STJ
Início de liquidação ordinária não suspende execução de dívidas contra empresa
Na hipótese de liquidação ordinária prevista pela lei das S/A - Sociedades Anônimas (6.404/76), os credores de dívidas vencidas e exigíveis podem ajuizar ação de execução de seus créditos, pois não são obrigados a aguardar o procedimento de liquidação para receber o que lhes é devido.
A conclusão é da 3ª turma do STJ, em recurso no qual NN Viagens e Turismo S/A (nova denominação da Varig Travel S/A) solicitava a extinção de execução porque estava em processo de liquidação extrajudicial.
A ministra Nancy Andrighi, relatora, assinalou que "a liquidação não implica o vencimento antecipado das dívidas, já que a sociedade mantém sua personalidade jurídica até a ultimação do processo. Assim, credores por dívidas não vencidas não podem interferir no processo de liquidação, assim como os credores cujos débitos sejam regularmente satisfeitos, na forma do título, também não podem se opor. Contudo, se a personalidade jurídica da empresa é regularmente mantida, não há motivos para que, descumpridos os compromissos assumidos pela sociedade, não possam os credores demandar seus direitos em juízo. A mesma lógica que determina a ausência de vencimento antecipado de títulos, deve também determinar o pagamento pontual dos créditos vencidos".
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Processo relacionado: REsp 1.082.580
Veja a íntegra da decisão.
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RECURSO ESPECIAL Nº 1.082.580 - SP (2008/0180527-3)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE: NN VIAGENS E TURISMO S/A - EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL
ADVOGADOS: JOSÉ RICARDO BIAZZO SIMON / CAMILA PEREIRA RODRIGUES MOREIRA MARQUES E OUTRO(S)
RECORRIDO: PNX PARS S/C LTDA
ADVOGADO: PAULO GUILHERME DE MENDONÇA LOPES E OUTRO(S)
EMENTA
PROCESSO CIVIL E SOCIETÁRIO. LIQUIDAÇÃO ORDINÁRIA DE SOCIEDADE ANÔNIMA, POR DELIBERAÇÃO DE ASSEMBLEIA-GERAL. AJUIZAMENTO DE EXECUÇÃO POR CREDOR TITULAR DE CRÉDITO VENCIDO. PRETENSÃO A QUE SE SUSPENDA A EXECUÇÃO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 18 DA LEI 6.024/74. IMPOSSIBILIDADE.
1. Os arts. 206 e seguintes da Lei das S/A estabelecem um procedimento de concurso universal, à medida que a lei determina, em seu art. 214, que sejam observadas as preferências legais para o pagamento dos credores da sociedade em liquidação. Essa circunstância não retira, contudo, o caráter privado da liquidação ordinária deliberada em assembleia-geral, uma vez que ela é feita por decisão dos sócios, para atendimento dos seus interesses na dissolução da companhia.
2. Na hipótese de liquidação ordinária, os credores por dívidas ainda não vencidas submetem-se obrigatoriamente ao procedimento, desde que seus créditos sejam regularmente pagos nos respectivos vencimentos. Os credores por dívidas vencidas e exigíveis, por outro lado, não podem ser obrigados a aguardar o procedimento de liquidação.
3. A essa conclusão é possível chegar por vários motivos. Em primeiro lugar, não é possível determinar, por um ato privado dos sócios da empresa em liquidação, a restrição de direitos individuais de terceiros. Se um credor detém um título vencido e a pretensão executiva, é dele a faculdade de buscar a realização de seu crédito. Em segundo lugar, a suspensão das pretensões executivas vai além do mero interesse no concurso universal: ela deve implicar também a suspensão da prescrição. Sem determinação legal de suspensão da prescrição, é natural que credores tenham receio quanto à extinção das respectivas pretensões. Em terceiro lugar, em todos os concursos universais nos quais a lei prevê suspensão de ações e prescrição, ela também determina, como contrapartida, a fiscalização do procedimento pelo Ministério Público, o que não ocorre na liquidação ordinária. Em quarto lugar, a liquidação de sociedades é um procedimento feito em favor dos sócios, no qual o pagamento dos credores figura como condição para a distribuição do saldo remanescente. Portanto, somente a satisfação dos credores nos respectivos vencimentos preenche a condição indispensável do prosseguimento da liquidação.
4. Recurso especial conhecido, mas não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 15 de dezembro de 2011 (Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto por NN VIAGENS E TURISMO S/A - EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL, nova denominação de VARIG TRAVEL S/A, em liquidação extrajudicial, objetivando impugnar acórdão exarado pelo TJ/SP no julgamento de agravo de instrumento.
Ação: de execução de contrato de confissão de dívida, ajuizada por PNX PARS S/C LTDA. em face da recorrente, para recebimento de título no valor de R$ 190.603,00.
Exceção de pré-executividade: apresentada pela recorrente, solicitando a extinção da execução, porquanto estava em processo de liquidação extrajudicial.
Decisão: não acolheu a exceção de pré-executividade por dois motivos: (i) porque a excipiente apenas havia iniciado o procedimento de liquidação, que ainda não havia sido decretada pelo juízo; (ii) pois a exceção de pré-executividade se destinaria a obstar o prosseguimento de execução que fosse nula desde a origem, não se prestando para a "ordinarização da execução".
Agravo de instrumento: interposto pela recorrente, foi improvido por decisão unipessoal.
Agravo interno: interposto, foi improvido pelo TJ/SP nos termos da seguinte ementa:
Sociedade em liquidação - Varig Travel S/A - Pretendida extinção de processo de execução enquanto em curso o processo liquidatório - Inadmissibilidade - Não cabimento de aplicação analógica da Lei 6.024/74, artigo 18, uma vez que referida Lei é específica em relação às instituições financeiras - Acerto do r. despacho guerreado - Agravo não provido (voto 3265).
Embargos de declaração: interpostos, foram rejeitados pelo TJ/SP.
Recurso especial: interposto com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional. O recorrente alega violação dos arts. 586 e 618, I, do CPC, 210, III e 214 da Lei das S/A e, por fim, 18, "a", da Lei 6.024/74, aplicável à hipótese por extensão.
Admissibilidade: o recurso não foi admitido na origem, motivando a interposição do Ag. 928.918/SP, a que dei provimento para melhor apreciação da controvérsia.
Parecer do MPF: subscrito pelo i. Subprocurador-Geral da República Dr. Pedro Henrique Távora Niess, pelo conhecimento e improvimento do recurso.
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cinge-se a lide a definir se é cabível a suspensão de ação de execução fundamentada em confissão de dívida, pelo início do procedimento de liquidação extrajudicial de sociedade anônima.
I - A inexigibilidade do título. Violação dos arts. 586 e 618, I, do CPC
A recorrente afirma que a execução por ela impugnada deveria ser extinta por inexigibilidade do título executivo. O fundamento é o de que, por força do procedimento de liquidação extrajudicial da sociedade anônima executada, a cobrança do respectivo crédito deveria obedecer à ordem legal a ser estabelecida pelo liquidante, sendo incabível a cobrança individual do crédito.
Como se nota de plano, o motivo da inexigibilidade da confissão de dívida não está relacionado a qualquer defeito formal do título, respectivo pagamento ou a qualquer questão de direito processual. O fundamento da impugnação confunde-se com o mérito deste recurso, a saber, a possibilidade de se suspender a exigibilidade do título pela liquidação ordinária da empresa. Assim, a matéria será apreciada como um todo, no bojo da alegação de ofensa aos arts. 210 e 214 da Lei das S/A e 18 da Lei 6.024/74.
II – Os efeitos da liquidação ordinária de Companhia. Violação dos arts. 210 e 214 da Lei das S/A e 18 da Lei 6.024/74.
Consoante a regra insculpida no art. 206 da Lei das S/A, há três formas de liquidação de uma companhia: (i) liquidação de pleno direito ou ordinária que ocorre (i.1) pelo término do prazo de duração; (i.2) nos casos previstos no estatuto; (i.3) por deliberação da assembleia-geral; (i.4) pela existência de um acionista, se o mínimo de dois não for reconstituído em um ano; (i.5) pela extinção de sua autorização para funcionar; (ii) liquidação judicial, que se dá (ii.1) quando anulada sua constituição, em ação proposta por qualquer acionista; (ii.2) quando provada a impossibilidade de preenchimento de seu fim, em ação proposta por acionistas representando no mínimo 5% do capital social; e (ii.3) em caso de falência, na forma prevista na respectiva lei; e, por fim, (iii) administrativa, por decisão da autoridade competente, como ocorre nas hipóteses de liquidação extrajudicial de instituições financeiras, regulada pela Lei 6.024/74.
A hipótese dos autos é de liquidação ordinária deliberada por assembleia-geral, mediante a nomeação de um liquidante na forma do art. 208 da Lei das S/A, objetivando o levantamento do ativo, elaboração de balanço, venda dos bens e pagamento, na medida das forças da empresa, de todo o passivo, respeitada a ordem de preferências legais (art. 214 da Lei das S/A). Na hipótese de insuficiência do ativo incumbe-lhe requerer, se necessário, a falência ou a recuperação judicial da empresa (art. 210, VII, da Lei das S/A).
Tanto nas hipóteses de liquidação judicial por falência (art. 6º da Lei 11.101/05) como na administrativa (art. 18 da Lei 6.024/74), há previsão expressa de suspensão de ações e execuções propostas contra a sociedade sujeita ao concurso universal. Para as hipóteses de liquidação ordinária, contudo, a Lei das S/A é omissa.
O recorrente desenvolve a tese de que não há motivos para que o mesmo procedimento não seja estendido a essa modalidade de liquidação, notadamente por dois motivos: (i) em primeiro lugar, porque a Lei das S/A, ao determinar que os débitos da companhia em processo de liquidação ordinária obedeçam à ordem legal de pagamento (art. 214 da Lei das S/A), estaria implicitamente ordenando a suspensão das execuções, já que, admitindo-se que elas prossigam, a observância dessa ordem se tornaria impossível; e (ii) poder-se-ia invocar, na espécie, a aplicação analógica do disposto no art. 18 da Lei 6.024/74.
O TJ/SP rejeitou a pretensão pelo fundamento de que a liquidação teria sido requerida, porém ainda não deferida, de modo que nenhum concurso universal teria sido estabelecido a justificar a suspensão das execuções. No entanto, com todas as vênias aos ilustres julgadores, as manifestações das partes e elementos da causa dão a entender que a hipótese, aqui, é de liquidação ordinária extrajudicial, cujo modo de estabelecimento é por deliberação da assembleia-geral. Não há um requerimento a ser deferido pelo Juiz, que só teria cabimento nas hipóteses de liquidação judicial da companhia (art. 206, II, da Lei das S/A). Portanto, a partir da deliberação em assembleia-geral, a liquidação está instaurada. A matéria, portanto, tem de ser apreciada por outra ótica.
A questão é de difícil solução. Não há dúvidas de que os arts. 206 e seguintes da Lei das S/A estabelecem um procedimento de concurso universal. Isso torna-se evidente por seu art. 214 que diz, expressamente, que, “respeitados os direitos dos credores preferenciais, o liquidante pagará as dívidas sociais proporcionalmente e sem distinção entre vencidas e vincendas, mas, em relação a estas, com desconto às taxas bancárias”. Se a Lei determina o respeito às preferências legais nos pagamentos, naturalmente trata de uma hipótese de concurso. Para se admitir um procedimento concursal, é importante que se tenha apenas uma fonte de realização de ativos e pagamento de passivos, sob pena de inviabilização do sistema.
Contudo, é importante ressaltar, em contrapartida, que entre as funções do liquidante, há um dever muito importante: o de “confessar a falência da companhia e pedir concordata (rectius, recuperação), nos casos previstos em lei”. É preciso compreender o que a Lei quer dizer ao incluir tal incumbência entre as funções do liquidante.
À primeira vista, parece que está estabelecida uma sequência lógica de procedimentos a serem adotados, no art. 210 da Lei: primeiro o liquidante arquivaria e publicaria a ata da assembleia-geral (inc. I); depois arrecadaria os bens, livros e documentos da companhia (inc. II); depois faria o levantamento do balanço (inc. III); ultimaria os negócios da empresa em seguida, realizando o ativo, pagando o passivo e partilhando o remanescente (inc. IV); exigiria a integrlaização de ações, se necessário (inc. V); e, só depois disso, caso entendesse cabível, o liquidante poderia “confessar a falência da empresa” (inc. VII).
Contudo, se fosse essa a interpretação a ser dada à Lei, o requerimento de falência faria pouco ou nenhum sentido: com a venda de todo o patrimônio e sua divisão, qual seria a finalidade de se estabelecer o concurso universal em juízo?
A verdade é que essa suposta ordem de providências não existe. Tanto que a própria Lei de Falências (Lei 11.101/2005) estabelece, em seu art. 96, §1º, que “não será decretada a falência de sociedade anônima após liquidado e partilhado seu ativo”. A falência de sociedades anônimas, portanto, nos termos do art. 210, VII, da Lei das S/A, somente poderia ser requerida antes da realização completa do ativo.
A única forma que parece tornar possível a harmonização das disposições seria a de consenso para a liquidação extrajudicial. Vale dizer: se os sócios deliberam a liquidação da companhia, compete a cada credor por dívida vencida submeter-se espontaneamente ao respectivo procedimento. Na hipótese de impossibilidade de se promover a liquidação por força da oposição dos credores, o liquidante vê-se obrigado a requerer a falência da companhia. Caso não o faça, faculta-se tal requerimento aos credores.
A essa conclusão é possível chegar por vários motivos. Em primeiro lugar, não é possível determinar, por um ato privado dos sócios da empresa em liquidação, a restrição de direitos individuais de terceiros. Se um credor detém um título vencido e há pretensão executiva, é dele a faculdade de buscar a realização de seu crédito. Em segundo lugar, a suspensão das pretensões executivas vai além do mero interesse no concurso universal: ela deve implicar também a suspensão da prescrição. Sem determinação legal de suspensão da prescrição, é natural que credores tenham receio quanto à extinção das respectivas pretensões. Em terceiro lugar, em todos os concursos universais nos quais a lei prevê suspensão de ações e prescrição, ela também determina, como contrapartida, a fiscalização do procedimento pelo Ministério Público, o que não ocorre na liquidação ordinária. Em quarto lugar, a liquidação de sociedades é um procedimento feito em favor dos sócios, no qual o pagamento dos credores figura como condição para a distribuição do saldo remanescente. Portanto, somente a satisfação dos credores nos respectivos vencimentos preenche a condição indispensável do prosseguimento da liquidação.
Neste ponto, é importante compreender o alcance de uma afirmação comumente encontrada na doutrina, acerca da posição dos credores no processo de liquidação ordinária extrajudicial. FRAN MARTINS, comentando o art. 208 da Lei das S/A, apoiando-se na autoridade de CUNHA PEIXOTO, anota que, “por se destinar a liquidação à partilha do patrimônio social entre os sócios – e não, precipuamente, ao pagamento dos credores sociais – é que estes credores não têm interferência direta no processo de liquidação, que de fato interessa apenas aos acionistas” (Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, rev. e atualiz. Por Roberto Papini – 4ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 879).
Essa afirmação, que parece desabonar a tese defendida neste voto, na verdade a corrobora. Com efeito, referida afirmação é feita, na verdade, tendo em vista o fato de que a liquidação não implica o vencimento antecipado das dívidas, já que a sociedade mantém sua personalidade jurídica até a ultimação do processo. Assim, credores por dívidas não vencidas não podem interferir no processo de liquidação, assim como os credores cujos débitos sejam regularmente satisfeitos, na forma do título, também não podem se opor.
Contudo, se a personalidade jurídica da empresa é regularmente mantida, não há motivos para que, descumpridos os compromissos assumidos pela sociedade, não possam os credores demandar seus direitos em juízo. A mesma lógica que determina a ausência de vencimento antecipado de títulos, deve também determinar o pagamento pontual dos créditos vencidos. Nesse sentido, novamente, é a doutrina de FRAN MARTINS:
“Como a pessoa jurídica permanece durante todo o período de liquidação e os credores são garantidos pelo patrimônio social, podendo, inclusive, agir contra a sociedade, se os seus créditos não forem pagos regularmente, não haverá nenhum prejuízo para os mesmos pelo fato de ser feita a avaliação pelo valor contábil dos bens, já que, interessando o assunto, principalmente, aos sócios, não há necessidade de ser o balanço publicado” (op. cit. p. 885)
Dessarte, não é possível acolher a tese sustentada no recurso especial, com todas as vênias ao ilustre Professor Modesto Carvalhosa, que elaborou substancioso parecer em sentido contrário, acostado aos autos a fls. 161 a 225 (e-STJ). Não há violação dos arts. 210 e 214 da Lei das S/A e 18 da Lei 6.024/74.
Forte nessas razões, conheço do recurso especial mas lhe nego provimento.
Brasília (DF), 15 de dezembro de 2011 (Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora