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Mercado Livre indenizará usuária que teve cadastro desabilitado
A mulher narrou que era cadastrada junto ao site Mercado Livre desde novembro de 2008. Em março de 2010, por e-mail, foi comunicada da inabilitação de seu cadastro, cuja denominação era AZSHOP.
Segundo o comunicado, enviado pela empresa, a autora já havia sido desabilitada anteriormente, por não cumprir com as políticas estabelecidas nos Termos e Condições do Mercado Livre. Em contato com a empresa, foi informada de que o departamento de Prevenção e Segurança da demandada havia detectado coincidências cadastrais entre seus dados e os de outro cadastro inabilitado por não agir de acordo com os termos estabelecidos.
No entanto, a autora ressalta que durante o período em que manteve o cadastro, destacou-se no meio de vendas, sendo convidada a se tornar o que o site denomina de melhor vendedor, procedimento que exige o fornecimento de uma série de dados para fins cadastrais.
Segundo a desembargadora Liége Puricelli Pires, relatora do recurso, o ato do site não apenas extirpou o comércio da autora, como também foi capaz de lhe manchar a imagem de forma bruta perante os outros usuários, principalmente os compradores.
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Processo: 70041956384
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APELAÇÃO CÍVEL Nº 70041956384
DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
COMARCA DE SANTA MARIA
APELANTE: L.B.P.
APELADO: MERCADOLIVRE.COM ATIVIDADES DE INTERNET LTDA
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO ORDINÁRIA. INABILITAÇÃO DE CADASTRO NO MERCADO LIVRE. CONDUTA ARBITRÁRIA E UNILATERAL. VIOLAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA. INOBSERVÂNCIA AO DEVER ANEXO DA COLABORAÇÃO, PARA FINS DE PRESERVAÇÃO DO CONTRATO. CARACTERIZAÇÃO DE ATO ILÍCITO OBJETIVO DE NATUREZA EXTRACONTRATUAL. PARCIAL PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS.
A boa-fé prevista no artigo 422 do Código Civil representa regra de conduta adequada às relações negociais, correspondendo às expectativas legítimas que as partes depositam na negociação. Demonstrado nos autos a conduta arbitrária, unilateral e desarrazoada do Mercado Livre, de inabilitar usuário que obedecia aos termos e condições do contrato de prestação de serviço relativo à utilização do site, premiado com medalha destinada aos melhores vendedores, e que possuía 100% das qualificações positivas, resta caracterizada a violação positiva do contrato, por descumprimento do dever anexo de cooperação ou colaboração, que visa à manutenção do contrato. Suspeita do réu acerca de inabilitação anterior do cadastro da autora que não se confirmou minimamente. O descumprimento de deveres anexos consubstancia ilícito de natureza objetiva, ensejando indenização pelos prejuízos suportados pela requerente. Parcial procedência do pleito inicial, para o fim de determinar a reabilitação do cadastro da parte demandante, com todas os benefícios e qualificações anteriores à inabilitação, bem como para condenar o réu ao pagamento de indenização por dano moral, devidamente comprovado no caso em razão da péssima reputação que o usuário ficou na plataforma virtual vendas, sendo desacolhido o pedido a título de lucros cessantes. Sucumbência redimensionada.
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO À UNANIMIDADE.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO (PRESIDENTE E REVISORA) E DES. LUIZ RENATO ALVES DA SILVA.
Porto Alegre, 10 de novembro de 2011.
DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES,
Relatora
RELATÓRIO
DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES (RELATORA)
Adoto, de início, o relatório da sentença:
L.B.P. ajuizou ação cominatória cumulada com pedido de indenização por danos morais e materiais contra MERCADOLIVRE.COM ATIVIDADES DE INTERNET LTDA.
Disse possuir cadastro junto ao demandado desde 20 de novembro de 2008. Em 1º de março de 2010, através de e-mail, sem possibilidade de defesa e sob justificativa equivocada, foi comunicada da inabilitação de seu cadastro, cujo denominação é “AZSHOP”.
Segundo o comunicado enviado pela demandada, a demandante já havia sido desabilitada anteriormente, por não cumprir com as políticas estabelecidas nos Termos e Condições do mercado Livre. Em contato com a empresa, foi informada de que o departamento de Prevenção e Segurança da demandada havia detectado coincidências cadastrais entre seus dados cadastrais e os dados de outro cadastro inabilitado por não agir de acordo com os teros acima referidos.
Relatou que, durante o período em que manteve o cadastro, destacou-se no meio de vendas, sendo convidada a se tornar o que o demandado denomina de “melhor vendedor, procedimento que exige o fornecimento de uma série de dados para fins cadastrais.
Observou ter trabalhado anteriormente em equipe técnica de empresa que realizava vendas no portal da demandada. Tal empresa possuía cadastro próprio e utilizava a denominação “NAVEMIL”. Acredita que possa ser este o fato mencionado pela demandada, contudo,se for o caso, aduz não existir razoabilidade, já que era empregada da pessoa jurídica em questão.
Discorreu acerca dos prejuízos morais e materiais que sofridos em decorrência do procedimento da demandada.
Como antecipação dos efeitos da tutela, em resumo, pediu a inversão do ônus da prova, bem como: a) que a empresa seja compelida a reabilitar o seu cadastro; b) que encaminhe e-mail aos usuários do sítio retratando-se do que foi dito a respeito da demandante; c) a devolução de anúncios publicados quando da inabilitação; d) que se abstenha de praticar atos tendentes a prejudicar suas atividades no sítio, e; e) a juntada de toda a documentação relativa às partes, especialmente as que embasaram a inabilitação.
No mérito, postulou a confirmação das medidas requeridas em sede de antecipação, assim como a condenação da demandada ao pagamento de indenizações por danos morais, na quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), e materiais, na modalidade de lucros cessantes, na quantia de R$ 90,00 (noventa mil reais), por dia de inabilitação. Juntou documentos (fls. 22/66).
Indeferido o pedido de inversão do ônus probatório e postergada a análise do pedido antecipatório para após a contestação (fl. 67). Interposto agravo de instrumento (fls. 69/82). Negado provimento ao recurso (fl. 233).
Citada, a demandada apresentou contestação (fls. 84/119). Em resumo, afirmou ter identificado semelhanças de dados entre o cadastro da demandante e o cadastro que utilizada o apelido “NAVEMIL”, cuja atuação sofreu uma série de reclamações e foi desabilitado, estando a situação em discussão no processo nº 027/1.09.0021015-2, da 4ª Vara Cível de Santa Maria. Discorreu a respeito das irregularidades praticadas pela “NAVEMIL”.
Afirmou não possuir interesse no cancelamento do cadastro da demandante, visando apenas a segurança dos usuários do site. Defendeu não se tratar de relação de consumo. Sustentou a inexistência de pressupostos para a responsabilidade civil. Pediu a improcedência dos pedidos. Juntou documentos (fls. 120/231).
Réplica (fls. 234/244).
Vieram novas manifestações e documentos juntados pelas partes (fls. 248/298).
Acrescento que sobreveio julgamento de improcedência (fls. 299-301), restando a autora condenada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% do valor atribuído à causa, suspensa a exigibilidade, contudo, diante do deferimento da gratuidade judiciária.
Inconformada, apelou a autora (fls. 303-315), sustentando a procedência do pleito sob o argumento de que não existe a mencionada “coincidência de cadastro” com o usuário NAVEML, fato que acabou por desabilitar o seu próprio cadastro. Contou que a NAVEML foi anteriormente banida do site do demandado, mas que o seu cadastro próprio, de nome AZSHOP, é inclusive anterior ao da empresa banida, não havendo qualquer coincidência. Narra ter trabalhado para a empresa de cadastro NAVEML, sendo demitida após a inabilitação daquela, tendo profissionalizado seu próprio comércio, uma vez que tinha adquirido conhecimento. Sustenta que o caso se trata de relação de consumo, pois o réu presta o serviço de utilização da plataforma para o comércio e, em troca, recebe remuneração por meio de comissões. Alega que a conduta do réu, ao efetuar a inabilitação sem qualquer aviso ou pedido de informação, fere o princípio basilar do contraditório e viola a boa-fé objetiva. Discorre acerca da constitucionalização do direito privado. Nesses termos, pede o provimento do recurso, com a total procedência dos pedidos formulados na inicial.
Recebido o apelo e respondido, subiram os autos.
Observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552 do Código de Processo Civil, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES (RELATORA)
Por atendimento aos requisitos intrínsecos e extrínsecos, conheço do recurso.
As partes mantiveram contrato de prestação de serviços relativo à disponibilização, pelo réu, de espaço virtual no site Mercado Livre – www.mercadolivre.com.br – para que a autora efetuasse a venda de mercadorias. A demandante é pessoa física e atuava no referido site sob o cadastro denominado AZSHOP.
Discute-se no presente processo a inabilitação da usuária, o que, segundo alega o demandado, ocorreu em virtude de coincidências de cadastro de anterior usuário, já inabilitado, cujo cadastro era o de nome NAVEML.
Verifica-se dos documentos acostados à inicial que a autora foi cadastrada no Mercado Livre em 20/11/2008 (fl. 48). Em virtude dos termos e condições da empresa ré, em 14/2/2010 à autora foi possibilitado fazer parte do grupo de vendedores denominado “MercadoLíder” (fl. 47), com o que ela prontamente anuiu, mandando os dados necessários (fl. 49). Em 1º/3/2010, contudo, mesmo fazendo parte do “MercadoLíder”, com 100% das qualificações positivas (fls. 53-56), o cadastro da demandante foi inabilitado (fl. 51), uma vez que o departamento de Prevenção e Segurança “detectou coincidências cadastrais” entre o cadastro da demandante “e outro cadastro inabilitado por não agir de acordo com nossos Termos e Condições” (fl. 52).
O “outro cadastro inabilitado” trata-se do denominado NAVEML. De acordo com a sentença, “apesar de não se poder afirmar que se tratam do mesmo usuário – até porque não é objeto da lide –, impossível deixar de considerar razoável a suspeita da demandada. Ao que de vê, tudo indica tratar-se do mesmo usuário ou da existência de proximidade entre os usuários daqueles apelidos. Logo, frente a tal situação, a demandada fez uso do seu exercício regular do direito de fiscalização das transações. Ao suspender as negociações em curso com a demandante, até que a situação fosse melhor apurada, agiu preventivamente e com prudência.”
Entretanto, a leitura atenta dos autos levou-me a conclusão diversa.
Em primeiro lugar, saliento que a autora não nega, desde a inicial, que efetivamente trabalhou na empresa de cadastro NAVEML, tendo adquirido experiência, e que, após a inabilitação daquela, passou a operar o seu próprio comércio, sob o cadastro AZSHOP.
Em segundo lugar, chamou-me muito a atenção o fato de que o réu, em sua contestação, não apontou SEQUER UMA COINCIDÊNCIA entre os dois cadastros, tendo tão somente dito que a autora, na própria exordial, teria mencionado a relação entre os usuários. Aliás, para não dizer que não houve qualquer menção acerca de coincidências, o Mercado Livre apontou que “os patronos da autora no presente feito são os mesmos da empresa que operava sob o cadastro NAVEML”, indicando, para tanto, o número do processo (n. 027/10900210152), e acostando a primeira folha da respectiva petição inicial à fl. 179.
De pronto, acessei as informações do referido processo por meio da página eletrônica deste Tribunal de Justiça, e verifiquei que também versa sobre inabilitação perante o Mercado Livre. Naquele feito, em primeiro grau (o processo está em grau de apelo), houve julgamento de parcial procedência do pleito formulado pela empresa cujo cadastro era NAVEML (Rodrigues e Montera Ltda.), uma vez reconhecido, em suma, que as comissões decorrentes das vendas tinham sido repassadas, nada havendo o Mercado Livre que cobrar. Naquela sentença, determinou-se a reabilitação da NAVEML ao sítio eletrônico do Mercado Livre, a condenação deste ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00, bem como à repetição de indébito no valor de R$ 3.047,74 (dobro do valor cobrado) e lucros cessantes.
Pois bem.
Retomando aos pontos por intermédio dos quais tive impressão diversa da sentença, refiro que, apenas após a apresentação da réplica, por meio da petição das fls. 259-261 a parte demandada apresentou argumentos no tocante à suposta identidade entre os cadastros NAVEML e AZSHOP, apresentando os documentos das fls. 282-289. Apontou o réu que ambos os usuários efetuavam acessos ao site Mercado Livre da mesma máquina, identificada pelo cookie n. 324121846 e pelo IP da mesma região, além de que negociavam o mesmo tipo de produto.
Entretanto, tais fatores não são capazes de gerar mínima convicção no sentido de se tratar do mesmo usuário, até porque, como já se disse, a autora referiu expressamente à inicial que trabalhou junto ao cadastro NAVEML como funcionária da empresa usuária, tanto que por meio dele é que adquiriu know-how para comercializar seus produtos. O acesso por meio da mesma máquina é explicado pelo simples fato de que o cadastro da autora já existia ao tempo da criação do cadastro dito como coincidente, nenhum obstáculo havendo em um operador possuir seu próprio domínio. Ora, de forma hipotética, se alguém trabalha perante uma empresa de roupas, vendendo-as no Mercado Livre, nada o impede que tenha seu próprio usuário e venda virtualmente também as suas próprias roupas.
Não existe neste processo qualquer demonstração no sentido de que a autora, perante seu usuário AZSHOP, no Mercado Livre, tenha agido em desconformidade com os termos e condições da empresa demandada, uma vez que as ditas coincidências com o perfil banido (NAVEML) não se confirmaram.
É nítida a quebra injustificada do contrato no caso concreto.
Sem qualquer questionamento ou aviso prévio, o cadastro da autora, que já tinha quase dois anos de funcionamento e era exemplar, assim reconhecido pelo próprio Mercado Livre (medalha “MercadoLíder”) e pelos demais usuários do site (100% de qualificações positivas), foi simplesmente inabilitado.
Aliás, fez-se questão de citar os termos da sentença prolatada no processo movido pela própria NAVEML como grande indício de que sequer aquela empresa deveria ter sido inabilitada. Logo, tendo o perfil da autora sido excluído com base na exclusão do outro, e havendo a procedência naquele feito, isso, por si só, já traduz forte noção de acolhimento da presente irresignação, ainda que parcial.
O Novo Código Civil, rompendo com o patrimonialismo e individualismo que nortearam o pensamento jurídico do século passado, traz novos valores e princípios para o direito privado brasileiro: a socialidade (função social ao direito civil – exemplos: artigos 421 – função social do contrato; artigo 608 – repercussão social do contrato, artigo 1.228 – função social da propriedade), a eticidade (inserção do elemento ético no direito civil – as relações privadas devem possuir preocupações éticas – exemplo: artigo 422 – boa-fé objetiva) e a operabilidade (as normas civis devem ser facilmente entendidas pelo cidadão em prol de uma aplicação concreta do Código). Tal evolução na principiologia do novo Código decorreu não apenas em razão dos sopros sociais trazidos no período pós-guerras, mas também como forma de estabelecer consonância com a nova ordem constitucional trazida pela Carta Política de 1988, apelidada de Constituição Cidadã.
Desse modo, e sobremaneira em observância ao princípio da eticidade (considerado para alguns doutrinadores como valor jurídico), tenho que a leitura e a interpretação do art. 422 do CC/02 não pode se limitar à sua restrita literalidade, ao dispor:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Com efeito, essa leitura e interpretação do dispositivo, à luz do princípio da eticidade, deve se operar de forma ampliativa, extensiva, de modo que a boa-fé objetiva deve estar presente não apenas na conclusão e execução do contrato, mas também na fase preparatória e de tratativas (fase de puntuação) e na fase pós-contratual, ou seja, nos efeitos decorrentes do contrato após a sua extinção. A constatação da observância da boa-fé em todas as fases do contrato, e inclusive após sua extinção, já se encontra consagrada na jurisprudência desta Corte, desde o clássico precedente do caso dos “tomates da Cica” – Apelação Cível nº 591028295.
Nesse sentido, impõe-se salientar que dentre as funções da cláusula geral da boa-fé objetiva temos a função constitutiva de deveres anexos ou instrumentais (Nebenpflichten), cujo descumprimento implica a chamada violação positiva do contrato, porquanto decorrente não de um descumprimento de cláusula contratual (violação negativa), mas da não-observância de um desses deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva. Os deveres anexos, portanto, tem natureza extracontratual, mas encontram-se implícitos em qualquer negócio jurídico. Tal violação positiva do contrato gera a hipótese de responsabilidade civil do tipo objetiva, dispensando discussões acerca da culpa.
São deveres anexos: a) dever de segurança, tutela ou proteção; b) dever de informação, esclarecimento ou aconselhamento; c) dever de lealdade ou fidelidade; d) dever de cooperação ou colaboração.
Vale destacar o enunciado 24 da 1ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
24 – Art. 422: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.
Feitas essas considerações teóricas, impõe-se salientar que a linha de defesa da demandada parte de um pressuposto básico: o alegado cumprimento das obrigações por ela assumidas, ou ausência de descumprimento das cláusulas contratadas. Contudo, a doutrina moderna do direito privado desdobrou as hipóteses de violação contratual, como antes referido, dividindo-a em violações negativas (inadimplemento das obrigações acordadas expressamente no instrumento negocial) e violações negativas (descumprimento dos deveres anexos do contrato).
No caso dos autos, a conduta da demandada em desabilitar o cadastro AZSHOP sem qualquer pedido de esclarecimento ou aviso prévio, quando funcionava corretamente por período superior a um ano, sem dúvida alguma violou o dever de cooperação, um dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, vinculado à ideia de preservar o vínculo contratual, mesmo não havendo base legal. Considerando o referido dever, além da próprio contraditório, constitucionalmente previsto, impunha-se à demandada perquirir se realmente havia alguma ligação da autora com os supostos ilícitos cometidos pelo usuário NAVEML, e, principalmente, se a autora estava a cometer tais ilícitos contratuais. Ignorar tal obrigação, bem simples aliás, consistiu prática abusiva pelo requerido, violando a boa-fé objetiva e gerando o dever de indenizar os prejuízos, configurando hipótese de responsabilidade do tipo objetiva.
Ocorre que, antes da inabilitação efetuada pelo réu, era excelente a “reputação” da autora por meio do usuário AZSHOP. O ato do demandado não apenas extirpou o comércio da autora – quiçá produto de seu próprio sustento – como também foi capaz de lhe manchar a imagem de forma bruta perante os outros usuários, principalmente os compradores. E isso porque, com a inabilitação arbitrária e unilateral, o Mercado Livre enviou e-mail a todos os usuários que estavam com negócios em trâmite com a autora (segundo a inicial, foram cento e trinta e três clientes), no sentido de que não avançassem nas negociações com a AZSHOP, tendo em vista que suas atividades estavam sendo investigadas (documento da fl. 65).
É o que se vê das mensagens enviadas pelos compradores da autora, tanto no próprio site como por e-mail:
- “Conforme orientação do MERCADO LIVRE de não prosseguir na transação com este usuário, resolvi por bem desistir da compra do produto.” (fl. 57)
- “Mercado livre suspendeu o vendedor das atividades de venda!!” (fl. 58)
- “ola vocês não estão mais no ml recebi um email dizendo isso. No aguardo.” (fl. 61)
- “Quero saber se meu pedido será despachado. O motivo do meu contato foi o recebimento de uma mensagem do Mercado Livre alertando-me a não avançar na negociação. O que houve? WARANA Washington.” (fl. 63)
- “Ola. Acabei de receber o e-mail abaixo do mercado livre. Como efetuei o pagamento pelo Pag Seguro, não vejo problemas na negociação. Porém gostaria de saber da parte de vocês se a negociação será realmente concretizada. Obrigada. João.” (fl. 65)
- “Dá pra parar de mandar e-mails, o mercado livre me avisou que você não é confiável, suspendeu seu cadastro e pediu para não continuar com as negociações, bem que eu desconfiei.” (fl. 66)
Como houve expectativa frustrada da autora, no sentido de que estava livre para efetuar negociações, arrecadando clientela, tendo o próprio site lhe conferido medalha de ótimo vendedor, em decorrência do instituto da boa-fé incide o princípio do tu quoque, vedando a adoção de comportamentos contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a determinado direito subjetivo derivado do contrato .
Desta feita, verificada a existência da prática de ato ilícito, decorrente da violação positiva do contrato pela demandada, e ainda, a imagem péssima que ficou perante a comunidade Mercado Livre (fato devidamente comprovado pelos documentos das fls. 57-66, acima citado), em que, como se sabe, a reputação do usuário conta de imensa forma, inequívocos os danos morais causados à autora, e a necessidade de reparação.
Quanto ao valor da indenização decorrente de danos morais, a ser fixada mediante prudente arbítrio do Magistrado, a jurisprudência recomenda a análise da condição social da vítima e do causador do dano, da gravidade, natureza e repercussão da ofensa, assim como um exame do grau de reprovabilidade da conduta do ofensor, e de eventual contribuição da vítima ao evento danoso. A razoabilidade, valendo-me da expressão usada por Sérgio Cavalieri Filho, deve servir ao julgador como “bússola” à mensuração do dano e sua reparação.
Ao concreto, demonstrada a abusividade do ato praticado pelo demandado, e levando em conta os vetores acima referidos, bem assim o caráter pedagógico da indenização, o qual faço questão de frisar, em se tratando de dano moral puro, e, ainda, o axioma jurídico de que a reparação não pode servir de causa a enriquecimento injustificado, tenho por fixar a indenização por danos morais em R$ 8.000,00, além de se coadunar com os parâmetros comumente adotados por esta Câmara em situações análogas.
Acolho também o pedido de reabilitação do cadastro da autora no Mercado Livre, com a devolução das condições adquiridas, inclusive a medalha “Mercado Líder”, e exclusão das qualificações negativas ocorridas após a arbitrária e unilateral inabilitação.
Não vejo necessidade no comando de retratação do demandado, no sentido de enviar e-mail aos usuários informando sobre o equívoco no comunicado anterior, pois os fatos narrados à inicial já datam mais de ano. Sabe-se a rotatividade e imenso número de usuários de um site como o Mercado Livre, de forma que o comando anterior, de reabilitação com as condições anteriores à inabilitação, são suficientes à retomada e continuidade do negócio mantido pela autora.
Julgo improcedente o pedido formulado a título de lucros cessantes, no valor de R$ 90,00 por dia em que o cadastro ficou desabilitado, uma vez que a autora não fez prova acerca do fato. Não merece ser postergada a análise para liquidação de sentença, diante da ausência de elementos de convicção suficientes a fornecer parâmetros objetivos necessários a fim de estimar a quantia supostamente devida.
Assim, ficam acolhidos os pedidos de reabilitação do cadastro da autora no Mercado Livre e de indenização por dano moral, sendo desacolhido o pedido indenizatório por danos materiais.
Por fim, tendo em vista mostrar-se incabível o exame pontual de cada norma ventilada, para que não haja alegação de omissão em embargos de declaração, sob pena inclusive de incidência de multa, dou por prequestionados os dispositivos arguidos no decorrer do processo.
DISPOSITIVO
Com essas considerações, dou parcial provimento ao recurso, a fim de julgar parcialmente procedente o pleito inicial, para: a) determinar a reabilitação da demandante à plataforma do réu Mercado Livre, com a devolução das condições adquiridas, inclusive a medalha “Mercado Líder”, e exclusão das qualificações negativas ocorridas após a arbitrária e unilateral inabilitação; b) condenar o réu a pagar à autora o valor de R$ 8.000,00 a título de indenização por danos morais, acrescidos de correção monetária pelo IGP-M e juros legais, ambos a contar do presente acórdão.
Diante da sucumbência recíproca, arcará a autora com o pagamento de 30% das custas processuais e honorários advocatícios ao patrono do réu, no valor de R$ 400,00, ficando o réu responsável pelo pagamento dos restantes 70% das custas, mais honorários ao procurador da autora, em quantia equivalente a 20% sobre o valor da condenação. Suspensa a exigibilidade de pagamento em relação à autora, por litigar sob o benefício da gratuidade, e permitida a compensação entre os honorários, nos termos do art. 21, caput, do Código de Processo Civil e da Súmula nº 306 do STJ .
É o voto.
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO (PRESIDENTE E REVISORA) - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. LUIZ RENATO ALVES DA SILVA - De acordo com o(a) Relator(a).
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO - Presidente - Apelação Cível nº 70041956384, Comarca de Santa Maria: "À UNANIMIDADE, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO."