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Entrevista - Maria Berenice Dias

Casar ou comprar uma bicicleta?

16/5/2005

 

Entrevista - Maria Berenice Dias

 

 

A desembargadora Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, concedeu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de ontem. Entre os assuntos abordados está a separação de Ronaldo e Cicarelli e seu novo livro, Manual do Direito das Famílias”. Confira a íntegra da matéria.

 

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Casar ou comprar uma bicicleta?

 

À luz da separação de Ronaldo, desembargadora revela os imbróglios que envolvem o casamento

 

“Tem uma crença de que existe a obrigação da prática sexual no casamento. No meio jurídico, a falta de sexo chama-se ‘débito conjugal’. Há quem peça indenização por isso”

 

Não fosse uma atuante desembargadora, especialista no Direito de Família, Maria Berenice Dias (foto) deveria assim mesmo ser ouvida com atenção quando o assunto fosse casamento.

 

Aos 57 anos, casou cinco vezes, “casaria todos de novo e mais os próximos, quem sabe”. Entrar na igreja, ela só entrou uma vez. Recomenda às mulheres que o faça, já que é um inapelável sonho do mulherio, visto que “só elas querem pegar o buquê”. Maria Berenice casou, divorciou, mas não casou de novo. Não há nisso nenhuma consideração religiosa. Mãe de três filhos, ela sabe melhor que ninguém que a união estável, ex-concubinato, é a melhor maneira de preservar o patrimônio dos meninos.

 

Lotada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, gaúcha da pequena cidade de Santiago, Maria Berenice é a primeira mulher da magistratura de seu Estado. É filha de juiz, neta de juiz, mãe de advogada. “Nada de nepotismo”, vai logo avisando. Ao contrário, sua atuação se deve em boa medida à discriminação da qual se diz vítima nos primeiros tempos de exercício da profissão. Na terra de Marlboro em que se constituíam fóruns e tribunais, Berenice escolheu “prostitutas, negros, homossexuais – até hoje estou abraçada com essa gente”. É autora do livro União Homossexual – O Preconceito e a Justiça (Livraria do Advogado, 2000), obra que colocou o Rio Grande do Sul na vanguarda jurídica do tema.

 

A opção de Maria Berenice pelas prostitutas, negros e homossexuais não faz dela uma defensora furibunda de minorias despossuídas. Quando se diz “abraçada a essa gente”, emite em seguida uma gargalhada sonora. Na verdade, abraça causas mais diversas. Acaba de lançar seu nono livro, Manual do Direito das Famílias (Livraria do Advogado). Um dos temas é casamento, claro. Na semana em que se desfez o de Ronaldo e Cicarelli, Berenice concedeu a seguinte entrevista:

 

Que reflexos pode ter na sociedade o episódio da separação de Ronaldo e Daniella Cicarelli?

 

Essas precipitações de fim de relacionamento de pessoas que têm alguma visibilidade social acabam banalizando um pouco a instituição do casamento. O fato é que a vida deles é exposta e acompanhada muito de perto desde o primeiro encontro. É o tipo de relação que avança por pressão da mídia. Isso causa uma aceleração natural dos processos, com casamentos apressados e desenlaces abruptos.

 

A vida privada das celebridades é como um folhetim que precisa de um novo capítulo...

 

Exatamente.

 

Por outro lado, pessoas que têm muitos bens não preferem casar a prolongar um namoro que mais tarde pode ser caracterizado como união estável, surtindo obrigações jurídicas?

 

Normalmente essas pessoas fazem algum tipo de contrato, o chamado pacto antenupcial. Cifras são estabelecidas a depender do tempo de casamento. Agora, o simples namoro não gera conseqüências patrimoniais. A legislação não prevê isso e a jurisprudência é absolutamente contra extrair esses efeitos de vínculos afetivos que não se configuram claramente como uma união estável.

 

Não é um problema definir quando um namoro passou a ser união estável?

 

É um limite difícil, até porque hoje em dia, ao contrário de antigamente, os namoros se precipitam. As relações são meio instantâneas – o ficar é mais ou menos imediato, o contato sexual se dá logo no começo das relações, muito rapidamente um dorme na casa do outro, outro dorme na casa de um. Há então uma aceleração dos vínculos afetivos que começa a tornar muito difícil estabelecer uma linha divisória. Isso se complica ainda mais quando sabemos que a união estável não exige a coabitação sob o mesmo teto. Há uma tendência da jurisprudência em configurá-la apenas quando isso acontece, porque na maioria das vezes entende-se que morar junto demonstra a finalidade de constituir família. Mas isso não está na lei e não é um requisito essencial – principalmente quando as pessoas têm justificativas para estar morando separadas. Pode ser pelos filhos, que se incompatibilizam com novos parceiros, pode ser por motivos profissionais. Realmente, estabelecer o marco inicial da união estável é uma prova muito difícil que gera conseqüências patrimoniais numa eventual separação. É por isso que em 1994, quando veio a regulamentação da união estável, antes chamada de concubinato, virou moda o registro de contratos de namoro. Eles vinham reafirmar que tal relacionamento não passava de namoro. Mas, como relação é uma coisa que continua, eles não tinham nenhum valor no futuro. Caiu em desuso.

 

Circulou a notícia de que Cicarelli teria direito a uma indenização. Que mecanismo legal poderia garantir isso?

 

Se houve um contrato assinado entre eles, esse contrato poderia prever indenização em caso de separação – e isso é comum entre pessoas muito abastadas.Só não poderíamos chamá-lo de pacto antenupcial, porque este vigora a partir da data do casamento civil, e eles não eram oficialmente casados. Mas pode-se fazer o contrato que quiser, com quem quiser, com o nome que quiser. Nada na lei impede que pessoas construam o próprio regime de divisão de bens, inclusive com direito a indenizações.

 

Separação só dá direito a indenização quando existe um contrato?

 

Há possibilidade de buscar indenização por dano moral no fim do relacionamento. É algo, no entanto, que não encontra sustentação na jurisprudência. Sou absolutamente contra, porque o dano moral pode decorrer de uma atitude na qual se descumpra algum empenho de vontade – e, por mais que alguém jure que vai amar o outro pelo resto da vida, ninguém sabe se será assim. Quando há a prática de ato ilícito, também é possível o pedido de indenização. Aquele que bate, aquele que expõe publicamente o outro a alguma situação vexatória, como abandonar a noiva no altar, esse paga indenização e tem a jurisprudência contra ele.

 

É possível ser indenizado porque o outro se nega a manter relação sexual?

 

Tem uma crença equivocada de que existe a obrigação da prática sexual no casamento. Nomeio jurídico, a falta de sexo ganhou um nome horrível – “débito conjugal”. Isso não existe e é absurdo. A lei diz apenas que há o dever da mútua assistência e da vida em comum. A tal crença, que tem cheiro de uma sociedade patriarcal em que a mulher era muito submissa, não encontra hoje nenhum respaldo na Justiça – embora haja aqueles que peçam indenizações por isso e haja até os doutrinadores que o sustentem.

 

Entre os ricos, existe uma indústria de indenizações?

 

Só entre os muito abastados – e não é uma indústria de indenizações, mas de formulações de contratos. Isso sugere a insegurança de quem tem muito dinheiro em relação aos que se aproximam. Ele duvida um pouco do amor do outro e acaba se respaldando em contrato. Geralmente casa em regime de separação de bens e estabelece que, em caso de divórcio, o cônjuge receba um determinado valor por ano de casamento.

 

Isso serve para o outro não ficar com a impressão de que sai sem nada em razão do regime de separação de bens –mas também para que se fuja da obrigação de pagar alimentos, que é hoje fixado com base no alto padrão de vida que o casal levava.

 

Casar resguarda mais direitos do que a união estável?

 

Sim. A primeira vantagem é que se estabelece o marco inicial do relacionamento. Depois, o cônjuge é considerado um herdeiro, enquanto o companheiro, mesmo após a morte do outro, só tem direito à metade do patrimônio que conquistaram juntos. Na união estável, quando a lei fala em “herdeiros necessários”, fala apenas em descendentes e ascendentes. Essa distinção é um retrocesso do novo Código Civil, de janeiro de 2003, e a meu ver é inconstitucional.

 

Existe alguma vantagem da união estável sobre o casamento?

 

Para desfazer a união estável, não precisa ir à Justiça. Além disso, quem tem bens particulares e tem filhos não pode casar de novo, justamente porque estaria incluindo o novo cônjuge entre os “herdeiros necessários”, comprometendo assim o patrimônio desses filhos. Eu acho até que essa é uma situação que gera enriquecimento ilícito desse cônjuge. Dou o meu exemplo: tenho um apartamento que levei 20 anos para pagar.

 

Tenho três filhos. Se eu resolver casar agora, e morrer, uma parte desse meu apartamento vai para o novo marido. Quando ele morrer, vai para a nova mulher dele e para os seus filhos.

Isso é contra a realidade da vida.

 

Separar é uma tarefa muito difícil?

 

Há uma tendência histórica e cultural para a preservação da instituição do casamento, que era indissolúvel até 1977. Hoje só se pode separar depois de um prazo de vigência. Quer dizer, casamento tem termo de garantia de um ano. Ele vigora mesmo que as partes, de comum acordo, queiram se separar. Além disso, só pode pedir a separação o cônjuge inocente. É um absurdo isso – se alguém diz que quer se separar porque traiu e não ama mais, não pode pedir a separação. Para o outro fazer o pedido, tem de atribuir culpa ao marido ou à mulher. Se a coisa não for amigável, é preciso sair de casa e, apenas um ano depois, entrar com o pedido formal. Aí será preciso provar que saiu de casa há um ano. E, depois, esperar outro ano para converter a separação em divórcio. Nesse período as pessoas não podem casar de novo e vivem em um estado de limbo. Têm de entrar em juízo duas vezes, por duas vezes contratar advogados. A lei cria obstáculos, a mostrar que ainda tem uma idéia sacralizada do casamento.

 

A religião trata o casamento como união divina e impõe regras de comportamento. O Estado também interfere no relacionamento?

 

Quem se apropriou primeiro do acasalamento natural foi a Igreja. Criou-se um sacramento indissolúvel, promovendo o “crescei e multiplicai-vos”, que visava povoar o mundo de cristãos. Essa visão muito sacralizada acabou sendo adotada pelo Estado, mas com uma função nitidamente patrimonial. Ou seja, para o patrimônio das famílias se preservar dentro das famílias. Isso começa com a obrigatoriedade da mulher de se casar virgem, determinação que saiu da lei em 2003, mas por muito tempo tentou garantir ao homem que o filho era mesmo dele e seu patrimônio passaria para o sangue de seu sangue.

 

O novo Código Civil foi conquista ou retrocesso?

 

O projeto desse código era de 1975. Foi redigido antes da Lei do Divórcio, antes da Constituição Federal – e foi sofrendo remendos. Conclusão: a união estável tem 5 artigos; o casamento, 147. A família mono parental, que está na Constituição, não está na nova lei. A guarda compartilhada também não. O novo código não respeitou nem a evolução da jurisprudência, que vinha afastando, por exemplo, o questionamento de culpa para fazer a separação. O que interessa ao Estado saber por que separou, se ninguém perguntou ao casal por que casou?

 

O Estado continua então a proteger mais a instituição do casamento do que o indivíduo?

 

Você pode se endividar como quiser que, se tiver uma família, o lugar onde você mora é inviolável. Mas há pessoas que vivem sozinhas... A proteção não é do cidadão, mas da família. Se dois irmãos moram juntos, não são considerados uma família. Teriam de morar debaixo da ponte.

 

A senhora já afirmou em um artigo que o legislador se transformou em “guardião dos bons costumes”. Isso é o que dificulta a legalização da união homossexual?

 

O preconceito é o que impede a sociedade de aceitar, o legislador de legislar e a Justiça de deferir. O problema é esse, e não a preservação da família.

 

O autor Aguinaldo Silva, que se assume homossexual, disse ao Aliás que deveriam parar de usar a expressão “casamento gay”. Afinal, segundo ele, os homossexuais não querem entrar na igreja, mas apenas oficializar a união. A senhora concorda?

 

Não. E acho que eles querem casar, sim.Não vejo necessidade de batizar uma união com nome diferenciado simplesmente porque seus indivíduos não copiam o modelo de vínculo afetivo da maioria. As uniões são iguais – nascem de um vínculo afetivo que levam ao embaralhamento da vida e ao comprometimento mútuo. Ainda que o Estado sacralize o casamento e as pessoas não manifestem o desejo de casar, essas pessoas não são livres para viver juntas sem conseqüência jurídica. A união estável é, afinal de contas, um casamento por decurso de prazo. Trocou de carro, o outro tem direito à metade. Se separa, tem de pagar alimentos.

 

Hoje, homossexuais que pedem o reconhecimento de uniões têm chance de consegui-lo?

 

Só no Rio Grande do Sul. E isso porque, aqui, as ações que envolvem essas uniões homoafetivas tramitam nas varas de família. No resto do Brasil, elas se dão nas varas cíveis – a possibilidade de vitória, nesse caso, é muito menor. Agora há duas decisões do Superior Tribunal de Justiça dizendo que devem tramitar mesmo nas varas cíveis. É uma coisa que vai na contramão da história. É uma diferença que parece sutil, mas evidencia todo o preconceito. Se você enxerga essas uniões como uma família, então aplica o direito de família e assegura a herança, que só existe aqui. Se você varre o vínculo afetivo para debaixo do tapete, aí você diz que essas pessoas são sócias – e as coloca na vara cível, fazendo dividir, no máximo, o que foi comprado durante o tempo de convivência. Passam juntos uma vida inteira, mas quando um deles morre, o patrimônio acaba, muitas vezes, nas mãos de primos distantes – e parentes que rejeitaram a vida inteira a maneira como eles viveram.

 

 

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 15/5.

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