Habeas corpus
Ministro Celso de Mello alerta para uso inapropriado do HC
O alerta foi feito na decisão em que o ministro arquivou o HC (109327 - clique aqui), impetrado em causa própria por um recém-diplomado bacharel em Direito, que pretendia ter sua carteira de estagiário da OAB/RJ substituída por uma inscrição definitiva como advogado. No HC, o bacharel pedia também que o próprio relator declarasse a inconstitucionalidade da lei que exige prova para o exercício da função de advogado.
"A ação de 'habeas corpus' destina-se, unicamente, a amparar a imediata liberdade de locomoção física das pessoas, revelando-se estranha, à sua específica finalidade jurídico-constitucional, qualquer pretensão que vise a desconstituir atos que não se mostrem ofensivos, ainda que potencialmente, ao direito de ir, de vir e de permanecer das pessoas", afirmou o ministro.
Celso de Mello ressaltou que o STF, atento à destinação constitucional do HC, não tem conhecido os HCs quando utilizados, como no caso em questão, em situações que não envolvam qualquer ofensa à liberdade de ir e vir. "É que entendimento diverso conduziria, necessariamente, à descaracterização desse instrumento tutelar da liberdade de locomoção. Não se pode desconhecer que, com a cessação da doutrina brasileira do habeas corpus, motivada pela Reforma Constitucional de 1926, restaurou-se, em nosso sistema jurídico, a função clássica desse remédio heróico", enfatizou Mello.
Quanto ao caso específico, o ministro afirmou que "mesmo que fosse admissível, na espécie, o remédio de habeas corpus (e não o é!), ainda assim referida ação constitucional mostrar-se-ia insuscetível de conhecimento, eis que o impetrante sequer indicou a existência de ato concreto que pudesse ofender, de modo direto e imediato, o direito de ir, vir e permanecer do ora paciente".
"Vale insistir, bem por isso, na asserção de que o habeas corpus, em sua condição de instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, configura um poderoso meio de cessação do injusto constrangimento ao estado de liberdade de locomoção física das pessoas. Se essa liberdade não se expõe a qualquer tipo de cerceamento, e se o direito de ir, vir ou permanecer sequer se revela ameaçado, nada justifica o emprego do remédio heróico do habeas corpus, por não estar em causa a liberdade de locomoção física", enfatizou o decano do STF.
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Processo relacionado : HC 109327 - clique aqui.
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MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 109.327 RIO DE JANEIRO
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
PACTE.(S) : R. I. A.
IMPTE.(S) : R. I. A.
COATOR(A/S)(ES) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃOEMENTA: PRETENDIDA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO EXAME DE ORDEM (LEI Nº 8.906/94, ART. 8º, IV, E § 1º). INVALIDAÇÃO DA INSCRIÇÃO COMO ESTAGIÁRIO. CONSEQÜENTE OUTORGA, AO IMPETRANTE, DE INSCRIÇÃO, NOS QUADROS DA OAB, COMO ADVOGADO. UTILIZAÇÃO, PARA TAL FINALIDADE, DA AÇÃO DE “HABEAS CORPUS”. INADEQUAÇÃO ABSOLUTA DO MEIO PROCESSUAL UTILIZADO. CESSAÇÃO DA DOUTRINA BRASILEIRA DO “HABEAS CORPUS” (1926). INADMISSIBILIDADE DA AÇÃO DE “HABEAS CORPUS” COMO SUCEDÂNEO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES. “HABEAS CORPUS” NÃO CONHECIDO.
DECISÃO
Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, em que são apontados, como autoridades e órgãos coatores, a “Presidência da República, Ministro da Educação, Presidente do Conselho Nacional da OAB, Presidente da OAB-RJ, Ministro das Comunicações e STF”.
Busca-se, em síntese, nesta sede processual, (a) “que o autor tenha imediatamente restabelecida a condição de ir e vir com seus pertences, hoje apropriados pela Presidência da República (...)”; (b) “que, de imediato, haja o cancelamento da inscrição suplementar, que contém o número de identificação do impetrante junto à OAB/RJ, e que se expeça carteira com o nome do autor (...)”; (c) “que o julgador, por si mesmo ou submetido ao Plenário, declare a inconstitucionalidade da lei que exige prova, para exercer função de advogado” (grifei).
Sendo esse o contexto, passo a examinar a questão pertinente à admissibilidade, na espécie, da presente ação de “habeas corpus”.
Tenho para mim que se revela processualmente inviável a presente impetração, por tratar-se de matéria insuscetível de exame em sede de “habeas corpus”.
Como se sabe, a ação de “habeas corpus” destina-se, unicamente, a amparar a imediata liberdade de locomoção física das pessoas, revelando-se estranha, à sua específica finalidade jurídico-constitucional, qualquer pretensão que vise a desconstituir atos que não se mostrem ofensivos, ainda que potencialmente, ao direito de ir, de vir e de permanecer das pessoas.
É por tal razão que o Supremo Tribunal Federal, atento à destinação constitucional do “habeas corpus”, não tem conhecido do remédio heróico, quando utilizado, como no caso, em situações de que não resulte qualquer possibilidade de ofensa ao “jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque” (RTJ 116/523 – RTJ 141/159).
A ação de “habeas corpus”, portanto, enquanto remédio jurídico-constitucional revestido de finalidade específica, não pode ser utilizada como sucedâneo de outras ações judiciais, notadamente naquelas hipóteses em que o direito-fim (ou direito-escopo, na expressão feliz de PEDRO LESSA) não se identifica - tal como neste caso ocorre - com a própria liberdade de locomoção física.
É que entendimento diverso conduziria, necessariamente, à descaracterização desse instrumento tutelar da liberdade de locomoção. Não se pode desconhecer que, com a cessação da doutrina brasileira do “habeas corpus”, motivada pela Reforma Constitucional de 1926, restaurou-se, em nosso sistema jurídico, a função clássica desse remédio heróico. Por tal razão, não se revela suscetível de conhecimento a ação de “habeas corpus”, quando promovida contra ato estatal de que não resulte, de modo imediato, ofensa, atual ou iminente, à liberdade de locomoção física (RTJ 135/593 – RTJ 136/1226 – RTJ 142/896 – RTJ 152/140- RTJ 178/1231 - RTJ 180/962 – RTJ 197/587-588, v.g.):
“A função clássica do ‘habeas corpus’ restringe-se à estreita tutela da imediata liberdade de locomoção física das pessoas. - A ação de ‘habeas corpus’ - desde que inexistente qualquer situação de dano efetivo ou de risco potencial ao ‘jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque’ - não se revela cabível, mesmo quando ajuizada para discutir eventual nulidade do processo penal em que proferida decisão condenatória definitivamente executada.
Esse entendimento decorre da circunstância histórica de a Reforma Constitucional de 1926 - que importou na cessação da doutrina brasileira do ‘habeas corpus’ – haver restaurado a função clássica desse extraordinário remédio processual, destinando-o, quanto à sua finalidade, à específica tutela jurisdicional da imediata liberdade de locomoção física das pessoas. Precedentes.” (RTJ 186/261-262, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Vale insistir, bem por isso, na asserção de que o “habeas corpus”, em sua condição de instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, configura um poderoso meio de cessação do injusto constrangimento ao estado de liberdade de locomoção física das pessoas. Se essa liberdade não se expõe a qualquer tipo de cerceamento, e se o direito de ir, vir ou permanecer sequer se revela ameaçado, nada justifica o emprego do remédio heróico do “habeas corpus”, por não estar em causa a liberdade de locomoção física:
“CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’: CABIMENTO. C.F., art. 5º, LXVIII.
I. – O ‘habeas corpus’ visa a proteger a liberdade de locomoção - liberdade de ir, vir e ficar - por ilegalidade ou abuso de poder, não podendo ser utilizado para proteção de direitos outros. C.F., art. 5º, LXVIII. II. – H.C. indeferido, liminarmente. Agravo não provido.” (HC 82.880-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Pleno -grifei)Cabe reafirmar, desse modo, que esse remédio constitucional, considerada a sua específica destinação tutelar, tem por finalidade amparar, em sede jurisdicional, “única e diretamente, a liberdade de locomoção. Ele se destina à estreita tutela da imediata liberdade física de ir e vir dos indivíduos (...)” (RTJ 66/396 – RTJ 177/1206-1207 - RT 423/327 – RT 338/99 - RF 213/390 – RF 222/336 – RF 230/280, v.g.), excluída, portanto, a possibilidade de se questionar, no âmbito do processo de “habeas corpus”, como ora pretendido pelo impetrante, a legitimidade constitucional do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), no ponto em que tornou exigível, para efeito de inscrição nos quadros da OAB, a “aprovação em Exame de Ordem” (art. 8º, IV, e § 1º).
Inadmissível, por igual, consideradas as mesmas razões que venho de expor, a utilização do presente “writ” constitucional para, mediante concessão da ordem de “habeas corpus”, invalidar-se a inscrição do ora impetrante como estagiário (Lei nº 8.906/94, art. 9º), a fim de substituí-la por inscrição definitiva como Advogado.
Mesmo que fosse admissível, na espécie, o remédio de “habeas corpus” (e não o é!), ainda assim referida ação constitucional mostrar-se-ia insuscetível de conhecimento, eis que o impetrante sequer indicou a existência de ato concreto que pudesse ofender, de modo direto e imediato, o direito de ir, vir e permanecer do ora paciente.
Como se sabe, a ação de “habeas corpus” exige, para efeito de cognoscibilidade, a indicação - específica e individualizada – de fatos concretos cuja ocorrência possa repercutir na esfera da imediata liberdade de locomoção física dos indivíduos.
O fato irrecusável, desse modo, é que, sem a precisa indicação, pelo autor do “writ”, de atos concretos e específicos, não há como reputar processualmente viável o ajuizamento da ação constitucional de “habeas corpus”.
Esse entendimento é perfilhado por EDUARDO ESPÍNOLA FILHO (“Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. VII/277, item n. 1.372, 2000, Bookseller), em abordagem na qual enfatiza a imprescindibilidade da concreta indicação do ato coator:
“A petição deve, pois, conter todos os requisitos de uma exposição suficientemente clara, com explanação e narração sobre a violência, suas causas, sua ilegalidade. Não se faz mister, porém, que a petição esteja instruída com o conteúdo da ordem pela qual o paciente está preso, porque esta falta não pode prejudicar, e é perfeitamente sanável.
A petição, dando parte da espécie de constrangimento, que o paciente sofre, ou está na iminência de sofrer, deve argumentar no sentido de convencer da ilegalidade da violência, ou coação (...).
É óbvio, há todo interesse, para o requerente, em precisar os fatos, tão pormenorizada, tão circunstancialmente, quanto lhe for possível, pois melhor se orientará a autoridade judiciária, a que é submetida a espécie (...).” (grifei)
Daí a observação feita por ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO e ANTONIO SCARANCE FERNANDES (“Recursos no Processo Penal”, p. 362, item n. 242, 5ª ed., 2008, RT):
“O Código exige, finalmente, a menção à espécie de constrangimento e, no caso de ameaça, as razões em que se funda o temor, ou seja, a indicação dos fatos que constituem a ‘causa petendi’.” (grifei)
Esse entendimento doutrinário – que repele a utilização do instrumento constitucional do “habeas corpus”, quando ausente, na petição de impetração, menção específica a fatos concretos ensejadores da alegada situação de injusto constrangimento (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 1.756, item n. 654.7, 11ª ed., 2007, Atlas; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 529, item n. 20.15.10, 14ª ed., 2007, Saraiva; TALES CASTELO BRANCO, “Teoria e Prática dos Recursos Criminais”, p. 158, item n. 156, 2003, Saraiva) – reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, a propósito do tema, assim se tem pronunciado:
“‘HABEAS CORPUS’ – IMPETRAÇÃO QUE NÃO INDICA QUALQUER COMPORTAMENTO CONCRETO ATRIBUÍDO À AUTORIDADE APONTADA COMO COATORA – PEDIDO NÃO CONHECIDO.
Torna-se insuscetível de conhecimento o ‘habeas corpus’ em cujo âmbito o impetrante não indique qualquer ato concreto que revele, por parte da autoridade apontada como coatora, a prática de comportamento abusivo ou de conduta revestida de ilicitude.” (RTJ 159/894, Rel. Min. CELSO DE MELLO)“Não há como admitir o processamento da ação de habeas corpus, se o impetrante deixa de atribuir à autoridade apontada como coatora a prática de ato concreto que evidencie a ocorrência de um específico comportamento abusivo ou revestido de ilegalidade.” (RTJ 164/193-194, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
É por tal motivo que a ausência de precisa indicação de atos concretos e específicos inviabiliza, processualmente, o conhecimento da ação constitucional de “habeas corpus”, como tem advertido o Plenário desta Suprema Corte (HC 83.966-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Vê-se, portanto, que a pretensão deduzida nesta sede processual claramente evidencia que o ora impetrante, na realidade, pretende questionar “in abstracto” - sem qualquer referência concreta pertinente a uma situação específica - a própria constitucionalidade de “Lei que exige prova, para exercer função de advogado”.
Cabe ter presente, bem por isso, na perspectiva do caso ora em exame, que o remédio de “habeas corpus” não pode ser utilizado como (inadmissível) sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, eis que o ora impetrante não dispõe, para efeito de ativação da jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal, da necessária legitimidade ativa “ad causam” para o processo de controle normativo abstrato:
“1. ‘HABEAS CORPUS’. Declaração de inconstitucionalidade de normas estaduais. Caráter principal da pretensão. Inadmissibilidade. Remédio que não se presta a controle abstrato de constitucionalidade. Pedido não conhecido. Ação de ‘habeas corpus’ não se presta a controle abstrato de constitucionalidade de lei (...).” (HC 81.489/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – Segunda Turma - grifei)
Registro, finalmente, por relevante, que Juízes do Supremo Tribunal Federal, em contexto semelhante ao que emerge deste processo, não têm conhecido de ações de “habeas corpus”, considerado o fundamento de que o remédio heróico não pode ser utilizado como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade (HC 74.991/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 95.921/RN, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – HC 96.238/DF, Rel. Min. MENEZES DIREITO – HC 96.301/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – HC 96.425/SP, Rel. Min. EROS GRAU – HC 96.748/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 97.763/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 103.998/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES, v.g.).
Sendo assim, e em face das razões expostas, não conheço da presente ação de “habeas corpus”, restando prejudicado, em conseqüência, o exame do pedido de medida liminar.
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 04 de agosto de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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