Migalhas Quentes

José de Alencar e o primeiro HC preventivo

Imortal da ABL, Josué Montello retratou no artigo "Alencar e o primeiro HC preventivo" um ponto de vista pouco conhecido do escritor : seu talento enquanto jurista, advogado, político e legislador.

10/8/2010


Dr. Alencar

O lado jurista do grande escritor José de Alencar

O saudoso escritor Josué Montello retratou no artigo "Alencar e o primeiro HC preventivo" um ponto de vista pouco conhecido do escritor : seu talento enquanto jurista, advogado, político e legislador.

O acadêmico narra a história de um HC preventivo impetrado em favor do sogro de José de Alencar, dr. Tomás Cochrane, acusado de homicídio e quase preso trinta e um anos depois. O HC foi aceito pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Segundo Montello, a originalidade do trabalho jurídico de Alencar consiste no fato de que o réu não havia sido preso, mas estava sob ameaça de prisão. Foi o primeiro HC deste tipo no Brasil.

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ALENCAR E O PRIMEIRO HC PREVENTIVO1

Quando falamos de José de Alencar jurista, damos a impressão de aludir a outro José de Alencar, que não se confundiria com o romancista de O Guarani. No entanto, um é o outro.

Em verdade, a pena que escreveu Iracema, cantando os verdes mares bravios de sua terra natal, escreveu também A Propriedade e os Esboços Jurídicos, que lhe confirmaram a grandeza. Bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo, José de Alencar se formou em 1850.

Tinha ao tempo pouco mais de vinte anos. Fizera a sua estréia literária na imprensa acadêmica, mas ainda era o escritor indeciso, que não sabe ao certo qual há de ser o seu caminho.

No ano seguinte, vamos encontrá-lo no Rio de Janeiro, como praticante de escritório de advocacia do Dr. Caetano Alberto Soares.

Por esse tempo, residia o escritor na chácara de sua família, na Rua do Maruí nº 7. Já havia esboçado o seu primeiro romance, Os Contrabandistas, cujos originais, em parte, se acham hoje guardados, por minha iniciativa, no arquivo do Museu Histórico Nacional.

Obrigado a permanecer longe de casa durante o dia, para atender às solicitações de sua iniciação forense, Alencar pôs de lado as letras, trancando numa cômoda os manuscritos do romance. Daí, como tomassem o lugar da roupa, foram eles transferidos para uma estante, sem conhecimento de seu autor.

Um desalmado hóspede – lembraria o romancista, numa página de memórias – “todas as noites, quando queria pitar, arrancava uma folha (do romance), que torcia a modo de pavio e acendia na vela”.

Quatro anos durou o tirocínio de Alencar no escritório do Doutor Caetano Alberto Soares. Dessa aprendizagem lucraria o escritor e lucraria o advogado, porquanto, para os seus escritos literários e para os seus escritos jurídicos, recolheria ele aí boa parte do cabedal de experiências com que se preparou para a vida pública e que iria aflorar na urdidura de seus livros.

Os dezoito meses que o jovem Balzac passou no escritório de Guyonnet-Merville, em Paris, não deram apenas ao futuro romancista a figura de Derville, que apareceria em mais de uma obra da Comédia Humana – deram-lhe a experiência da vida forense, a galeria de tipos e comparsas de seu mundo romanesco, e ainda os ardis com que o escritor travou a dura batalha com seus credores, no correr de vinte anos de tribulações, glórias e trabalho porfiado.

Para José de Alencar, o escritório do Dr. Caetano Alberto Soares há de ter tido, assim, a significação do escritório de Guyonnet-Merville para Balzac.

Desse Dr. Caetano Alberto sabe-se que era um dos mais afamados advogados do Rio de Janeiro, no meado do século. Seu nome figura, ao lado dos nomes de Barão de Penedo, do Barão de Mauá, de Nabuco de Araújo e de José Clemente Pereira, como co-autor do Código Processual de 1850, considerado o mais completo de seu tempo no Continente.

Diz-nos Agripino Grieco que o Foro do Rio de Janeiro, ao tempo em que ali andou o romancista de O Tronco do Ipê com a sua pasta de advogado, era um “imundo quadrângulo de pau e tijolo, indigno da própria Lisboa anterior ao terremoto”.

É bem possível que, nas figuras de escreventes e tabeliães de seus romances, tenha recorrido José de Alencar mais à imaginação, ao pintar personagens como aquele Sebastião Ferreira Freire, que aparece em O Garatuja.

Vale a pena recordar a página magistral em que tomamos contato com ele, no capítulo III da novela:

“Óculos de asas de estanho, trepados no respeitável cavalete, envidraçavam de verde uns olhinhos redondos, vivos, espertos, que pulavam das órbitas como a pupila do molusco. O queixo fino e agudo, à feição de um gume de foice revirada, bem como as faces chatas e batidas, pareciam chanfradas em carão de pau, coberto de velho pergaminho. Constantemente servida, certo indício de concentração do espírito, a boca passava de uma ligeira comissura, que seria imperceptível, se a conformação do rosto não indicasse naquele ponto o hiato da gula. – As orelhas não invejariam as de um perdigueiro, no tamanho e nas ouças, serviam-lhes de ornato duas penas de ganso, que, lançando as longas ramas sobre as espáduas, espetavam-lhe na testa os bicos rombos, e cobertos com espessa crosta de tinta. – Quando sucedia escarrapachar-se a que estava de serviço, ia substituir uma das duas de reserva nas cantoneiras, provavelmente a mais repousada: assim revezando-se, despejavam-se as três sobre o almaço, por modo que as folhas e os cadernos de papel desapareciam devoradas pelo infatigável gregotim. – A parte de mais nota era a mão, que poderia servir de bitola ao palmo craveiro, pois, assentando o punho em baixo da página, alcançava-lhe o tope com os bicos da pena encravada nos três dedos, que a apertavam como os dentes de uma tenaz de aço. – Encolhendo-se à medida que desciam as regras da escrita, a tal mão de tarracha só levantava-se da banca para virar folha com um piparote, enxumbrado da saliva, que o dedo mínimo furtava à boca, mas com a rapidez de um tiro de bodoque. Nestas ocasiões o beiço, em constante sinalefa, desabrochava da cisura, graciosamente estufado, como a fava de um chichá. – Era este o dono do cartório, Sebastião Ferreira Freire, tabelião de público, judicial e notas, da cidade de São Sebastião, morador qualificado não só pela importância do cargo, como pelos mais predicados de sua pessoa”.

O gesto, os traços da figura, seus movimentos, tudo tem aí a animação da vida real, como se Alencar houvesse convivido com a sua personagem.

Não é apenas o ficcionista que a põe de pé, com a sua arte de escritor – é também o advogado que lhe conhece as manhas, podendo contá-las cá fora, numa cena de novela.

Esse conhecimento perfeito leva-o ainda a nos dar a moldura do retrato, na descrição do ambiente que cercava o escrivão:

“Tudo ali revestia-se do aspecto poento e venerando daquele alfarrábio vivo encadernado em pergaminho humano. As teias de aranha desciam do teto, formando pelas estantes festões e requififes, com recamos e debuxos de alto bolor. O tinteiro de chumbo, com bocal de vasta dimensão, já desaparecia por baixo do espesso coscorão da borra, que, entornando pelo rebordo, lhe mudava a forma chata em funil, onde entrava o tuvo da pena até ao meio. Cada penada destas era a conta de uma lauda com quarenta regras, segundo o regimento.”

Lúcia Miguel Pereira, numa apreciação de conjunto da obra de Alencar, observou a relativa ausência de bacharéis nos seus romances. Indicou apenas três: um, em Lucíola; dois, em Sonhos de Ouro. E lembrou este trecho de Senhora, a propósito do pouco apreço de uma das personagens do romance aos bacharéis:

“Um simples bacharel não correspondia por modo algum à noção aristocrática que o velho tinha do paraninfo de uma herdeira milionária. Além do que transformavalhe o plano, pois os altos personagens convidados declinariam infalivelmente de ombrear com um rapazola que nem comendador era.”

Se é escasso o número de bacharéis nos romances de Alencar, não quer isto significar o tédio ou o desencanto do escritor por seu título ou por sua profissão. Pelo contrário: Alencar se orgulhava de sua carta de bacharel, tendo gosto de valer-se dela no exercício da vida pública.

Embora o bacharel e o romancista pudessem conciliar-se na transição da página romanesca, a verdade, entretanto, é que Alencar parece ter tido o cuidado de dissociá-los. Não fez no romance a apologia do bacharel nem levou para os autos, como advogado, a sua fantasia de romancista. Mas devemos também reconhecer que a conciliação ocorreu pelo menos em duas oportunidades: quando Alencar levou para o Foro os seus olhos de romancista ou quando penetrou com eles a alma dos clientes que o buscavam no seu escritório.

Quatro anos depois de ter ingressado no escritório do Dr. Caetano Alberto Soares, o jovem cearense ingressou no jornalismo, como redator do Correio Mercantil. E o que lhe cabe fazer ali, de início, é a seção forense da folha, sem prejuízo dos primeiros surtos literários em letra de forma, nos folhetins que escreverá ao correr da pena e com os quais irá abrindo caminho à eclosão do romancista do O Guarani.

Em José de Alencar, a vocação literária, que levará o escritor à preeminência da literatura brasileira, corre paralela à vocação jurídica, como reverso e anverso da mesma medalha.

Nascido em 1829, faleceu Alencar em 1877. Tinha, assim, pouco mais de quarenta e oito anos, à hora do silêncio definitivo de sua pena. Tudo quanto esta deixou no papel seria respeitado pelo tempo – no romance, na novela, no ensaio, nos estudos históricos.

Dificilmente aceitamos que o escritor haja morrido tão cedo, tendo em conta que a vastidão de sua obra e a gravidade de sua figura física nos deixam a impressão de que, para escrever tantos livros, seu autor há de ter vivido muito.

A barba intonsa, que adornava o rosto magro de Alencar, tornava-o ainda mais velho, na severidade da figura mediativa que o bronze fixou na estátua sedestre de seu monumento.

Machado de Assis, que com ele conviveu, nos dá do amigo e mestre esta imagem: “A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu com o trato do homem e do artista.”

Esse espanto de Machado de Assis é ainda o nosso espanto, quando consideramos que, na personalidade de José de Alencar, coexistiram o escritor que renovou a língua portuguesa e lhe deu um novo estilo; o mestre de teatro que recolheu a herança cênica de Antônio José e Martins Pena; o romancista que criou o genuíno romance brasileiro e nele fixou o sertão e a cidade, o passado e o presente, a história e a lenda, as tradições e os costumes, e soube comover com o entrecho lírico ou aventuroso de seus livros a sinhá-moça e o bacharel, o estudante e o poeta, o caixeiro e o criado, e era lido nos sertões das casas grandes ou à luz dos lampiões de rua.

Como se não bastasse esse labor formidável, que lhe permitiu perfilar nas estantes algumas das obras fundamentais da literatura brasileira, José de Alencar foi ainda o político, o lingüista e o historiador, o polemista e o crítico, o jurisconsulto e o advogado.

No campo do Direito, a bibliografia de Alencar é constituída das seguintes obras: Uma tese constitucional, 1867; Questão de Habeas Corpus, 1868; O sistema representativo, 1868; A Propriedade (obra póstuma, publicada em 1883), Esboços Jurídicos (também de 1883), e Pareceres (também obra póstuma, publicada em 1960, pelo Ministério da Justiça).

A essas obras, de exclusiva inspiração jurídica, poderíamos acrescentar: o Relatório do Ministério da Justiça, de 1869, e duas coletâneas de Discursos parlamentares (uma, de 1869, editada em São Luís do Maranhão e outra, de 1871, publicada no Rio de Janeiro), nas quais, versando matéria política, o mestre do Direito freqüentemente irrompe na urdidura da oração.

É preciso distinguir, desde logo, em José de Alencar, o teórico do Direito, que tem as razões da lei ou da ciência jurídica, e o advogado, que há de ter as razões de seu cliente, mesmo quando o cliente parece não ter razão.

Assinalemos agora que neste momento estamos assistindo ao transcurso do centenário de publicação da primeira obra jurídica de José de Alencar, Uma tese constitucional.

Foi o caso que, a 29 de maio de 1867, o Visconde de São Vicente apresentou à Câmara do Senado um Projeto de Lei pretendendo que a Princesa Imperial e seu Augusto Consorte tivessem assento no Conselho de Estado.

A proposta, trazida a debate na imprensa e na tribuna parlamentar, suscitou o interesse de José de Alencar, que de pronto ocupou a sua coluna de jornal para expender sobre o assunto a sua opinião, à luz do art. 6º da Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841, que restabelecera o Conselho de Estado. Por esse artigo, o Príncipe Imperial, logo que completasse dezoito anos, integraria de direito o referido Conselho.

Para explanação objetiva de seu pensamento, Alencar dividiu o tema em duas questões: na primeira, procurou saber, através do espírito e da letra da lei, se a expressão príncipe imperial se referia ao cargo, sem distinção de sexo; na segunda, se caberia, nos limites constitucionais, a ampliação do disposto no citado artigo ao príncipe consorte.

Para a primeira questão, não se contentou Alencar em apresentar os argumentos contrários, que advinham do entendimento objetivo e transparente do texto constitucional. À hermenêutica, aduziu um argumento de fato ao demonstrar que o disposto na lei de 1841 não havia sido extensivo à Princesa Januária (então com vinte anos). Se a lei, em 1841, deixara de contemplar a Princesa, irmã do soberano e que tinha ao tempo a atribuição de Príncipe Imperial, por que haveria de contemplar, vinte e cinco anos depois, a Princesa Isabel, herdeira do trono?

Após demonstrar a inconstitucionalidade do Projeto de Lei do Visconde de São Vicente, Alencar não deixa problema em aberto: apresenta, para o caso, a solução correta, ao sugerir que, por uma lei ordinária ficasse o Imperador autorizado a fazer-se acompanhar, nas sessões do Conselho de Estado, pela Princesa Imperial, a qual assistiria aos trabalhos, sem deles participar.

Para a segunda questão, Alencar é mais veemente: “O projeto de lei que habilita o Príncipe Consorte a ser nomeado conselheiro de Estado, independente da idade marcada na lei”, - conclui, depois de exaustivo exame – “ofende os direitos políticos do cidadão brasileiro, e fere a nossa Constituição em vários pontos que deviam ser invioláveis”.

A seguir, abre caminho à solução legal: “Se a urgência desta medida estivesse demonstrada” – acrescenta –

“creio que o Poder Legislativo procederia menos incuravelmente revogando a lei de 23 de novembro na parte relativa à idade (quarenta anos) e tornando o cargo de conselheiro de Estado acessível a qualquer cidadão maior. Satisfeita a necessidade indeclinável se voltaria ao regime atual”.

Por fim, afirma, com a sua consciência de jurista e de político: “Importaria semelhante ato um subterfúgio impróprio de qualquer Parlamento; porém, ao menos, se resguardaria a lei fundamental de tão flagrante violação.”

A língua de Alencar, em uma tese constitucional, contrasta, de certo modo, com a língua dos seus escritos puramente literários. Aqui não é a palavra que conduz o escritor, na fluência de seu assunto. É o escritor que se coíbe e retrai, na linha da sobriedade estilística, sem exaltações verbais, sem raptos de eloquência discursiva.

No ano seguinte ao da publicação de Uma tese constitucional, vamos encontrar o seu autor, não mais como jurisconsulto, a esmiuçar a lei e a formular o pensamento jurídico, mas sim como advogado, no Supremo Tribunal de Justiça.

O Dr. Tomás Cochrane, sogro de José de Alencar, fora vítima de uma emboscada, trinta e um anos antes, em Guaratinguetá, da parte de um inimigo que o queria matar. Acompanhado de um amigo, reage ao ataque. O amigo, homem rústico e decidido, mata um dos assaltantes, enquanto dois outros fogem. O Dr. Cochrane volta à cidade, dá conta do ocorrido às autoridades, depois viaja para o Rio. Na sua ausência sem que ele seja citado, forjam o processo respectivo, que Alencar diz “ser magro de folhas e repleto de falsidades”.

Durante três décadas, vive o Dr. Cochrane em paz no Rio, sem ser molestado. De repente, trinta e um anos depois do fato, o Juízo Municipal da 2ª Vara da Corte expede contra o Dr. Cochrane um mandado de prisão.

José de Alencar, em março de 1868, bate às portas do Supremo Tribunal de Justiça com um pedido de habeas corpus em favor do sogro, em longa petição. Tratava-se de uma habeas corpus preventivo ainda não incorporado por dispositivo legal ao Direito brasileiro, o que somente ocorreria em 1871.

Isso explica porque, não obstante o fundamento do pedido, que se apoiava na prescrição da pronúncia, cinco juízes votaram contra o remédio judiciário, um jurou suspeição, e oito votaram a favor, aceitando assim a tese defendida por Alencar.

No mesmo ano em que defende o Dr. Tomás Cochrane, publica José de Alencar o seu livro sobre O Sistema Representativo.

Queixava-se o escritor de que o projeto de lei por ele apresentado em 1861 à Câmara dos Deputados “gorou (as palavras são suas) como tudo neste País quando não é bafejado pelo governo, ou sustentado pelo interesse dominante de uma classe poderosa.”

Papel dado às traças – suspiraria Alencar, recordando o seu esforço inútil. E a verdade é que, se houvesse prevalecido o seu projeto, como espelho e respeito da vontade popular, um dos beneficiados teria sido ele próprio, à hora de sua malograda eleição para o Senado.

Reconhecendo que a questão civil e a questão política constituem domínios da Filosofia do Direito, Alencar ajustou seu estudo sobre a reforma eleitoral ao âmbito da meditação e a que procurou trazer a originalidade de uma contribuição pessoal.

Empenhado em dar voz e voto às minorias, no campo do sistema representativo, aflorou pela primeira vez o problema nas colunas do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1859, com esta proposição: “O número dos votados devia ser inferior ao número dos eleitos na proporção conveniente para garantir uma representação à minoria sem risco da maioria.”

Com orgulho, reconhecia, na apresentação de seu estudo:

“Foi a primeira sugestão de semelhante idéia no Brasil. Nem mesmo na Inglaterra era ela então, como foi logo após, objeto de sérios estudos. Nesse ano de 1859 publicou Thomas Hare um opúsculo sobre a matéria; e em 1860 foi seu sistema desenvolvido em outra publicação por Henry Faucett. A obra de Stuart Mill onde essa tese política é sustentada com vigor e alto senso, apenas em 1861 veio a lume.”

O estudo de Alencar sobre O Sistema Representativo é obra de um estadista. Nele se conciliam o jurista e o político, voltados para a ação pública na ordem superior dos interesses do Estado. Muitas das meditações que ali se acham, não obstante o tempo transcorrido após a sua redação, continuam válidas – sem esquecer os reparos de natureza histórica, recolhidos pelo autor na experiência direta da realidade brasileira.

As Cartas de Erasmo, que Alencar publicou em 1865 e retomou em 1867, tinham dado, com a sua linha de vivacidade polêmica, na imprensa da Corte, o esboço do estadista que coexistia no escritor.

Em 1873, numa página de reminiscências que só vinte anos depois seria publicada, Como e porque sou romancista, diria Alencar que o “único homem novo e quase estranho” que nele nascera com virilidade tinha sido o político: “Ou não tinha vocação para essa carreira ou considerava o Governo do Estado coisa tão importante e grave que não me animei nunca a ingerir-me nesses negócios.”

Mas a verdade é que a política estava no seu sangue, amalgamada às raízes mais distantes de seu ser. Tinha por isso mesmo que aflorar um dia, trazida por uma vocação irreprimível que obedecia às determinações atávicas e profundas das origens do escritor.

A circunstância de ter vindo o político com a maturidade, depois do romancista, do crítico, do jornalista e do jurista, explicará certamente a direção pessoal que Alencar imprimiu à nova feição de sua personalidade. Em lugar do político liberal, ajustado às tradições de sua família, surgiu nele o político conservador, que dissentia dessas tradições.

Acusado na tribuna do Senado por Zacarias de Góis e Vasconcelos, que o argüía de ter “rompido com as tradições gloriosas desse mártir da liberdade que foi seu Venerando Pai”, o romancista não tardou a resposta veemente:

“Essas tradições de família deviam necessariamente influir no princípio de minha vida pública, pois me acompanhavam, me prendiam mesmo desde a infância. Deviam mesmo preponderar até que o espírito assumisse a independência de suas convicções.”

À hora dessa independência, já homem feito, Alencar escolheu o caminho que melhor se ajustava às suas idéias. Daí a frase de efeito com que volveu a dar resposta a Zacarias, no Senado:

“Nunca tradições de família terão influência sobre mim, a ponto de me fazerem negar justiça a quem tiver. Nunca eu tornarei o filho responsável por atos de seu pai, por fatos alheios. Neste ponto, como em todos, sou mais liberal do que o nobre Senador, que me recusa o direito de pertencer a um Partido, porque este não foi o partido dos meus antepassados. Não admito a herança nem das convicções nem dos ódios.”

A 16 de julho de 1869, ao empossar-se o gabinete Conservador presidido pelo Visconde de Itaboraí, José de Alencar assume a Pasta da Justiça, na qual permanecerá até janeiro de 1870.

A ascensão de Alencar ao Ministério da Justiça não é obra das circunstâncias. Gradativamente ele se preparara para exercer, nesse terreno, o seu papel político. Tinha o domínio da palavra, para os embates no Parlamento, e o domínio do Direito, para a chefia da Justiça, no âmbito do Estado.

Por outro lado, estava familiarizado com os problemas da secretaria, por ser seu funcionário desde 1859, pois nesse ano, com a reforma da Secretaria de Estado da Justiça, foi Alencar nomeado por Nabuco de Araújo para dirigir-lhe a Seção de Justiça e Estatística. Logo depois, é transferido para o cargo de Consultor da mesma Secretaria, com o título de Conselheiro.

Em 1868, por nova reforma da Secretaria de Estado, é extinto o cargo de Consultor, passando Alencar à condição de adido. O escritor prefere exonerar-se, pedindo então que, a título de remuneração por seus serviços, sejam publicados no Diário Oficial os Pareceres que expendera na Consultoria durante quase um decênio.

Esses Pareceres somente viriam a lume noventa e dois anos depois da exoneração de José de Alencar. Por iniciativa do Professor Honório Rodrigues, ao tempo em que dirigia o Arquivo Nacional, foram eles reunidos em volume, em 1960, com uma introdução de Fran Martins e notas elucidativas deste, nos Pareceres que tratam da matéria cível, e do Professor Luís Cruz de Vasconcelos, nos Pareceres que tratam de matéria penal.

A variedade dos assuntos jurídicos explanados nesses trabalhos e ainda a segurança das soluções alvitradas por Alencar, dentro das leis e do Direito, confirmam no escritor o jurisconsulto.

Mas o documento que nos parece mais importante da passagem de Alencar pela Pasta da Justiça é o seu Relatório como Ministro de Estado, em 1869.

A primeira parte desse documento trata dos problemas policiais de todo o País, com a relação minudente de crimes contra a segurança pública, a segurança individual e a propriedade. É na segunda parte, dedicada à Justiça, que voltamos a encontrar o jurista José de Alencar.

Mais do que uma prestação de contas à Assembléia Geral Legislativa, o Relatório é a análise da situação e dos problemas da Justiça brasileira no Império, com as sugestões objetivas para a solução desses problemas, quanto à organização judiciária, à administração da Justiça e à Legislação civil, criminal e comercial.

Ao tratar da legislação criminal, Alencar propõe a incorporação ao nosso Direito de uma nova modalidade de habeas corpus: “Refiro-me” – escreve –

“ao habeas corpus ad faciendum et recipiendum, por meio do qual se obtém a transferência da causa de um tribunal inferior para o tribunal superior, em virtude de uma suspeição ou de qualquer outra causa legítima e grave. Dando-lhe a forma que tem em França (Código de Instrução Criminal, art. 542), entendo que produzirá em nosso País excelente resultado. No projeto de reforma que terei a honra de apresentar-vos qualifico esse recurso (renvoi na jurisprudência francesa) de avocação, pois é realmente para os casos graves. A essa avocação não se opõe certamente o art. 178, que sem dúvida cogitou de espécie muito diversa, qual a usurpação da competência judiciária.”

Devemos considerar esse capítulo do Relatório de José de Alencar, sobretudo quando trata da reforma do Código Civil e alinha considerações em torno do trabalho de Teixeira de Freitas (então em andamento), um documento básico para a história do Direito Brasileiro, a qual não poderia esquecer o nome de José de Alencar, dadas as iniciativas deste Direito, tanto na sua formulação doutrinária quanto na sua aplicação.

Acuado por Zacarias de Góis e Vasconcelos, na tribuna do Senado, de não estar à altura da Pasta da Justiça, por ser um literato, Alencar se valeu da discussão da Lei do Orçamento, na Câmara Alta, a 3 de setembro de 1869, para dar ao senador baiano a resposta veemente.

Ele próprio provocou Zacarias, pouco depois de ter começado o seu discurso. E como este aceitasse o duelo, atirou-lhe esta estocada:

- “O pobre senador, querendo desmerecer minha capacidade para ocupar o cargo em que atualmente me acho, insistiu por diversas vezes nos meus escritos literários, na minha qualidade de romancista e de poeta; disse o nobre senador que não o era.”

Ao que Zacarias replicou, em tom de gracejo:

- “Ah, se o fosse, respondia-lhe em verso.”

E Alencar, subindo a voz, voltado para o adversário:

- “Mas a verdade é que eu, romancista, e pretendido poeta, não trouxe para o Parlamento as produções da literatura, como o fez há pouco o nobre senador, e como tem feito em outras ocasiões; serei poeta e romancista, mas só no meu gabinete, desprendido inteiramente dos negócios públicos: o nobre senador gosta de ser poeta e romancista no Parlamento. Creio, por consequência” – rematou – “que as minhas diversões literárias prejudicam menos o serviço público do que as do nobre senador, que se fazem à custa da gravidade das funções legislativas e do tempo destinado a trabalhos mais sérios.”

O Visconde de Taunay, nas suas Reminiscências, dedica largo espaço ao perfil de Alencar, logo assinalando que o romancista levou “aos domínios da política o indiscutível assinalamento da sua preeminência intelectual.” Mas acrescenta:

“Não foram, contudo, auspiciosos os seus começos na tribuna parlamentar, principalmente, para quem a ela subiu com a reputação já feita de notável publicista, e até jurisconsulto, realçada no sentir de alguns próceres políticos, ou amesquinhada, no conceito do maior número deles, pelo renome de inspirado romancista e aplaudido dramaturgo.”

Em breve, porém, o orador hesitante, desajudado pelo físico e pela voz, superou essas limitações com a fluência da palavra, e o certo é que a figura pequena e pálida, que parecia talhada para o fracasso dos improvisos políticos, se agigantou na tribuna. “Em pouco tempo” – diz ainda o Visconde de Taunay, no mesmo depoimento –

“se constituiu José de Alencar um dos oradores da Câmara ouvidos com mais respeito e sofreguidão, desses cuja presença nas discussões renhidas e sensacionais enchia logo o recinto e as galerias de gente ansiosa pela sua frase elegante, dúctil, castigada, tão feliz quanto imaginosa, a ferir nas constantes indiretas, polidas de forma, mas de pungente sarcasmo no fundo e na intenção, o alvo colimado.”

Em 1868, quando faz a defesa oral do habeas corpus em favor do Dr. Tomás Cochrane, na tribuna do Supremo Tribunal de Justiça, já Alencar é o orador experiente, adestrado no improviso pela tribuna parlamentar.

Ele próprio, a certa altura dessa defesa, nos dá um roteiro do que deve ser a oratória forense: “Vou falar-vos” – diz o escritor, dirigindo-se aos juízes –

“a linguagem calma, fria e severa da jurisprudência. Se eu tivesse a fortuna de possuir uma dessas palavras que arrebatam e comovem, não a quisera neste momento. Só há uma eloquência digna deste recinto: é a eloquência da verdade, e esta é singela, despida de ornatos: nua como a própria verdade.”

Na tribuna parlamentar, quer como deputado, que sobretudo como ministro da Justiça, José de Alencar soube elevar a sua oração, do campo meramente partidário, para o campo da doutrina política ou jurídica. Mesmo quando passou para a oposição ao imperador, levado pelo ressentimento que o compelira a deixar a chefia da Pasta, não deixou que a paixão política suplantasse no seu espírito a consciência do bacharel. Os discursos que reuniu em volume em 1874, versando o problema da Reforma Eleitoral, deixam sentir essa vitória do jurista sobre o político amargurado.

Machado de Assis, na página em que o recordou, a propósito do lançamento da primeira pedra da estátua do romancista, nos dá, em 1897, a imagem do retraimento alencariano, à hora em que o escritor se afastou da política:

“Desenganado dos homens e das coisas, Alencar volveu às suas queridas letras. As letras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras é certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte, que é liberdade, era a força medicatriz do seu espírito. Enquanto a imaginação inventava, compunha e polia novas obras, a contemplação mental ia vencendo as tristezas do coração, e o misantropo amava os homens.”

Não apenas a arte consolou Alencar no seu retraimento. Também nas letras jurídicas distraiu ele as suas horas de solidão. Daí, após a sua morte, estas duas obras, que lhe completam a bibliografia de mestre do Direito: A Propriedade e Esboços Jurídicos, ambas publicadas em 1883.

Do primeiro, que é o seu mais longo estudo jurídico, disse o Conselheiro Antônio Ribas, que o prefaciou:

“Não se pense que o presente livro contém apenas a mera exposição didática da matéria. Não; ele é antes uma obra de crítica e de reforma do Direito existente; e, no período de transição em que vivemos, nenhum trabalho jurídico pode ser mais oportuno do que aquele que tem por fim facilitar e encaminhar acertadamente essa transição.”

O segundo, sem a unidade orgânica de A Propriedade, compõe-se de quatro estudos: um, sobre o júri; outro, sobre o processo criminal; outro, sobre o estado civil, e o último, sobre a codificação civil.

Em Como e porque sou romancista, confessou José de Alencar que o único tributo que pagou à moda acadêmica, ao tempo em que estudou em São Paulo, foi o das citações: “Era nesse ano de bom-tom ter de memória frases e trechos escolhidos dos melhores autores, para repeti-los a propósito.”

Desse tributo já estava livre o escritor, à hora de seus trabalhos jurídicos. Raras são as citações que neles encontramos. Alencar prefere expor o seu próprio pensamento, na limpidez da forma objetiva, a arrimar-se no pensamento alheio, para abonar suas idéias e convicções.

A forma límpida, que nos permite apreender instantaneamente a idéia do escritor, não vem isenta, entretanto, numa ou noutra página, de certo matiz literário, que lhe eleva o tom numa ondulação de eloquência, como neste intróito de A Propriedade:

“Foi entre as sete colinas, onde a Providência colocou o berço do povo-rei, e quando surgia a primeira aurora da civilização, que devorou e consumiu o mundo antigo; foi na Cidade Eterna que nasceu a sociedade civil.”

Em 1856, numa das Cartas sobre a “Confederação dos Tamoios”, escreveu Alencar a sua profissão de fé no exercício da palavra. E ali afirmou:

“A palavra tem uma arte e uma ciência; como ciência, ela exprime o pensamento com toda a sua fidelidade e singeleza; como arte, reveste a idéia de todos os relevos, de todas as graças, e de todas as formas necessárias para fascinar o espírito. O mestre, o magistrado, o padre, o historiador, no exercício do seu respeitável sacerdócio da inteligência, da justiça, da religião e da humanidade, deverá fazer da palavra uma ciência; mas o poeta e o orador devem ser artistas, e estudar no vocabulário humano todos os seus segredos mais íntimos, como o músico que estuda as mais ligeiras vibrações das cordas de seus instrumentos, como o pintor que estuda todos os efeitos da luz nos claros-escuros.”

A palavra foi para Alencar arte e ciência – arte, no exercício das letras; ciência, no exercício do Direito.

Entre os documentos de seu arquivo, incorporados hoje ao acervo do Museu Histórico Nacional, figura um dicionário de língua portuguesa que o escritor coligiu para seu uso. No seu cuidado de empregar sempre o vocábulo exato, Alencar enveredou pelo estudo da heráldica, e não se contentou com o vocabulário técnico respectivo; desenhou cada peça de insígnias, selos e brasões, por vezes a bico de pena, ilustrando os vocábulos.

Por isso, quando o homem de letras necessitou da palavra, na urdidura da página literária, ela lhe veio à ponta da pena, na fluência da escrita, sem que o mestre precisasse torturar-se para encontrar o seu estilo. Estilo que não é mais a língua portuguesa submissa aos clássicos lusitanos. Mas a feição brasileira do idioma camoniano – com um giro novo, um vocabulário mais rico, uma ondulação diferente, na prosa de O Guarani, Iracema e As Minas de Prata.

Nas ocasiões em que Alencar precisou medir-se com os maiores oradores de seu tempo, no Senado e na Câmara dos Deputados, a palavra também lhe veio solícita, como forma e substância do seu pensamento político.

Como tribuno e como escritor, ele cumpriu à risca a lição que nos legou: “Todo homem, orador, escritor, ou poeta, todo homem que usa de palavra, não como um meio de comunicar as suas idéias, mas como instrumento de trabalho; todo aquele que fala ou escreve, não por uma necessidade da vida, mas sim para cumprir uma alta missão social; todo aquele que faz da linguagem, não um prazer, mas uma bela e nobre profissão, deve estudar e conhecer a fundo a força e os recursos desse elemento de sua atividade.”

Como jurista, ele pode sentir que a palavra essencial e única é que dá feição epigráfica ao texto das leis, nas quais o homem consubstancia os seus direitos.

A José de Alencar, que soube ser uma figura inteiriça na ordem moral e um mestre da língua portuguesa na ordem intelectual, bem que podemos aplicar aqui frase famosa com que Catão, o Antigo, definiu o verdadeiro advogado: “Um homem de bem, com o dom da palavra.”

Na defesa oral do Dr. Tomás Cochrane, a 25 de abril de 1868, invocou Alencar a decisão tomada pelo Supremo a 19 de junho de 1867 (há um século, portanto) e na qual se firmou a aplicação do habeas corpus para qualquer espécie de constrangimento ilegal.

“No dia em que o Conselho Supremo da Magistratura brasileira tornou em realidade um princípio tão claro da lei” – afirmou Alencar, na sua petição em favor do Dr. Cochrane – “o Brasil obteve uma vitória ainda mais gloriosa do que os triunfos esplêndidos alcançados pelo heroísmo de seus soldados; porque essa foi vitória da paz e da liberdade.”

No entanto, o transcurso do primeiro centenário dessa conquista do Direito brasileiro passou em silêncio, sem uma lembrança, sem um ato comemorativo. Deixemos aqui o seu registro singelo, à margem do nome de José de Alencar, do Alencar que iria contribuir também, com o vigor de sua palavra e a substância jurídica de seus argumentos, para que a decisão, restrita ao plano da jurisprudência, se convertesse, três anos depois, em conquista definitiva consagrada pela Lei.

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1Artigo publicado originalmente na Revista Cultura, edição de outubro de 1967.

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