Art. 166 do CTN, um dispositivo inútil
O art. 166 do CTN é criticado por criar condições inexequíveis para restituição de tributos indiretos, gerando insegurança e retenção indevida.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
Atualizado em 2 de dezembro de 2024 10:17
Prescreve o art. 166 do CTN:
Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Esse dispositivo é inútil, porque não poderá ser aplicado em nenhuma hipótese de restituição de tributo indireto, como veremos.
Sob o pretexto de regular a repetição dos chamados tributos indiretos, impõe ao sujeito passivo condições de impossível repetição em determinados casos, perpetrando a retenção indevida do tributo pelo sujeito ativo. A norma em questão implica confusão entre relação jurídica de direito privado, existente entre o comprador e o vendedor de bens e serviços, e a relação de direito público, existente entre o contribuinte e o fisco.
Outrossim, não há definição legal do que seja tributo direto e tributo indireto, nem possibilidade de verificação objetiva da repercussão econômica do imposto, pelo que esse fenômeno não poderá servir como critério balizador do direito à restituição do indébito. Não é por outra razão que a Corte Suprema orientou-se no sentido da irrelevância jurídica do fenômeno da repercussão econômica para reconhecimento do direito ao crédito do ICMS.1
Por outro lado, a expressão "a quem prove haver assumido referido encargo" não pode ser interpretada no sentido de legitimar o contribuinte de fato no polo ativo da ação de repetição. Aludida expressão deve ser interpretada em harmonia com o caput do art. 165 que confere ao sujeito passivo (contribuinte ou responsável tributário, conforme parágrafo único do art. 121 do CTN, o direito à restituição total ou parcial do indébito tributário.
Apesar da insistência de alguns doutrinadores, com eco no Judiciário, não é possível juridicamente àquele que não foi parte na relação de direito material vir a juízo reclamar contra a Fazenda, que sequer o conhece. É verdade que o STJ tem entendido, em reiterados julgados, que em se tratando de fornecimento de energia elétrica, o consumidor final, principalmente, quando se referir à "demanda contratada", pode questionar judicialmente a exigência do imposto e, por conseguinte, pode pleitear a sua restituição. Vejamos a ementa de um de seus acórdãos:
"Processual civil - Recurso especial - Súm. no 07/STJ - Art. 5352 do CPC - Negativa de prestação jurisdicional - Inocorrência - ICMS - Demanda contratada de energia elétrica - Legitimidade do consumidor final para figurar no polo ativo de demandas visando ao reconhecimento do caráter indevido da tributação - Não incidência - Precedentes.
1. É vedado o reexame de matéria fático-probatória em sede de recurso especial, a teor do que prescreve a Súm. no 07 desta Corte.
2. Não viola o art. 5353 do CPC, nem importa em negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. Precedentes: EDcl no AgRg no EREsp no 254949/SP, Terceira Seção, Min. Gilson Dipp, DJ de 8-6-2005; EDcl no MS no 9213/DF, Primeira Seção, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 21-2-2005; EDcl no AgRg no CComp no 26808/RJ, Segunda Seção, Min. Castro Filho, DJ de 10-6-2002.
3. O consumidor final é o sujeito passivo da obrigação tributária, na condição de contribuinte de direito e, ao mesmo tempo, de contribuinte de fato, e, portanto, parte legítima para demandar visando à inexigibilidade do ICMS sobre os valores relativos à demanda contratada de energia elétrica.
4. Segundo orientação traçada em julgados de ambas as Turmas integrantes da 1a Seção, não incide o ICMS sobre as quantias relativas à chamada demanda contratada de energia elétrica.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido". (REsp no 809753/PR - rel. Min. Teori Albino Zavascki - DJ de 24-4-2006, p. 374)
No mesmo sentido: REsp no 952.834/MG, rel. Min. Denise Arruda, DJ de 12-9-2007, p. 407; AgRg no REsp no 797.826/MT, rel. Min. Luiz Fux, DJ de 21-6-2007, p. 283; REsp no 1044042/RS, rel. Min. Castro Meira, DJe de 31-8-2009).
Portanto, esses julgados admitem o consumidor final no polo ativo da ação de repetição de indébito.
Porém, esse posicionamento não pode ser generalizado. Para a perfeita compreensão da matéria mister se faz atentar para o tratamento específico dispensado à energia elétrica pela Constituição de 1988, que nas operações interestaduais faz com que o consumidor final assuma a condição de contribuinte do imposto.
A Carta Magna começa por conferir à energia elétrica, para fins de tributação pelo ICMS, a natureza de mercadoria (§ 3o do art. 155 da CF) que, na conceituação tradicional, é bem corpóreo4 objeto de atos de comércio. Em seguida, dispôs que não incide o ICMS sobre operações que destinem a outros Estados, entre outros produtos, a energia elétrica (art. 155, § 2o, X, b, da CF).
Excepcionando o posicionamento no sentido de que os termos "não incidência" e "isenção" utilizados pelo texto constitucional significa imunidade, que atua no campo de definição de competência tributária, o STF entendeu que a hipótese da letra b, do inc. X, do § 2o, do art. 155 retrorreferido não é de imunidade.
Do contrário, inconstitucional seria o disposto no inc. III do § 1o do art. 2o da LC no 87/1996 que prescreve a incidência do ICMS "sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo (...) de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente".
Realmente, se a saída é imune, a entrada não pode ser tributada, porque uma coisa só sai do território de um Estado quando ela entra no território de outro Estado.
Mediante interpretação conjugada desse dispositivo da Lei Complementar com a letra b do inc. X do § 2o do art. 155 da CF, o STF entendeu que não é caso de imunidade, mas de não incidência, como a própria norma proclama, a fim de beneficiar, não o contribuinte, mas o Estado destinatário (RE no 358.956-3/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 27-6-2008. No mesmo sentido: RE no 198.088, rel. Min. Ilmar Galvão, RE no 338.681, rel. Min. Carlos Velloso, RE no 201.703, rel. Min. Moreira Alves, AgIn no 749.431-AgRg, rel. Min. Eros Grau; AgIn no 801.149, rel. Min. Cármen Lucia).
Nessas condições, o consumidor final, que adquire a energia elétrica de outro Estado, deve pagar integralmente o ICMS devido no Estado destinatário, beneficiário da norma de não incidência tributária. Neste caso, o consumidor final reveste a condição de contribuinte do ICMS nos expressos termos do inc. IV do parágrafo único do art. 4o da LC no 87/1996:
"Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, (...)
Parágrafo único. É também contribuinte a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial:
(...)
IV - adquira lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo e energia elétrica oriundos de outro Estado, quando não destinados à comercialização ou à industrialização".
Esta é a única hipótese em que o consumidor final se posiciona como contribuinte. Essa hipótese não pode ser generalizada para sustentar que o contribuinte de fato, por arcar com o ônus do encargo tributário, é parte legítima para propor ação de repetição de indébito. A legitimidade, nesse caso excepcional, não decorre do fato de o consumidor final ter suportado o encargo financeiro do tributo, mas da sua condição de contribuinte do imposto (contribuinte de direito), por expressa definição legal.
É relevante assinalar que não existe contribuinte de tributo sem prévia definição legal. E a definição de contribuinte pela lei da entidade tributante há de ser precedida pela definição em caráter de norma geral, conforme art. 146, III, a, da CF.
Por essa razão, o consumidor final de energia elétrica só reveste a figura de contribuinte em operações interestaduais, conforme, aliás, bem esclarecido ficou no acórdão de relatoria do Min. Herman Benjamin (REsp no 928875/MT, DJe de 1o-7-2010) que serve de parâmetro para desfazer eventuais confusões.
Outra exigência do art. 166 sob comento é a de que o contribuinte que transferiu ao consumidor final o encargo financeiro do tributo esteja previamente autorizado a pleitear a repetição de indébito.
Ora, milhares são os consumidores finais dispersos em diferentes localidades, inclusive, no exterior, na hipótese em que um turista residente no estrangeiro promove o consumo de mercadorias no Brasil. O art. 166 do CTN exige uma condição inexequível, tornando inútil e desnecessário esse dispositivo.
Dessa forma, o fisco comete um enriquecimento sem causa, fundamento básico da repetição de indébito que repousa no princípio da legalidade tributária.
Permitir que o contribuinte, que repassou o encargo financeiro de tributo, isto é, que não efetuou o seu pagamento pleiteie a restituição do tributo repassado, acrescido de juros e correção monetária, igualmente, comete um enriquecimento sem causa, violador do princípio da legalidade tributária.
O que fazer? Revogar o dispositivo inútil não é o caminho, pois deixaria um vácuo a ser preenchido pela jurisprudência que trilharia pela via da repetição pelo contribuinte de tributo indireto.
É preciso, então, optar por uma das alternativas retroapontadas. Quer me parecer que é preferível que o erário se aproprie do tributo cobrado com violação do princípio da legalidade que fundamenta a ação de repetição de indébito, porque esse tributo será, certamente, aplicado na consecução dos fins do Estado, o que não aconteceria com a receita indevidamente auferida por particular.
Dessa maneira, a solução mais adequada para o caso está na alteração redacional do art. 166 do CTN, para dispor que não cabe restituição de tributo indireto, que se caracteriza pelo embutimento do valor do tributo no preço da mercadoria ou de serviço.
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1 RTJ 132/370; RTJ 149/870; RE 170.830-1/SP, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 30-5-1997.
2 Corresponde ao art. 1.022 do CPC/2015.
3 Idem.
4 O Código Civil, em seu art. 83, I, considera como móveis as energias que tenham valor econômico.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.