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O Supremo e a retroatividade da Cofins

O STF decidiu finalmente que as sociedades de profissionais liberais - como as formadas por advogados, contadores, médicos, dentistas, engenheiros, arquitetos e vários outros da elite pensante do país - estão obrigadas a pagar a Cofins. O Supremo decidiu que a isenção que gozavam foi revogada em 1996, autorizando a Receita Federal do Brasil cobrar retroativamente os débitos não prescritos, com multa e juros. Fala-se em R$ 5 bilhões de Cofins devidos por essas sociedades de profissionais liberais.

13/10/2008


O Supremo e a retroatividade da Cofins

Roberto Pasqualin*

O STF decidiu finalmente que as sociedades de profissionais liberais - como as formadas por advogados, contadores, médicos, dentistas, engenheiros, arquitetos e vários outros da elite pensante do país - estão obrigadas a pagar a Cofins. O Supremo decidiu que a isenção que gozavam foi revogada em 1996, autorizando a Receita Federal do Brasil cobrar retroativamente os débitos não prescritos, com multa e juros. Fala-se em R$ 5 bilhões de Cofins devidos por essas sociedades de profissionais liberais.

A autorização da cobrança retroativa retrata uma das maiores injustiças praticadas pelo Supremo e exige uma reflexão profunda sobre a natureza de certos conceitos e da função de certas instituições. Alinharei muito brevemente alguns pontos que me ocorrem para essa reflexão.

Inconformada com a orientação de muitos anos do STJ pela isenção da Cofins, a Fazenda Nacional procurou o Supremo e conseguiu reverter aquela orientação. E não apenas isso: conseguiu revertê-la retroativamente. O STJ havia julgado essa mesma questão em sentido exatamente oposto, anos antes, dizendo que a isenção da Cofins continuava presente no sistema jurídico tributário brasileiro. As sociedades de profissionais liberais seguiram a orientação do STJ... E agora serão multadas pesadamente e cobradas retroativamente porque o Supremo, contrariando o STJ, decidiu que a isenção estava revogada. Não se questiona aqui qual das duas justiças está certa - a do STJ ou a do Supremo. Nos bancos de qualquer faculdade de direito se aprende que a última palavra é reservada ao Supremo. Mas exatamente por ser a última, a definitiva, a irrecorrível, a suprema é a que deveria ser a mais responsável, a mais abrangente, a mais justa. O Supremo deve olhar toda a floresta, e não só a árvore.

A suprema injustiça do Supremo foi desconsiderar que o STJ - um órgão superior do Poder Judiciário, tanto quanto ele - afirmou a isenção da Cofins muito antes dele e que, guiadas pela jurisprudência do STJ, as milhares de sociedades de profissionais liberais consideraram-se isentas da Cofins, por anos e anos, e muitas não pagaram o tributo. O Supremo poderia ter feito justiça usando a chamada modulação dos efeitos de sua decisão, mecanismo criado exatamente para evitar a repercussão desastrosa da retroação dos efeitos de julgamentos como esse. Mas não. Dos onze ministros da mais alta corte de Justiça do país, apenas cinco votaram pela justiça da modulação. Os demais preferiram a injustiça da retroação, igualando uma única e isolada manifestação de um ministro já aposentado do Supremo à abundante, sumulada e pacífica jurisprudência anterior do STJ, tribunal superior tanto quanto. Olharam a árvore e não viram a floresta de milhares e milhares de contribuintes que seguiram a orientação do STJ.

O direito, ensinou um dos nossos maiores, é a disciplina da convivência humana. A sociedade elabora normas para disciplinar a conduta dos indivíduos segundo o estado evolutivo de seus integrantes, para disciplinar a convivência harmônica de todos em sociedade. Para alguns, quando violam as normas de convivência, são necessárias regras de sanção. Assim é o direito, construído pelos legisladores e aplicado pelos juízes - direito vivo, dinâmico, em transformação constante. Em permanente mudança, condutas socialmente aceitas em determinada época deixam de sê-lo tempos depois. Sujeitas à punição, em um tempo, deixam de sê-lo, em outro tempo.

Manter a harmonia social e a segurança jurídica e, ao mesmo tempo, atender as necessidades novas e as novas condutas da vida em sociedade, ainda não disciplinadas pelo direito - essa é a maior e talvez mais difícil função dos juízes. Deles se exige uma enorme sensibilidade e um imenso senso de justiça. Fazer justiça, atendendo ao mesmo tempo o direito e a evolução da sociedade, não é simplesmente julgar os casos levados aos tribunais. Haverá justiça em punir sociedades de profissionais que por anos a fio agiram de acordo com o direito até então interpretado pelos tribunais e que, muitos anos depois, são submetidos a interpretação oposta, por outro tribunal?

Fazer justiça, no caso da isenção da Cofins para as sociedades de profissionais liberais, não seria somente julgar válida ou inválida a isenção, como foi feito, mas avaliar a repercussão geral da decisão para a sociedade toda. O Supremo aplicou o direito mas não fez justiça. Olhou só a árvore, não a floresta. Não teve a sensibilidade que se exige do magistrado de avaliar as outras normas construídas pelo próprio Poder Judiciário para disciplinar a convivência da sociedade humana, muito antes dele. A decisão não foi útil para a sociedade, não foi justa para os interessados, não foi exata e nem foi proporcional. No caso, o Supremo deveria reconhecer o erro e rever a decisão quanto à modulação, mas isso seria talvez esperar demais desses onze homens e mulheres, que são seres humanos como quaisquer outros, assoberbados de trabalho. A convicção pessoal de alguns, a soberba talvez de outros, os entraves regimentais, certamente os impedirão de fazer isso. Bom saber que ao menos cinco dos ministros pensaram diferente. Talvez consigam mostrar aos outros, em outra situação, a injustiça praticada.

Quem sabe o Poder Executivo se sobreponha ao Poder Judiciário e faça ele a modulação dos efeitos do julgamento do Supremo, por meio de uma medida provisória ou de uma lei que permita às sociedades de profissionais liberais

(1) um prazo longo para o pagamento da Cofins antes isenta, que não poderão repassar retroativamente a seus custos;

(2) a anistia das multas para quem seguiu a orientação do STJ e não pode ser responsabilizado por infrações a que não deu causa;

(3) a dispensa dos juros moratórios, pelos longos anos que o Judiciário levou para julgar definitivamente a questão; e

(4) a dispensa da sucumbência e demais verbas nas execuções fiscais e demais ações judiciais relacionadas ao tema, provocadas pela mesma demora do Judiciário em concluir o julgamento.

Aí se estará fazendo justiça.

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*Conselheiro jurídico e presidente da Força Tarefa de Tributação da Amcham. Sócio-titular do escritório Pasqualin Advogados












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