O afastamento do controle judicial no arquivamento de inquérito policial no anteprojeto do CPP
Jorge Leão*
"Art. 37. Compete ao Ministério Público determinar o arquivamento do inquérito policial, seja por insuficiência de elementos de convicção ou por outras razões de direito, seja, ainda, com fundamento na provável superveniência de prescrição que torne inviável a aplicação da lei penal no caso concreto, tendo em vista as circunstâncias objetivas e subjetivas que orientarão a fixação da pena.
Art. 38. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o Ministério Público comunicará a vítima, o investigado, a autoridade policial e a instância de revisão do próprio órgão ministerial, na forma da lei.
§ 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.
§ 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial".
Essa ao que parece é a pior forma de resolver o problema dos muitos inquéritos policiais que não são devidamente concluídos: o arquivamento do procedimento policial em decorrência da suposta prescrição da penal ideal - causa de extinção da punibilidade não reconhecida pelo STJ e pelo STF -, com o afastamento do Poder Judiciário do controle de legalidade do encerramento das investigações.
Não se pode ignorar que o Ministério Público, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, diante da ineficiência do aparelho policial, utiliza-se diversas vezes do argumento da prescrição em perspectiva (pena ideal) para arquivar inquéritos policiais que não seriam concluídos em tempo hábil, a fim de diminuir o acervo de trabalho nas Delegacias de Polícia. Porém, essa solução – que parece ser a mais fácil – está longe de ser a melhor, só contribuindo para a falta de efetividade da Lei Penal e para manter a inércia do Poder Executivo com relação aos problemas de segurança pública enfrentados pela sociedade.
E o anteprojeto tenta regulamentar tal prática, retirando (inconstitucionalmente) do Poder Judiciário a fiscalização da correta aplicação da lei penal pelo Ministério Público, sem criar de maneira expressa e claramente delimitada a figura da prescrição em perspectiva. Retira ainda (inconstitucionalmente) do Poder Judiciário a atribuição de dizer qual é a correta interpretação do Direito Penal quando os inquéritos são arquivados com fundamento na prescrição ou na atipicidade da conduta.
Diante desse novo quadro proposto, indaga-se: quem irá controlar a legalidade dos atos praticados pelo Ministério Público antes de iniciada a ação penal? É inegável que o Ministério Público tem atribuição constitucional exclusiva para dizer se há elementos indiciários mínimos para iniciar a ação penal em qualquer hipótese, porém, atribuir a ele, nesses casos, a exclusividade da interpretação da Lei Penal é violar a mesma CF/88 (clique aqui) que lhe conferiu a titularidade da ação penal e criar um Poder Estatal sem controle, ferindo o sistema republicando de freios e contrapesos.
O TJ/RJ, de forma inovadora e corajosa, já permite em diversos casos a interposição do recurso em sentido estrito contra decisão de arquivamento fundada na prescrição em perspectiva, na forma do artigo 581, inciso VIII, do CPP. Vejam os seguintes julgados:
"Recurso em sentido estrito. Decisão monocrática que, acolhendo pronunciamento ministerial, determinou o arquivamento do Inquérito policial, em que se apurava a prática de crime tipificado no art. 155, §3º do CP. Recurso da empresa lesada pretendendo a cassação do decisum, para determinar-se a remessa dos autos ao Exmo. Procurador-Geral de Justiça, na forma do art. 28 do CPP.
O juiz a quo, considerou a circunstancia do indiciado não possuir anotações em sua folha de anotações criminais - FAC, e com base na pena in concreto, reconheceu a prescrição retroativa da pretensão punitiva estatal, observado o prazo prescricional de 4 anos, já decorrido entre a data dos fatos (anterior a 12/11/99), e a da manifestação do ente ministerial (19/5/05), ausentes causas interruptivas.
O instituto da prescrição pela pena ideal não é reconhecido no nosso sistema penal, e o juiz não pode fazer exame de mérito, refutar as provas ou indícios, sem afrontar o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, ressalvadas as hipóteses que autorizam a rejeição da denúncia.
Recurso provido para cassar-se a decisão atacado, determinando-se ao juízo a aplicação do art. 28 do CPP com a remessa do inquérito policial ao Exmo. Senhor Procurador-Geral de Justiça". RSE 136/2006 – Oitava Câmara Criminal – unânime – Des. Orlando Secco – j. 6/7/06
Carta testemunhável. Crime de furto de energia. Decisão de arquivamento de inquérito policial. Lesado ainda não habilitado como assistente de acusação. Apelação do lesado contra decisão de arquivamento. Apelação não recebida sob o fundamento de ilegitimidade do recorrente e inadequação do recurso. Recurso em sentido estrito do lesado contra decisão que deixou de receber a apelação. Recurso em sentido estrito não recepcionado por ilegitimidade do recorrente.
Crime de furto de energia elétrica. A empresa concessionária do serviço de energia elétrica, ainda não habilitada como assistente de acusação, pois não instaurada a ação penal, é parte legítima para recorrer da decisão de arquivamento do inquérito policial. Inteligência dos artigos 268, 577 e 598 do CPP.
Decisão de arquivamento de inquérito policial. Releitura do CPP à luz da CF/88. Dogma da irrecorribilidade superado. Inexistência no ordenamento jurídico brasileiro de hipótese de decisão de autoridade, agente ou membro do poder público, que não comporte controle ou revisão. Irrelevância da natureza da decisão para o fim de afastar o controle de sua legalidade.
Decisão que acolhe pedido ministerial de arquivamento fundamentado no princípio da insignificância, não reconhecendo expressamente o direito brasileiro, que implica no reconhecimento da atipicidade da conduta. Decisão com força de definitiva. Produção de coisa julgada material. Cabimento do recurso de apelação.
Carta testemunhável. Recurso em sentido estrito e apelação devidamente processados e suficientemente instruídos. Julgamento meritório conjunto e imediato. Causa madura para julgamento. Inteligência do art. 644 do CPP.
Controle judicial do arquivamento do inquérito policial. Discordando o Juiz do requerimento de arquivamento ou o Tribunal da decisão que o determina, o único desfecho possível no sistema processual vigente é a remessa dos autos para manifestação derradeira e imodificável do Procurador Geral de Justiça, na forma do art. 28 do CPP, já que o oferecimento de denúncia é ato privativo e indelegável do Ministério Público.
Carta testemunhável conhecida e providos os recursos, com remessa do inquérito policial para o Procurador Geral de Justiça, para os fins do art. 28 do CPP. Carta Testemunhável 05/2006 – Terceira Câmara Criminal – unânime – Des. Marco Aurélio Belizze – j. 16/5/05
"Carta testemunhável ofertada em face da decisão judicial que determinou o arquivamento de inquérito policial que apurava o crime de furto de energia elétrica, supostamente havido em empresa comercial multi-societária. Falecimento de um dos sócios que não obstaculiza o prosseguimento das investigações policiais. Punibilidade extinta tão só com relação ao de cujus. Concessão da Carta testemunhável que se impõe". Carta Testemunhável 16/2005 – Sexta Câmara Criminal – unânime – Des. Roberto de Souza Côrtes – j. 22/9/05.
"Carta testemunhável. Contra decisão monocrática que não recebeu recurso em sentido estrito visando a revogação da decisão que acolheu a promoção ministerial e declarou extinta a punibilidade pela prescrição, considerando a pena ideal, e posteriormente seja oferecida denúncia. Carta testemunhável a que se dá provimento. Equivocada promoção ministerial onde o Promotor de Justiça, inovando a hipótese de apenação no mínimo legal, em face da pena ideal, requereu a extinção da punibilidade do testemunhado, por absoluta falta de interesse processual. A tese de que não há legitimidade dos Testemunhantes para interposição de Recurso em Sentido Estrito deve ser rechaçada, eis que, havendo decisão extintiva da punibilidade, em face do requerimento do MP que não ofertou peça acusatória e ainda requereu a extinção do feito pela ocorrência da prescrição da pena ideal, tem legitimidade o ofendido para intervir, visando que seu ofensor seja pelo menos processado criminalmente. É certo que a decisão que arquiva o feito em atendimento a promoção Ministerial é verdadeira decisão declaratória de extinção de punibilidade. Portanto, no meu entender admite recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, inc. VIII, do CPP. O interesse do ofendido, não está limitado somente a reparação civil do dano, mas alcança a exata aplicação da justiça penal. Princípio processual da verdade real. Amplitude democrática dos princípios que asseguram a ação penal privada subsidiária e o contraditório, com os meios e recurso a ele inerentes, art. 5º, LV e LIX, CF/88. Carta testemunhável a que se dá provimento para cassar a decisão que não recebeu o Recurso em Sentido Estrito, para que este recurso seja recebido e suba ao E. Tribunal de Justiça”. Carta Testemunhável 03/2005 - Segunda Câmara Criminal – unânime – Des. Gizelda Leitão Teixeira – j. 26/6/05.
"Recurso em Sentido Estrito – Crime do Art. 155, § 3º, do Código Penal – Rejeição da Denúncia – Hipóteses do art. 43, do Código de Processo Penal – Inocorrência – Provimento do Recurso". Recurso em Sentido Estrito 00576/06 – Oitava Câmara Criminal – Dês. Maria Zélia Procópio da Silva – j. 21/12/06.
"Carta Testemunhável – Inquérito Policial – Furto de Energia Elétrica – Decisão de Arquivamento, a requerimento do Promotor de Justiça, baseada em antecipada prescrição, pela pena ideal – Inviabilidade de reconhecimento da aludida prescrição, ante a falta de previsão legal, e ainda, por que, no caso concreto, o alegado suporte da aventada prescrição consistiu na errônea consideração de ser o indiciado menor de 21 anos de idade ao tempo dos fatos – Ausência de recurso do Ministério Público, omissão ensejadora da interposição de Recurso em Sentido Estrito pela empresa lesada, que o próprio parquet admite ser legítima interessada – Em se achando satisfeitos os pressupostos do art. 644 do CPP, decide-se de logo o Recurso em Sentido Estrito – Provimento"” Carta Testemunhável 08/2006 – Segunda Câmara Criminal – Dês. Telma Musse Diuna – j.10/7/06.
Poderia ser argumentado que o resultado dos recursos citados foi a remessa ao Procurador-Geral de Justiça e que as alterações do anteprojeto abreviariam tal exame. Contudo, ainda assim não haveria decisão judicial vedando o arquivamento pelo fundamento até aqui considerado ilegal pelos Tribunais Superiores.
Sob os aspectos acima mencionados, o anteprojeto dá um passo atrás na possibilidade de a vítima se socorrer do Judiciário para fiscalizar a legalidade dos atos do Ministério Público praticados durante a fase inquisitorial, reduzindo ainda mais a concretização da combalida garantia prevista no artigo 5º, inciso LIX, da CF/88.
Aliás, a ação penal subsidiária da pública seria um ótimo instrumento para os casos em que o Ministério Público não promovesse a ação penal após a divergência do Poder Judiciário quanto à legalidade do arquivamento feito sob alegação de causa inexistente de extinção da punibilidade ou fato típico não reconhecido pelo Parquet.
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*Advogado do escritório Felipe Amodeo Advogados Associados
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