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O projeto de reforma do tribunal de impostos e taxas

Encontra-se em tramitação na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei n. 692/08, do Sr. Governador do Estado, elaborado no âmbito da Secretaria da Fazenda, que modifica as regras sobre o processo administrativo tributário decorrente de lançamento de ofício.

12/12/2008


O projeto de reforma do tribunal de impostos e taxas

Rogério Pires da Silva*

Encontra-se em tramitação na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei n. 692/08 (Clique aqui), do Sr. Governador do Estado, elaborado no âmbito da Secretaria da Fazenda, que modifica as regras sobre o processo administrativo tributário decorrente de lançamento de ofício.

A justificativa oficial da proposta é tornar mais célere o julgamento de processos submetidos ao Tribunal de Impostos e Taxas – órgão julgador administrativo responsável pela apreciação dos recursos dos contribuintes contra autuações formuladas pela fiscalização estadual. A idéia maior ventilada na proposta é a digitalização integral do processo administrativo, o que é saudável e de fato contribuiria para a agilização nos julgamentos.

Todavia, e na esteira de inúmeras outras medidas adotadas nos últimos anos, a proposta traz diversas "inovações" adicionais que nada têm a ver com a digitalização do processo administrativo e que, inseridas maliciosamente no corpo da proposta, contribuirão, infelizmente, para que o Tribunal de Impostos e Taxas se especialize ainda mais numa vocação para a qual não foi criado – e que não condiz com a tradição e independência que já teve outrora.

De fato, se aprovado o projeto em tela, aquele órgão tende a ser, cada vez mais, uma singela repartição que homologa servilmente os lançamentos de ofício, onde os julgadores – que deveriam trabalhar para aprimorar o lançamento, minimizando as futuras execuções fiscais fadadas ao insucesso – são limitados por diversas regras que lhes retiram a necessária independência e imparcialidade, ceifando igualmente os poucos resquícios do devido processo legal e da ampla defesa que ainda existem naquele órgão.

Ora, a Constituição Federal (clique aqui) garante aos litigantes, mesmo no processo administrativo, o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV). No Estado de São Paulo, a Lei n. 10.941/01 (clique aqui) (que deve ser substituída pelo projeto em tramitação) também assegura no processo administrativo os princípios da publicidade, do contraditório e da ampla defesa (art. 2º). Todavia, ao que tudo indica esses pilares do direito continuarão sendo cada vez mais desprezados no processo administrativo fiscal paulista.

Exemplo contundente disso é o que se passa no campo da dilação probatória.

Atualmente já não é mais possível a produção de prova pericial na esfera administrativa tributária no Estado de São Paulo, pois o art. 20 da Lei n. 10.941/01 determina que as provas deverão ser apresentadas com a própria defesa. O cerceamento do direito à prova pericial conduz inevitavelmente a uma inconstitucional limitação da ampla defesa, como qualquer estudante de direito é capaz de perceber.

Neste particular o projeto de lei em trâmite na Assembléia Legislativa traz a "inovação" de proibir também a prova contrária à presunção legal, pois seu art. 20 diz que independe de prova os fatos "em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade". A prevalecer tal "inovação" – que, como se pode facilmente constatar, não diz respeito à digitalização do processo administrativo – poderá haver cerceamento de defesa em relação ao contribuinte que pretende comprovar a idoneidade de documento fiscal por ele emitido, em face de presunção de inidoneidade imputada pela fiscalização em razão de erro no seu preenchimento, por exemplo. Dentre outras muitas presunções existentes na legislação do ICMS, presume-se desacompanhada de nota fiscal a mercadoria acompanhada por nota fiscal considerada inábil (art. 68 da Lei n.º 6.374/89 - clique aqui).

Não há dúvida de que cercear o direito de produzir prova conduz à celeridade no julgamento. Como se vê, os fins são aparentemente nobres, mas os meios não podem ser esses, pois o direito à produção da prova no processo administrativo (deduzido do princípio da ampla defesa) é certamente mais importante que o direito à celeridade processual. Ninguém deseja um julgamento lento, mas é ainda pior um julgamento injusto. Custa acreditar que o Tribunal de Impostos e Taxas fique proibido de apreciar a prova contrária à presunção legal, e se tal medida prevalecer será um duro golpe à independência daquele órgão julgador administrativo.

Quem milita na área tributária e especificamente em julgamentos no Tribunal de Impostos e Taxas sabe que aquele órgão simplesmente não divulga as decisões que sejam contrárias aos interesses fazendários, publicando em seu boletim de jurisprudência apenas as decisões tomadas em favor do fisco – o que impede flagrantemente o exercício do direito de recorrer em face de eventual divergência ao órgão especial daquela Corte (Câmaras Reunidas). O projeto em trâmite na Assembléia simplesmente é silente a respeito, ao invés de criar condições para que isso seja corrigido (a divulgação de todas as decisões do Tribunal em meio eletrônico acessível aos contribuintes seria perfeitamente compatível com a propalada digitalização do processo administrativo).

Outra "inovação" que promete contribuir para a rapidez nos julgamentos diz respeito à sustentação oral. Trata-se de instrumento muito utilizado por advogados para trazer ao conhecimento dos demais julgadores a argumentação de recurso que muitas vezes é omitida pelo relator, e que pode ser relevante para o julgamento. O art. 35 da Lei n. 10.941/05 garante esse direito por quinze minutos, desde que o tribuno se atenha "à matéria de natureza própria do recurso" (como se fosse necessário o legislador limitar o assunto a ser tratado em quinze minutos na sustentação oral!). Mas o projeto de lei em comento simplesmente se omite a respeito e, ao revogar aquele diploma, revogará também a própria possibilidade de sustentação oral.

É antiga a discussão sobre se os órgãos julgadores administrativos podem ou não apreciar matéria constitucional, e nesse sentido nossos tribunais administrativos em todas as esferas se declaram, na generalidade dos casos, incompetentes para deixar de aplicar uma lei tida por inconstitucional. O projeto aqui analisado vai além das tradicionais discussões doutrinárias a respeito do tema, pois dispõe expressamente, em seu art. 28, que no julgamento perante o Tribunal de Impostos e Taxas "é vedado afastar a aplicação de legislação tributária sob alegação de ilegalidade ou inconstitucionalidade" (grifamos). Ora, se no julgamento de um auto de infração a aplicação de uma portaria do Secretário da Fazenda, por exemplo, é manifestamente incompatível com o que estabelece a própria lei, o mínimo que um órgão julgador administrativo independente deve fazer é homenagear a lei e deixar de aplicar o ato que a desafia (e que lhe é hierarquicamente inferior).

Como se vê, a independência do Tribunal de Impostos e Taxas é sacrificada, no projeto de lei, não apenas para que se assegure a aplicação da lei inconstitucional, mas também para que se prestigie a aplicação de quaisquer atos normativos tidos por ilegais. A regra é considerada tão importante no projeto de lei que seu "descumprimento" ensejaria pedido fazendário de reforma do julgado (art. 49). Com o perdão do absurdo, o próximo passo nessa toada deve ser a regra de interpretação segundo a qual o auto de infração contrário à lei só pode ser anulado se for simultaneamente incompatível com ato normativo da Secretaria da Fazenda.

Aliás, em sendo aprovadas as novas regras, é difícil imaginar em que situação seria lícito ao Tribunal de Impostos e Taxas ousar cancelar um auto de infração.

Novamente, a contribuição para a celeridade do processo administrativo tende a levar ao já assoberbado Poder Judiciário o exame das matérias (e das provas) desprezadas na esfera administrativa. A cobrança da dívida ativa em Juízo parece estar, de fato, cada vez mais descompromissada com o aperfeiçoamento qualitativo, até porque o próprio Poder Judiciário se mostra complacente com a fazenda pública quando esta é condenada nos ônus da sucumbência – e com isso os magistrados se tornam de certa maneira co-responsáveis pela sobrecarga de processos judiciais.

O projeto de lei em comento, nas "inovações" acima comentadas (dentre tantas outras que merecem um estudo mais aprofundado), possui um inquestionável viés autoritário e contrário aos mais elementares princípios do Estado de Direito. Em nome da celeridade, o legislador não hesita em solapar as garantias processuais administrativas, como se fosse culpa do contribuinte a demora no julgamento dos processos. Os postulados da ampla defesa e do contraditório vão sendo minimizados, a cada "reforma" da legislação processual administrativa, como se fossem a causa da morosidade do órgão público.

Espera-se, assim, que o Projeto de Lei n. 692/08 do Poder Executivo do Estado de São Paulo seja examinado com a devida cautela pela Assembléia Legislativa. Melhor seria que não fosse aprovado antes de uma abrangente consulta à sociedade, mas no mínimo deveriam ser expurgados do projeto os dispositivos acima comentados, pois contribuem para a celeridade processual à base da pura eliminação de direitos do contribuinte.

Se o propósito do autor do projeto é mitigar a fase recursal administrativa só para ter julgamentos mais céleres, e se a intenção é assegurar de vez o êxito fazendário a qualquer custo, então deveria o projeto estipular, para regozijo do fisco, que os lançamentos de ofício só podem ser cancelados pelo voto da unanimidade dos membros daquela Corte.

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*Advogado do escritório Boccuzzi Advogados Associados









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