Migalhas Quentes

Morre na Bahia, aos 96 anos, o Professor Rubem Nogueira

Diz-se que é melhor o dia da morte que o dia em que se nasce. Mas somente é capaz de compreender e desfrutar dessa assertiva aquele que finda os dias de sua vida tendo produzido ao máximo de sua energia e contribuído, de alguma forma, para a construção de um ideal.

25/1/2010


Coroa de glória

Morre Rubem Nogueira, aos 96 anos

Diz-se que é melhor o dia da morte que o dia em que se nasce. Com efeito, a imagem bíblica ensina que "melhor é o bom nome do que o melhor ungüento, e o dia da morte [é melhor] do que o dia do nascimento". (Eclesiastes 7:1)

Aparentemente dura esta assertiva, é simples para aqueles que são humildes e puros. Mas somente é capaz de compreendê-la e, ainda, desfrutá-la aquele que finda os dias de sua existência tendo produzido, no máximo de sua energia, e contribuído, de alguma forma, para a construção de um ideal.

É a satisfação do "dever cumprido" que não se pode ter pelos anos que ainda estão porvir, quando se nasce, mas apenas pelo tempo que já se foi, quando se parte.

E se a retrospectiva de toda uma vida revelar a realização de um trabalho verdadeiramente profícuo em prol não apenas de si mesmo, mas também de outros e, especialmente, de ideais, de sonhos... as cãs que chegam se tornam uma coroa de glória.

Rubem Nogueira foi um desses homens coroados.

Nesta madrugada, aos 96 anos, faleceu em sua casa soteropolitana.

No rol de suas atividades está a militância no Direito – em São Paulo, Bahia e Distrito Federal. Rubem Nogueira também exerceu funções públicas como as de Consultor Jurídico do Ministério da Justiça e Procurador-Geral de Justiça na Bahia. Além disso, teve assento na Câmara dos Deputados por três legislaturas.

Suas realizações na política almejavam proporcionar às pessoas de sua terra benefícios duradouros. Foi assim, por exemplo, que surgiu a Escola Normal de Serrinha, num tempo em que não se pensava em escolas de ensino médio, fundamental ou técnico no interior da Bahia.

Rubem Nogueira pensava no bem comum. E esse ideal se revelou também em sua paixão pelos estudos, em sua passagem pela Academia de Letras Jurídicas, pelo Instituto dos Advogados da Bahia e pelas diversas revistas especializadas com as quais colaborava. Sua pretensão era a de "ajudar a construir a memória". Foi com esse propósito, certamente, que lançou dezenas de livros. Entre eles, destaca-se o exaustivo estudo sobre o conterrâneo Rui Barbosa. Estudo que o coloca entre os maiores ruianos do Brasil.

Mas isso somente foi possível porque Rubem Nogueira viveu intensamente o tempo sobre o qual nos dá testemunho por meio de seus escritos. Do contrário, as páginas estariam em branco.

Os que tiveram o privilégio de conhecer e conviver com o Professor Rubem Nogueira em alguma migalha de seus 96 anos certamente entendem que a data desta madrugada, 25 de janeiro de 2010, conquanto triste pela perda, é também de orgulho e de realização. Realização que começou desde o primeiro dia de sua existência, em 13 de setembro de 1913.

Memórias

Trecho da obra "O Homem e o Muro (Memórias políticas e outras)", de Rubem Nogueira.

Ponto final

Para finalizar o recenseamento de reminiscências que me pareceram suscetíveis de despertar a curiosidade de um eventual leitor, peço licença para reproduzir aqui as palavras finais com que agradeci à Academia de Letras da Bahia a homenagem que houve por bem prestar-me quando do transcurso dos meus oitenta anos de idade. Ei-las:

Encerro assim o singelo resumo de uma já longa vida, não de todo ociosa. Por má sorte, fatiguei-os e, o que é pior, tive de falar só na primeira pessoa, algo um tanto adverso à minha conduta habitual, além de contundentemente desarmônico com a impessoalidade triunfante da cibernética, da informática, do computador, da tecnologia de ponta, dos robôs, da leitura dinâmica.

Contudo peço licença para dizer que as turbulências da política me ajudaram também a encontrar a plena felicidade pessoal. Bacharelando imberbe, num agitado dia de muitas homenagens partidárias a um preclaro companheiro, por sinal membro da Academia Brasileira de Letras, em trânsito pela Bahia, conheci a que alguns anos mais tarde levei ao altar, mas os desígnios da Providência fizeram que logo se fosse, deixando órfão o filho Cláudio, do qual hoje tenho uma querida neta – Claudinha, ilheense, como a avó, tão cedo levada desta vida, e, como ela, graciosa e meiga.

Seguiram-se sombrios tempos. Mas, Deus sabe a hora de dissipar a desventura das pessoas. Voltei a viver na Bahia, quando ruía a ditadura do Estado Novo. Restabelecido o sistema democrático, fundaram-se partidos nacionais. Elegi-me deputado estadual por um deles – o PRP –, o mais próximo das idéias fundamentais de minha juventude.

Por coincidência: novamente em dia de festa a outro insigne líder partidário, os bons fados me propiciaram a sorte do encontro definitivo da alma gêmea que comigo comporia, daí em diante, aquela unidade fundamental dos seres humanos, que só o amor gera e consolida, daquela a quem, bem depois do nascimento de nosso primeiro filho, tranquilamente um dia chamei, e hoje, de todo coração, continuo a ter como a ‘metade verdadeiramente cara e essencial de minha vida’.

Infelizmente, não tenho – nasci sem a veia poética –, mas muito gostaria de agora poder traduzir em versos – a meu ver a prima forma expressional dos profundos sentimentos humanos – e depositá-los, Gilka, em suas mãos, para exprimir o que lhe deve a minha modesta vida pública. Como esquecer os resultados de sua presença em cinco campanhas eleitorais, após o nosso casamento? E os milhares de quilômetros então rodados, a bordo de uma frágil Kombi, por você sempre dirigida, de dia ou de noite, através do vasto interior baiano? E as oportunidades a mim propiciadas, as simpatias que me cercavam, os favores colhidos, as alianças promovidas, tudo graças principalmente ao benefício de sua assistência discreta, tranqüila, afetuosa e estimulante, a alertar o marido tantas vezes desligado, a ajudá-lo a pensar e a decidir? Tudo isso foi muito bonito, compõe a nossa vida. Valeram a pena, Gilka, as suas não poucas renúncias a favor do afortunado desempenho das difíceis campanhas políticas do seu marido. Tudo isso está bem gravado na minha memória, aquece o nosso simples viver, tornando a saudade dos tempos idos sempre bem-vinda e confortadora.

Igualmente felizes fomos pelos filhos que tivemos. O primogênito, Rubem Junior, cuja vida profissional, exercida sempre com dignidade, modéstia e alta competência, nos afaga a humana vaidade. As filhas, que tanto nos querem, desde a por todos querida caçulinha, Paula, “rosa, rosa de amor”, “portadora dos perfumes”, aurora iluminante do nosso inverno existencial, até as outras quatro lindas Marias. Maria Clara, Maria Rosário, Gilka Maria, Maria Patrícia. E os netos? Como omiti-los? Carlos Colavolpe, esse já aprendeu, sozinho, a ler e escrever as primeiras palavras antes dos seis anos de idade. O paulistano Guilherme, aos três anos, vai no mesmo embalo do primo, já se orienta bem, quando conosco sai, pelas ruas de sua complicada megalópole. E as netas? Pela ordem de chegada ao mundo: Mariana, amiga fervorosa das boas letras, firmeza nas apreciações críticas, o gosto da conversa sobre o que lê e absorve bem; Julia, recatada, sonhadora, dotada de certa veia poética; Renata, frágil, de pouco falar, dando a impressão de pássaro esvoaçante, donde talvez o seu pendor para a dança clássica; Clarinha, a vivacidade a pedir passagem, farta cabeleira negra, o gosto da vida em movimento”.

Assim, deixo aqui o que posso para, ao menos nalguns pontos, ajudar a construir a memória do meu tempo.

Imagens da vida de Rubem Nogueira

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