Proporcionalidade
TJ/SP - Acusado de sair sem pagar estacionamento deve indenizar shopping
Decisão da 4ª vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro, proferida em junho do ano passado, já havia condenado o homem a pagar indenização no valor de R$ 3, além dos honorários do advogado do shopping, mas ele recorreu ao TJ/SP pedindo a reforma da sentença.
Os desembargadores Gilberto dos Santos (relator), Gil Coelho e Luis Fernando Nishi deram parcial provimento à apelação. A indenização foi mantida, mas os desembargadores entenderam que cada parte deverá arcar com os honorários de seus advogados.
De acordo com o voto do relator, a verba honorária é "só um reflexo da demanda e não algo que se põe acima desta, como se fosse um fim em si mesmo. Quem, ademais, se propõe a patrocinar causa de pequeno valor não pode esperar recompensa significativa, porque isso foge à 'natureza das coisas'".
O desembargador Gilberto dos Santos, em nítido desabafo, também abordou em seu voto a questão da interposição de ações envolvendo casos simples:
"A presente ação é o retrato da falência total do bom senso. Quando pessoas altamente esclarecidas não conseguem entender e se desvencilhar de problema tão pífio como o dos autos, que envolve valor absolutamente irrisório, e ainda insistem em continuar discutindo em Juízo, acende-se um sinal de alerta, indicando que é necessário repensar o sistema. A ordem jurídica está normativamente orientada para o bem comum e como tal é que deve ser utilizada".
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Processo : 0106655-78.2009.8.26.0002.
- Confira abaixo a decisão na íntegra.
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Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 990.10.450569-0, da Comarca de São Paulo, em que é apelante V.L.R sendo apelado SP.M ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS S/C LTDA.
ACORDAM, em 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "DERAM PROVIMENTO EM PARTE AO RECURSO. V. U.", de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores VIEIRA DE MORAES (Presidente sem voto), GIL COELHO E LUÍS FERNANDO NISHI.
São Paulo, 25 de novembro de 2010.
GILBERTO DOS SANTOS
RELATOR
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO - 11ª CÂMARA
APELAÇÃO COM REVISÃO N.° 990.10.450569-0
Comarca: SÃO PAULO - F. R. DE SANTO AMARO - 4ª VARA CÍVEL
Apelante: V.L.R
Apelada: SP.M ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS S/C LTDA.
Juíza de Io grau: FERNANDA SOARES FIALDINI
VOTO N.° 16.364
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Estacionamento de veículo em shopping. Cliente que se aproveita da abertura da cancela para o carro da frente e sai sem pagar. Alegação de que o pagamento fora feito, apenas não tendo sido apresentado o respectivo comprovante. Ausência de qualquer indício de prova nesse sentido. Não cabimento, no caso, de inversão do ônus da prova, pois quem alega pagamento (fato positivo) é que deve prová-lo. Honorários advocatícios. Remuneração dos patronos a ser feita diretamente pelas partes, seja pela sucumbência parcial e recíproca, seja porque se trata de causa de valor manifestamente irrisório e que não pode gerar recompensa significativa. Recurso parcialmente provido.
1. A inversão do ônus da prova é permitida apenas em caráter excepcional e não como regra ou como panacéia para curar todos os males ou apenas para servir ao mero conforto do consumidor. Além disso, a inversão do ônus da prova é imperativo de bom senso quando ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência. Não é o caso, portanto, quando se trata de alegação de pagamento, pois como fato positivo este deve ser demonstrado por quem o alega. Logo, não cabe de nenhum modo impor à parte contrária que prove não ter havido pagamento (fato negativo).
2. A honorária é só um reflexo da demanda e não algo que se põe acima desta, como fosse um fim em si mesmo. Quem, ademais, se propõe a patrocinar causa de pequeno valor não pode esperar recompensa significativa, porque isso foge à "natureza das coisas".
Trata-se de ação ordinária julgada parcialmente procedente pela r. sentença de fls. 54/55, cujo relatório fica adotado, para o fim de condenar o réu ao pagamento de indenização no valor de R$ 3,00, com juros e correção monetária, além das custas e honorários de advogado arbitrados em R$ 700,00 (setecentos reais).
Apela o réu (fls.60/63) com pedido de reforma do julgado para improcedência da ação, sustentando que no caso deveria ter ocorrido inversão do ônus da prova; que a autora não provou a falta de pagamento do valor devido pelo estacionamento do veículo; que o valor da honorária foi exagerado e não se ateve à distribuição da sucumbência parcial e recíproca.
Recurso preparado (fls. 64/65) e respondido (fls. 68/77) pela manutenção da r. sentença.
É o relatório.
A presente ação é o retrato da falência total do bom senso. Quando pessoas altamente esclarecidas não conseguem entender e se desvencilhar de problema tão pífio como o dos autos, que envolve valor absolutamente irrisório, e ainda por cima insistem em continuar discutindo em Juízo, acende-se um sinal de alerta, indicando que é necessário repensar o sistema.
A ordem jurídica está normativamente orientada para o bem comum e como tal é que deve ser utilizada. Ou conforme diz a lição de PEDRO BAPTISTA MARTINS: "(...) poder de ação, o direito não é conferido ao indivíduo como instrumento de gozo ou de satisfação de apetites, para que possa extrair dele utilidades puramente egoísticas, à custa dos superiores interesses da coletividade. As prerrogativas individuais estão condicionadas a um fim - que é a harmonia social. E para que essa se torne possível, é necessário que se procure assegurar a coexistência dos interesses, removendo-se ou atenuando-se os conflitos. Desde que o exercício do direito se realize em desconformidade com essa destinação, de maneira perturbadora do equilíbrio dos interesses juridicamente protegidos, que se enfrentam nas relações sociais, é claro que o ato deixa de ser lícito para ser reprovável" (O Abuso do Direito e o Ato Ilícito. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 171).
Ou então, como diz HUMBERTO THEODORO JR., o abuso está no mero capricho, naquele estado de espírito "que vai da puerilidade à teimosia, da teimosia à maldade insistente, à crueldade; sempre marcado por um objetivo que desvia o ato processual de seu 'fim normal'" ("Abuso de Direito Processual no Ordenamento Jurídico Brasileiro". In Abuso dos Direitos Processuais. José Carlos Barbosa Moreira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 96).
A proliferação (ou a sustentação) de demandas por questões de somenos representa complicador indesejável e deve a todo custo ser evitada. Ou conforme bem diz RODOLFO CAMARGO MANCUSO:
"(...) impende que o direito de ação não se converta num... dever de ação, passando-se à população a falaciosa idéia de que todo e qualquer conflito de interesse deva ser judicializado, numa leitura atécnica como irrealista do que se contém na propalada garantia de acesso à Justiça. No contemporâneo Estado de Direito, o serviço judiciário não pode se converter numa prestação primária (como o saneamento básico, a educação, a saúde pública), mas deve preservar-se como uma oferta residual, para os casos efetivamente carentes de passagem judiciária: as ações ditas necessárias. Os conflitos tornados incompossíveis de outros modos e em outras instâncias; os dissensos que se singularizam por peculiaridades da matéria ou da pessoa envolvidas e, de modo geral, as lides efetivamente singulares e complexas, que demandam cognitio et imperium...''''
Posto isso e lamentando-se uma vez mais a desmedida insistência das partes quanto a questão tão insignificante, passo ao exame do caso.
Conforme se vê dos autos, a autora afirmou que em 12.01.2009 o réu colocou seu veículo no estacionamento da empresa e, ao sair, deixou de validar o "ticket", pois "maliciosamente se aproveitou de outro veículo que saía do estacionamento, 'colando' seu carro no veículo que se encontrava a sua frente e, aproveitando o chamado 'vácuo', saiu do estacionamento se beneficiando da abertura da cancela".
Diante disso, postulou indenização pelo valor de uma diária do estacionamento, na quantia de R$ 24,00, além de danos morais pelos aborrecimentos decorrentes.
No mérito, a r. sentença deu solução adequada ao caso, valendo transcrever aqui os lúcidos fundamentos nela elencados (fls. 54v.):
"(...) 3. A prova apresentada com a inicial demonstra que o autor saiu sem pagar o estacionamento do shopping, aproveitando-se da saída de um outro veículo (fls. 16). Se o autor estivesse distraído, como alega, e apenas não tivesse colocado o cartão no leitor que determina o movimento da cancela (embora houvesse pago o estacionamento), não teria conseguido aproveitar o 'vácuo' do carro da frente para sair do estacionamento. Para isso é necessário que o motorista esteja atento e aja rapidamente. Se não estiver, a cancela abaixará logo após a saída do veículo da frente, e para que levante será necessário apresentar um cartão pago.
Por isso não é crível que o autor tenha pago o estacionamento, e apenas tenha deixado de apresentar o cartão ao leitor respectivo.
É certo que o carro do autor não permaneceu durante todo o dia no estacionamento do shopping. A autora pretende a condenação do réu ao pagamento de R$ 24,00 para que a condenação sirva como espécie de punição. Mas não há norma que autorize tal punição. Assim, o réu deverá pagar pelo período durante o qual usufruiu o estacionamento sem pagar o valor devido: três horas.
É de fato lamentável a conduta daquele que se aproveita da saída de outro veículo para deixar de pagar três reais de estacionamento, seja por comodidade, por preguiça, por espírito de desafio ou por desonestidade. No entanto, a autora é pessoa jurídica. Pessoas jurídicas apenas excepcionalmente têm direito a indenização por danos morais. Às vezes, por exemplo, seu nome no mercado sofre abalo, em razão de determinada conduta, e em casos assim a condenação é possível. Não, porém, no caso dos autos. "Nada sofreu a autora a ponto de autorizar a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos morais."
Sem razão o apelante quando argumenta sobre a "não aplicação da inversão do ônus da prova", pois de fato não era o caso. O artigo 6o, VIII da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), de inspiração constitucional (artigo 170, V da Constituição Federal), atende ao objetivo do legislador de facilitar a defesa do consumidor, permitindo ao juiz da causa a "inversão do ônus da prova" em favor do consumidor.
Mas tal inversão é permitida apenas em caráter excepcional e não como regra ou como panacéia para curar todos os males, nem pode servir para o mero conforto do consumidor.
Trata-se, portanto, de "um instrumento para proteger a parte que teria excessiva dificuldade na produção da prova" (EDUARDO CAMBI. A Prova Civil. São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 2006, p. 410). Desse modo, apenas cabe a inversão "para evitar a injustiça de se proporcionar a vitória da parte mais forte, pela extrema dificuldade ou impossibilidade de a mais fraca demonstrar fatos que correspondem ao normal andamento das coisas ou quando isso pode ser mais facilmente, comprovado pela parte contrária" (Ob. cit., p. 410). Ou como diz LUIZ GUILHERME MARINONI: "(...) a inversão do ônus da prova é imperativo de bom senso quando ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência'1'' (Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 2006, p. 331).
O caso em tela evidentemente não é destes, porquanto não trata de situação afeta a dados e conhecimentos particulares do fornecedor, mas sim de fato cuja prova era afeta única e exclusivamente ao consumidor (quem alega pagamento é que deve prová-lo por meio do recibo).
Além de tudo, a inversão é cabível quando "for verossímil a alegação", o que nem de longe se deu no caso, pois nada nos autos evidencia o dito pagamento.
Chega a ser ridícula a alegação de que cumpria à apelada ter feito "a prova de não pagamento do estacionamento", pois (salvo excepcionalmente) o que deve ser provado é o fato positivo e não o fato negativo. Tocante ao valor da verba honorária, a r. sentença comporta reparo, data venia.
Tratando-se de ação que visava à cobrança de R$ 744,00 (R$ 24,00 por danos materiais e R$ 720,00 por danos morais) e dos quais só se reconheceu direito a R$ 3,00, parece mesmo exagerado conceder honorários advocatícios de R$ 700,00.
Embora o direito de ação seja garantido pela Constituição Federal, o seu exercício deve respeitar uma função social. Sabidamente, o custo de um processo judicial não é pequeno e recai sobre toda a sociedade, donde é preciso justificativa plausível para sua instauração. Portanto, bem diz JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE que, na avaliação do interesse de agir, impõe-se "a verificação da utilidade social da iniciativa judicial, só admissível se apta a contribuir de forma real para a efetivação do direito e a pacificação social" {Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 293-294).
E é evidente que uma cobrança de valor tão reduzido pela Justiça Comum em nada contribui para os fins acima apontados. Ao contrário, serve de afronta descarada ao princípio da proporcionalidade, pois manifesta a desproporção entre meio e fim.
Ou conforme as palavras de MAURO CAPELETTI e BRYANT GARTH, nas causas que envolvem somas relativamente pequenas:
"Se o litígio tiver de ser decidido por processos judiciários formais, os custos podem exceder o montante da controvérsia, ou, se isso não acontecer, podem consumir o conteúdo do pedido a ponto de tornar a demanda uma futilidade" (MAURO CAPELETTI e BRYANT GARTH. Acesso à Justiça. Trad./ p/ Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre-RS: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 19).
E, com todo o respeito, não é possível dar estímulo às futilidades, pois mesmo os direitos garantidos constitucionalmente exigem otimização.
O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, "em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico" (GILMAR MENDES et ai. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.113-114).
Quem descumpre essa pauta, atropelando um princípio constitucional, atenta contra o fundamento de toda a ordem jurídica e assim deve arcar com os ônus de sua opção. Bem se vê, portanto, que não faz sentido conceder aqui honorária superior, pois a honorária é só um reflexo da demanda e não algo que se põe acima desta, como fosse um fim em si mesmo. Quem, ademais, se propõe a patrocinar causa de pequeno valor não pode esperar recompensa significativa, porque isso foge à "natureza das coisas".
De tal maneira, tudo sopesado, tenho que na situação a melhor solução está em que cada parte arque com as honorárias de seus respectivos patronos.
Ante o exposto e pelo mais que dos autos consta, mantida no mais a r. sentença, dou provimento parcial ao recurso apenas para afastar a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, ficando cada parte com a obrigação de remunerar seus respectivos patronos.
GILBERTO DOS SANTOS
Desembargador Relator
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