situação que motivou, inclusive, a alteração da documentação daquele, "com a exclusão do combustível GNV", destacando, além disso, que o débito existente junto ao DETRAN-Departamento Estadual de Trânsito de Santa Catarina será adimplido "quando do pagamento da indenização" (fl. 163).

Também aduzindo que a seguradora apelada deve ser condenada ao pagamento de indenização por dano moral, além dos lucros cessantes, devidos em razão da privação de utilização do veículo para o exercício de sua atividade, pugnou pelo conhecimento e provimento do reclamo, com a integral reforma da sentença (fls. 159/165).

Recebido o apelo nos efeitos devolutivo e suspensivo (fl. 167), sobrevieram as respectivas contrarrazões, onde a Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais defende a negativa de cobertura sob o argumento de que o veículo segurado teria cruzado a fronteira do Paraguai 2 (dois) dias antes do registro policial do sinistro, inexistindo qualquer informação de seu regresso a Florianópolis-SC, situação que evidenciaria a má-fé da empresa recorrente ao noticiar a ocorrência do furto, não lhe sendo devida a indenização securitária, acentuando, além disso, que o Honda Civic estaria alienado fiduciariamente ao Banco General Motors S/A., havendo, portanto, mera "propriedade resolúvel sobre o bem", afirmando, mais, ser necessária a indicação da origem da restrição judicial existente "no registro do automóvel junto ao DETRAN" (fl. 174).

Destarte, garantindo que os fatos narrados na exordial não consubstanciariam abalo de cunho moral, e que - caso venha a ser dado provimento ao recurso - a segurada "deve providenciar a transferência dos salvados livres e desembaraçados de multas, impostos, taxas, financiamento ou qualquer outro valor que onere o automóvel" (fl. 176), bradou pela manutenção da sentença (fls. 170/176).

Ascendendo a esta Corte, os autos foram inicialmente distribuídos ao Desembargador Ronaldo Moritz Martins da Silva, vindo-me às mãos em razão de superveniente assento nesta Quarta Câmara de Direito Civil (fl. 181).

Este é o relatório.

VOTO

Conhece-se do presente apelo, pois demonstrados os respectivos pressupostos de admissibilidade.

Na situação objeto, Turisman Agência e Turismo Ltda. ajuizou a demanda originária, objetivando receber indenização pelo furto do Honda Civic de placa MCK-5116 (Renavam nº 810322340), objeto do contrato de seguro pactuado com a Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais por meio da Apólice nº 531.16.98.126-9 (fls. 14/15).

Em contrapartida, a seguradora defendeu a negativa de cobertura sob o argumento de que o veículo segurado teria cruzado a fronteira do Paraguai 2 (dois) dias antes do registro policial do suposto sinistro, inexistindo informação de seu retorno ao Brasil, situação que evidenciaria a má-fé da segurada, não lhe sendo devida, portanto, a respectiva indenização securitária.

Pois bem.

Convém inicialmente destacar que, segundo pacífico entendimento desta Corte, incidem na espécie as disposições cogentes da Lei nº 8.078/90, mesmo porque o art. 2º do Código de Defesa do Consumidor dispõe que 'consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final', ao passo que o § 2º do art. 3º assim dispõe:

Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

[...] § 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Aliás, por ocasião do julgamento da Apelação Cível nº 2008.063518-2, de Rio do Sul, a Primeira Câmara de Direito Civil assentou o entendimento de que

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE SEGURO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE. "Quando se trata de contrato de seguro, as relações contratuais securitárias encontram-se ao abrigo do código de defesa do consumidor, conforme dispõe o seu art. 3º, § 2º. O artigo 14, caput, do código de defesa do consumidor que estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, ou seja, a seguradora, e assim, possibilita que o segurado ajuíze ação de cobrança contra a empresa estipulante, bem como contra as seguradoras, pois estas têm o dever de informar suficientemente acerca das suas responsabilidades". (AI n. 2001.011499-2, Rel. Des. Carlos Prudêncio, DJ DE 19-8-2003). "A jurisprudência e a doutrina têm entendido, pacificamente, que o CDC é aplicável aos contratos de seguro, por estar configurada a relação de consumo, em observância aos arts. 2º e 3º do referido diploma legal". (AC n. 2005.043107-3, Rel. Des. Joel Dias Figueira Júnior, DJ DE 12-5-2006) [...] (AC nº 2008.063518-2, de Rio do Sul, julgado em 24/05/2011).

De outra banda, considerando a pertinência para a solução do caso, incumbe consignar que, consoante o que estabelece o art. 765 do Código Civil, 'o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes' (grifei).

A respeito do princípio da boa-fé, o ínclito Jones Figueiredo Alves preleciona que

[...] o princípio da mais estrita boa-fé (bona fidei negotia - CC de 1916, art. 1.443), assim como as regras que o disciplinam, deve reger o pactuado pelas partes. A omissão de circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta, por falta do dever de veracidade, infringe a fase das tratativas, por culpa in contraendo, integrada magistralmente por Jhering na seara da responsabilidade contratual. Desse modo, exige-se do segurado e do segurador um comportamento adequado a inspirar legítima e razoável confiança para a validade do contrato, agindo com boa-fé, lealdade e veracidade; e uma atuação permanente de probidade no especial interesse de preservar o contrato em sua firmeza obrigacional (in Código Civil Comentado. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 619 - sublinhei).

Doutrinando acerca da matéria, o notável Sérgio Cavalieri Filho complementa, aduzindo que

Risco e mutualismo jamais andarão juntos sem a boa-fé. Onde não houver boa-fé o seguro se torna impraticável. Se nos fosse possível usar uma imagem, diríamos que a boa-fé é a alma do contrato de seguro, o seu verdadeiro sopro de vida. E assim é em decorrência de suas próprias características, já examinadas: se o seguro é uma operação de massa, sempre realizada em escala comercial e fundada no estrito equilíbrio da mutualidade; se não é possível discutir previamente as suas cláusulas, uniformemente estabelecidas nas condições gerais da apólice; enfim, se o seguro, para atingir sua finalidade social, tem que ser rápido, eficiente, não podendo ficar na dependência de burocráticos processos de fiscalização, nem de morosas pesquisas por parte das seguradoras, então, a sua viabilidade depende da mais estrita boa-fé de ambas as partes. Se cada uma não usar de veracidade, o seguro se torna impraticável

Destaca ainda o renomado jurista que, [...] "essa estrita boa-fé deve existir não somente no momento da celebração do contrato de seguro, mas persistir também durante toda a sua execução e liquidação" (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 9 ed., 2010, p. 440/441).

Infere-se, pois, que a relação entre segurado e seguradora deve pautar-se no princípio da boa-fé, que urge estar presente não apenas no momento da contratação, mas durante toda a vigência do contrato de seguro.

Via de mão-dupla, a boa-fé é exigível de ambos os contratantes, que devem apresentar postura adequada a inspirar confiança para a legitimidade do contrato.

E, face a incidência das disposições cogentes do Código de Defesa do Consumidor nos contratos desta natureza, entendo que a boa-fé do segurado é presumida, incumbindo à seguradora provar sua eventual má-fé, condição esta necessária para legitimar a perda do direito ao recebimento da indenização securitária.

Neste sentido, em decisão de lavra do Desembargador Monteiro Rocha, a Segunda Câmara de Direito Civil assentou o entendimento de que "objetivando a seguradora eximir-se de obrigação securitária, deve ela provar suficientemente a má-fé do segurado, caso contrário, presume-se de boa-fé o consumidor" (AC nº 2004.012934-3, da Capital. Rel. Des. Monteiro Rocha, julgado em 09/03/2006).

No caso em questão, o Boletim de Ocorrência nº 60-2006-03625 (fls. 16/17), consigna o furto do Honda Civic de placa MCK-5116 (Renavam nº 810322340) - objeto do contrato de seguro pactuado -, pretensamente ocorrido às 22h00min de 12/06/2006, na rua Tolentino de Carvalho, no bairro Balneário Estreito, comarca de Florianópolis-SC.

Todavia, a Certidão de Passagem de Veículo nº 0071/06, expedida pela SENASP-Secretaria Nacional de Segurança Pública (fl. 78/80), revela que às 14h58min do dia 10/06/2006, o veículo em questão teve sua passagem registrada em Foz do Iguaçu-PR, em direção à fronteira com o Paraguai, inexistindo qualquer registro do seu regresso ao Brasil.

Tal documento, de origem pública, goza de presunção juris tantum de veracidade, ou seja, a sua desaprovação exige eficiente contraposição, o que, todavia, não se observa na espécie, na medida em que a realidade que ele traduz sequer foi impugnada pela apelante, Turisman Agência e Turismo Ltda., que limitou-se a afirmar que o furto estaria devidamente comprovado através do Boletim de Ocorrência.

Note-se que em momento algum a apelante refere a data em que o Honda Civic teria regressado ao Brasil, e tampouco elucidando o motivo de seu deslocamento até o Paraguai, merecendo destaque que a segurada sequer pugnou pela produção de prova testemunhal, a fim de comprovar que o bem segurado encontrava-se, efetivamente, em Florianópolis-SC, na data do sinistro.

Imperioso registrar, ainda, que o Boletim de Ocorrência nº 60-2006-03625 (fls. 16/17) apenas consignou declarações unilaterais da interessada, sem, todavia, atestar a veracidade do seu conteúdo, até mesmo porque a autoridade policial subscritora não presenciou o alegado furto.

O art. 333 do Código de Processo Civil estabelece que ao autor incumbe a prova dos fatos constitutivos de seu direito, ao passo que ao réu cabe a prova dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito daquele.

Para os notáveis Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart

A produção de prova não é um comportamento necessário para o julgamento favorável. Na verdade, o ônus da prova indica que a parte que não produzir prova se sujeitará ao risco de um resultado desfavorável. Ou seja, o descumprimento desse ônus não implica, necessariamente, um resultado desfavorável, mas no aumento do risco de um julgamento contrário, uma vez que, como precisamente adverte PATTI, uma certa margem de risco existe também para a parte que produziu a prova. (MARIONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz, Manual do Processo de Conhecimento, 4. ed., Editora: RT, 2005, p. 266).

Ao abordar o tema, os célebres Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, com extrema propriedade, exaltam que

Não existe obrigação que corresponda ao descumprimento do ônus. O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte.

[...] o ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu. O sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não se produza (Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante, 10. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 608).

Sobre a matéria, o ínclito Moacyr Amaral dos Santos ministra o ensinamento de que

Como a simples alegação não é suficiente para formar a convicção do juiz (allegatio et non probatio quasi non allegatio), surge a imprescindibilidade da prova da existência do fato. E dada a controvérsia entre autor e réu com referência ao fato e às suas circunstâncias, impondo-se, pois, prová-lo e prová-las, decorre o problema de saber a quem incumbe dar a sua prova. A quem incumbe o ônus da prova? Esse é o tema que se resume na expressão ônus da prova (Primeiras Linhas do Direito Processual Civil, Editora: Saraiva, 17ª ed., 1995, v. 2, p. 343/344).

Não diverge o longânime Ernane Fidélis dos Santos, para quem

O princípio que deve orientar o julgamento é o da verdade real dos fatos. [...] Um dos mais relevantes princípios subsidiários da verdade real é o da distribuição do ônus da prova. [...] A regra que impera mesmo em processo é a de que 'quem alega o fato deve prová-lo'. O fato será constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito, não importando a posição das partes no processo. Desde que haja a afirmação da existência ou inexistência de fato, de onde se extrai situação, circunstância ou direito a favorecer a quem alega, dele é o ônus da prova. [...] Em determinadas situações, o juiz lança mão de critério subsidiário da verdade real, usando-se do ônus da prova, mas para atribuí-lo à parte a quem desfavorece juízo de maior probabilidade. Quer-se provar que o cidadão não foi ao serviço em determinado dia, mas há dúvida sobre o fato. Sabe-se, contudo, que dos trinta dias do mês faltou ele vinte e cinco. Mesmo que a prova da falta pertença a outra parte, já há probabilidade maior a lhe favorecer, de forma tal que o empregado não pode ser desincumbido de provar o comparecimento. O juízo de maior probabilidade se mantém em estrita ligação com as regras de experiência (art. 335), aplicáveis de acordo com o quod plerumque fit. (Manual de Direito Processual Civil, volume 1: processo de conhecimento. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 509/511).

Ainda acerca do assunto, valioso é o ensinamento de Darci Guimarães Ribeiro:

É natural, provável, que um homem não julgue sem constatar o juízo com as provas que lhe são demonstradas. Quando o autor traz um fato e dele quer extrair conseqüências jurídicas, é que, via de regra, o réu nega em sentido geral as afirmações do autor; isto gera uma litigiosidade, que, por conseqüência lógica, faz nascer a dúvida, a incerteza no espírito de quem é chamado a julgar. Neste afã de julgar, o juiz se assemelha a um historiador, na medida em que procura reconstituir e avaliar os fatos passados com a finalidade de obter o máximo possível de certeza, pois o destinatário direto e principal da prova é o juiz. Salienta Moacyr A. Santos que também as partes, indiretamente, o são, pois igualmente precisam ficar convencidas, a fim de acolherem como justa a decisão. Para o juiz sentenciar é indispensável o sentimento de verdade, de certeza, pois sua decisão necessariamente deve corresponder à verdade, ou, no mínimo, aproximar-se dela. Ocorre recordar que a prova em juízo tem por objetivo reconstruir historicamente os fatos que interessam à causa, porém há sempre uma diferença possível entre os fatos, que ocorreram efetivamente fora do processo e a reconstrução destes fatos dentro do processo. Para o juiz não bastam as afirmações dos fatos, mas impõem-se a demonstração da sua existência ou inexistência, na medida em que um afirma e outro nega, um necessariamente deve ter existido num tempo e num lugar, i.e., uma de ambas as afirmações é verdadeira. Daí dizer com toda a autoridade J. Bentham que "el arte del proceso no es esencialmente otra cosa que el arte de administrar las pruebas''.

Segue o mestre asseverando que

O problema da verdade, da certeza absoluta, repercute em todas as searas do direito. A prova judiciária não haveria de escapar desses malefícios oriundos dessa concepção, tanto isto é certo que para o juiz sentenciar é necessário que as partes provem a verdade dos fatos alegados, segundo se depreende do art. 332 do Código de Processo Civil" [...].

Mais adiante, sintetiza que

Por objeto da prova se entende, também, que é o de provocar no juiz o convencimento sobre a matéria que versa a lide, i.e., convencê-lo de que os fatos alegados são verdadeiros, não importando a controvérsia sobre o fato, pois um fato, mesmo não controvertido, pode influenciar o juiz ao decidir, na medida que o elemento subjetivo do conceito de prova (convencer) pode ser obtido, e. g., mediante um fato notório, mediante um fato incontroverso.

Avulta, por fim, que

[...] a parte não está totalmente desincumbida do ônus da prova de uma questão de direito, na medida que cada qual quer ver a sua alegação vitoriosa devendo, por conseguinte, convencer o juiz da sua verdade. [...] o juiz julga sobre questões de fato com base no que é aduzido pelas partes e produzido na prova." (RIBEIRO, Darci Guimarães. Tendências modernas da prova. RJ n. 218. dez-1995. p. 5).

Conquanto a Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais tenha comprovado a existência de fato impeditivo do direito da Turisman Agência e Turismo Ltda., esta, por sua vez, deixou de apresentar qualquer elemento capaz de desconstituir a instigante documentação encartada pela seguradora.

Diante desse quadro, entendo legítima a recusa ao pagamento da indenização, sob o argumento de que não teria sido comprovada a ocorrência do furto noticiado no Boletim de Ocorrência nº 60-2006-03625, de modo que, por consequência, não há que se rematar a bem lançada decisão de 1º Grau, que compreende adequada valoração dos elementos de convicção carreados nos autos.

Acerca da matéria, por ocasião do julgamento da Apelação Cível nº 2010.076060-2, a Câmara Especial Regional de Chapecó concluiu que

SEGURO VEÍCULO - FURTO - FRAUDE QUANTO AO SINISTRO - ELEMENTOS PROBATÓRIOS CONVERGENTE NESTE SENTIDO - INDENIZAÇÃO INDEVIDA - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.

Desmotivado o conjunto probatório da efetiva causa do sinistro, o furto do veículo, contendo, pelo contrário, elementos de fraude à seguradora diante da notícia da subtração sem evidência, põe-se a falta da prova da existência do fato constitutivo do direito do autor, afirmado-se na forma do art. 333, inc. I, do CPC, sendo o ônus de que intenta a ação e, por consequência, a improcedência do pedido indenizatório para cobertura securitária (AC nº 2010.076060-2, de Xanxerê. Rel. Des. Guilherme Nunes Born, julgado em 30/09/2011).

Na mesma vereda:

AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ALEGAÇÃO DE FURTO DE VEÍCULO. PEDIDO DE PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. COMPROVAÇÃO, PELA RÉ, DO INGRESSO DO AUTOMÓVEL NO PARAGUAI UM DIA ANTES DE SER FURTADO. AUTORA QUE, POR SUA VEZ, NÃO PRODUZIU PROVA A DESCONSTITUIR A ALEGAÇÃO DA RÉ. DECISÃO MANTIDA. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.

"Como regra, cabe ao autor a prova do fato constitutivo da pretensão deduzida, e ao réu, a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo. Ocorrendo a réplica do artigo 326 do Código de Processo Civil, faz o autor as vezes de réu, cabendo-lhe impugnar os novos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão do demandante, trazidos na contestação. Se tal não ocorre, essa omissão traduz-se em confissão do autor, dispensado o réu de produzir prova a respeito, já que, sobre fatos incontroversos, não se faz prova, com a incidência do inciso III do artigo 334 do Código de Processo Civil" (Ap. Cív. n. 2006.033934-9, de Blumenau, rel. Des. Jaime Luiz Vicari, j. em 5-8-2010) (AC nº 2010.027922-8, de Blumenau. Rel. Des. Jaime Luiz Vicari, julgado em 12/03/2012).

E a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná não destoa:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. FURTO DE VEÍCULO SEGURADO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. INCONFORMISMO FORMALIZADO. ARGÜIÇÃO DE QUE NO DIA DOS FATOS, A AUTORA ESTAVA COM SEU AUTOMÓVEL. PROVAS TESTEMUNHAIS IMPRECISAS. COMPROVAÇÃO, ATRAVÉS DE CERTIDÃO EXPEDIDA PELA SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA DE QUE O VEÍCULO, UM DIA ANTES DO NOTICIADO FURTO, TERIA ATRAVESSADO A FRONTEIRA ENTRE O PARANÁ E O MATO GROSSO DO SUL, NO SENTIDO DO PARAGUAI. AUSÊNCIA DE REGISTRO DE REGRESSO DO AUTOMOTOR. INEXISTÊNCIA DE PROVAS PARA COMPROVAR OS FATOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO ALEGADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO (AC nº 696563-5, de Londrina. Rel. Des. Guimarães da Costa, julgado em 27/01/2011).

E, ainda,

Apelação Cível. Ação de indenização por danos materiais e morais. Seguro de veículo. Furto. Comprovação de que o veículo dias antes adentrou no Paraguai. Ausência de prova do seu regresso. Ônus da prova da segurada. Não cumprimento. Indenização indevida. Recurso desprovido.

Diante da recusa da ré/apelada em efetuar o pagamento da indenização - em virtude do veículo ter sido fotografado na fronteira Brasil/Paraguai, seis dias antes do furto noticiado, sem que haja informação de seu regresso - cabia à autora/apelante comprovar que seu veículo encontrava-se em Londrina no dia 28/03/2005, tendo ou não ido para o Paraguai em 22/03/2005.

Diante da ausência de prova efetiva do regresso do veículo da apelante, a seguradora apelada não possui responsabilidade de indenizá-la pelo suposto furto (AC nº 537118-4, de Londrina. Rel. Des. Hélio Henrique Lopes Fernandes Lima, julgado em 12/02/2009).

Por fim, tendo pleno conhecimento de todo o contexto probatório encartado nos autos, tenho para mim que a pretensão recursal constitui, insofismavelmente, circunstância tipificadora de litigância de má-fé.

Isto porque restou plenamente evidenciado o reprovável intento da Turisman Agência e Turismo Ltda. em dispor dos meios judiciais para obter injusta vantagem pecuniária.

Diante disso, insofismavelmente implementada está a circunstância preceituada no inciso III do art. 17 do Código de Processo Civil, qual seja, `usar do processo para conseguir objetivo ilegal', estando o sodalício, portanto - de ofício, ou a requerimento -, autorizado a condenar a litigante de má-fé a indenizar à parte contrária os prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e as despesas que efetuou (art. 18, do mesmo códice).

Sobre a utilização e manuseio do direito, de forma a caracterizar a litigância de má-fé, ensina José Manoel M. Bernal que

O uso normal é aquele que não excede as necessidades normais da vida, sendo contraposição equilibrada de interesses sociais e morais em jogo, emergentes de situações concretas em determinado lugar e época, o exercício anormal de um direito seria a exceção, pois na maioria das vezes o ordenamento é respeitado e o critério da anormalidade seria sempre objetivo em todas as doutrinas, pois poderia ser conceituado como desvio do fim econômico e social, intenção de prejudicar, rompimento do equilíbrio de interesses individuais e coletivos (BERNAL, José Manuel Martin. 'El abuso del derecho'. Madrid: Editorial Montevorco, 1982. p. 221-224).

Em relação ao dever de veracidade, José Olímpio de Castro Filho pontua que

Se não se apresenta ou se apresenta ilicitamente, normalmente a premissa (fato), abusa do direito de demandar, porque, sem aquela, a conclusão silogística (sentença) é juridicamente impossível. O abuso, uso anormal, indevido, então, consiste em pretender convocar alguém a juízo para discutir o que não existe (fato não proposto) ou que existe de modo diverso (fato produto da alteração da verdade). Por outro lado, também aí existe abuso porque ao Estado (Juiz) só pode ser pedida a prestação jurisdicional acerca de um fato e de fato exposto verazmente (CASTRO FILHO, José Olímpio de. Abuso do direito no processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960).

Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil (nº 17), Alfredo Buzaid referiu que

Posto que o processo civil seja de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas razões ético jurídicas, definiu o projeto como dever das partes: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; d) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (art. 17). E, em seguida, dispôs que "responde por perdas e danos todo aquele que pleitear de má-fé, como autor, réu ou interveniente" (art. 19). No art. 20 prescreveu: "Reputa-se litigante de má-fé aquele que: a) deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; b) alterar intencionalmente a verdade dos fatos; c) omitir intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa; d) usar do processo com o intuito de conseguir objetivo ilegal; e) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; f) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; g) provocar incidentes manifestamente infundados.

A boa-fé deve presidir a atividade das partes, estando ligada ao próprio conceito e à finalidade do processo: é elemento constitutivo do conceito e condição necessária de sua finalidade.

Neste tocante, Rosenberg afirma que

A relação jurídica processual impõe a todos que a compõem deveres, direitos e obrigações, e que em relação às partes não há um dever de atuar, recebendo as conseqüências de sua inércia ou rebeldia, porém, quando atuam devem fazê-lo honestamente, não faltando à verdade e não retardando o procedimento, têm "o dever de uma condução processual conveniente e cuidadosa" (ROSENBERG. 'apud' OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 43).

O art. 17, do Código de Processo Civil, elenca as hipóteses de atos atentatórios à dignidade da Justiça, de modo que, tendo a Turisman Agência e Turismo Ltda. movimentado a máquina judiciária a seu bel prazer, segundo sua conveniência - não atendendo aos objetivos sociais do processo -, é de ser condenada em pena por litigância de má-fé, visto que seu ato deve ser considerado como atentatório à dignidade da Justiça.

O art. 18, do Código de Processo Civil, que regra a aplicação pecuniária da condenação pela litigância de má-fé, no entender de Ana Lúcia Iucker Meirelles de Oliveira, pode ser interpretado da seguinte forma:

Se o juiz afere a conduta ímproba e a parte prejudicada não alega prejuízos materiais, a indenização só é devida pelos danos morais, pois o litigante foi atingido no seu direito de ter um processo pautado pela probidade, e ainda, a indenização tem caráter nitidamente sancionador; pode, então, o juiz estabelecer, desde logo, a sanção em até 21% do valor da causa: 1% a título de multa e 20% a título de indenização. Do mesmo modo, se o prejudicado comprova prejuízos em valor a menor que o percentual mencionado, o juiz pode condenar de imediato até aquele valor, além da multa ('in' Litigância de má-fé. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000).

Assim, com arrimo em o estatuído nos artigos 16, 17, 18 e 18, § 2º, todos do Código de Processo Civil, à autora/apelante deve ser cominada pena por litigância de má-fé, no equivalente a 1% (hum por cento) calculado sobre o valor atribuído à causa (fl. 11), devidamente corrigido.

Dessarte, voto no sentido de se conhecer e negar provimento ao reclamo interposto pela Turisman Agência e Turismo Ltda., condenando-a em pena por litigância de má-fé no equivalente a 1% (hum por cento) do valor da causa, devidamente corrigido.

Este é o voto.

Em razão da existência de sólidos indicativos da prática do delito capitulado no art. 171, inc. V, do Código Penal, bem como, ainda - em relação à lavratura do Boletim de Ocorrência de fls. 16/17 -, pela violação do estatuído nos arts. 299 e 340, ambos do Decreto-Lei nº 2.848/40, o colegiado de julgadores decidiu que, após trânsito em julgado este decisum, será remetida cópia fotostática autêntica e integral do presente feito ao Ministério Público, para a adoção das medidas legais pertinentes.

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