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O IBAMA e o abuso de autoridade

Como corolário do federalismo cooperativo, o poder-dever de proteção do meio ambiente é constitucionalmente repartido entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com especificação das competências legislativas e materiais que lhes são atribuídas.

21/9/2004

O IBAMA e o abuso de autoridade


Mariana Matos de Oliveira*

Como corolário do federalismo cooperativo, o poder-dever de proteção do meio ambiente é constitucionalmente repartido entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com especificação das competências legislativas e materiais que lhes são atribuídas.

A competência legislativa é conferida concorrentemente a União, aos Estados e ao Distrito Federal, reservando-se ao Município competência supletiva para editar normas que envolvam interesses locais não disciplinados pelas leis federais e estaduais.

Dentro desse critério de repartição da competência legislativa, as normas gerais editadas pela União são de observância obrigatória, enquanto as leis estaduais poderão dispor sobre todas as matérias não contempladas na legislação federal e as municipais sobre aquelas de interesse local.

Diferentemente, a competência material ou administrativa é atribuída comumente a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e envolve o exercício do poder de polícia na prevenção de danos ambientais e na conservação dos recursos naturais, como bem destacado na lição de Álvaro Lazzarini:

Dessa normatização constitucional, como assevera o ambientalista Vladimir Passos de Freitas, surge, para as entidades federadas, a atribuição do poder de legislar e, como conseqüência direta, o de fiscalizar, sendo que fiscalização, como entendo, é um dos modos de atuação do poder de polícia, com a dupla utilidade de realizar a prevenção das infrações pela observação do comportamento dos administrados, relativamente às ordens e aos consentimentos de polícia; em segundo lugar, prepara a repressão das infrações pela constatação formal dos atos infringentes, tudo conforme lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto a que voltarei logo mais.

Pode, pois, a denominada Polícia Ambiental ser executada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, certo que, como salienta Vladimir Passos de Freitas, "este poder que é, normalmente, exercido para limitar os direitos individuais, pode ser dirigido, também, contra as mesmas pessoas jurídicas de Direito Público. Entre elas não há hierarquia no nosso sistema federativo. Assim, desde que uma delas esteja atuando nos limites de sua competência, firmada na Constituição Federal, as outras deverão curvar-se e obedecer", inclusive, na regularização fundiária nas áreas de interesse ambiental. "1

Justamente por envolver o exercício do poder de polícia pela administração pública, as atividades de fiscalização, preservação e conservação do meio ambiente devem jungir-se aos limites impostos à atuação da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sob pena de restarem irremediavelmente comprometidas pela ausência de competência do agente ou executor.

O interesse preponderantemente ameaçado ou infringido é que servirá de balizamento para a limitação do campo de atuação do poder de polícia administrativa.

Em se tratando de interesse ambiental que envolva zona urbana ou de expansão de um determinado Município, a competência para fiscalizar e aplicar sanções por danos causados ao meio ambiente caberá ao órgão municipal ambiental.

Porém, havendo interesse de mais de um Município, a competência será do Estado em que se situarem, enquanto à União caberá o exercício do poder de polícia sempre que as atividades fiscalizadas provoquem repercussão regional ou nacional na proteção ao meio ambiente.

Supletivamente, havendo caracterização de omissão injustificada do órgão ambiental competente, quaisquer dos entes da federação poderão exercer o poder de polícia na fiscalização de atividades potencialmente poluidoras, ainda que fora dos limites dos interesses por elas tutelados.

Não obstante a clareza do critério utilizado para limitar a competência material, constantes são os conflitos gerados pela disputa do poder de fiscalização do meio ambiente entre os Estados, a União e os Municípios, muitas vezes escondidos sob justificativas de exercício supletivo do poder de polícia ou de enquadramento de bens e atividades como de preponderantes interesses ESTADUAIS, NACIONAIS ou REGIONAIS.

Neste contexto de disputa pelo poder de fiscalização ambiental, a atuação do IBAMA é a que mais se destaca negativamente em razão das ingerências indevidas em atividades cujos riscos efetivos ou potenciais ao meio ambiente estariam restritos ao âmbito de interesse municipal ou estadual.

Freqüentemente o IBAMA sobrepõe-se ao órgão ambiental competente para promover fiscalização concorrente em áreas de proteção permanente ou em regiões que possuam vegetação típica de mata atlântica, mesmo quando as atividades nelas desenvolvidas restrinjam-se a interesses e competências municipais ou estaduais.

Todavia, o simples fato de determinada propriedade particular possuir características ambientais típicas de área de preservação permanente ou contemplar vegetação de mata atlântica não faz com que seja enquadrada como de interesse NACIONAL ou REGIONAL, conforme entendimento sedimentado pelo STF:

EMENTA: COMPETÊNCIA. CRIME AMBIENTAL. ARTIGO 50 DA LEI N.º 9.605/98. DESTRUIR OU DANIFICAR VEGETAÇÃO DE CERRADO SEM AUTORIZAÇÃO DO IBAMA, AUTARQUIA FEDERAL. DELITO OCORRIDO EM PROPRIEDADE PRIVADA. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. Hipótese em que não se configura a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito, nos termos do art. 109, inciso IV, da Carta Magna, porque o interesse da União, no caso, se manifesta de forma genérica ou indireta. Precedentes. Recurso extraordinário não conhecido.”

(RE 349191 / TO – TOCANTINS, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento: 17/12/2002, Primeira Turma, Publicação: DJ DATA-07-03-2003 PP-00042 EMENT VOL-02101-04 PP-00739)

“EMENTA: PENAL. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA JULGAR O CRIME PREVISTO NO ART. 46, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N.º 9.605/98. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 109, IV; E 225, § 4.º, DA CF. Inexistência das inconstitucionalidades apontadas, haja vista não se enquadrar a Mata Atlântica na definição de bem da União e não se estar diante de interesse direto e específico desta a ensejar a competência da Justiça Federal. Precedente. Recurso extraordinário não conhecido.”
(RE 299856 / SC - SANTA CATARINA, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento: 18/12/2001,Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação: DJ DATA-01-03-02 PP-00052 EMENT VOL-02059-07 PP-01414)

Ao extrapolar os limites da competência material, o IBAMA age com abuso de autoridade por impor restrições e sanções administrativas que fogem da sua área de atuação e controle:

“Feita essa observação, volto, porém, a insistir, com José Cretella Júnior, que: "Do mesmo modo que os direitos individuais são relativos, assim também acontece com o poder de polícia que, longe de ser onipotente, incontrolável, é circunscrito, jamais podendo pôr em perigo a liberdade e a propriedade. Importando, regra geral, o poder de polícia, restrições a direitos individuais, a sua utilização não deve ser excessiva ou desnecessária, para que não configure o abuso de poder. Não basta que a lei possibilite a ação coercitiva da autoridade para justificação do ato de polícia. É necessário, ainda, que se objetivem condições materiais que solicitem ou recomendam a sua inovação. A coexistência da liberdade individual e o poder público repousam na conciliação entre a necessidade de respeitar essa liberdade e a de assegurar a ordem social. O requisito da conveniência ou do interesse público é, assim, pressuposto necessário à limitação dos direitos do indivíduo. Escreve Mário Masagão: “Pode a polícia preventiva fazer tudo quanto se torne útil a sua missão, desde que com isso não viole direito de quem quer que seja. Os direitos que principalmente confinam a atividade de polícia administrativa são aqueles que, por sua excepcional importância, são declarados na própria Constituição'".”2

A par do abuso de autoridade e da violação as regras do regime federativo, o mais nefasto efeito das ações excessivas do IBAMA é a insegurança jurídica que provoca nos administrados quando, por exemplo, interfere em atividades que já foram objeto de fiscalização pelos órgãos ambientais estaduais e municipais ou promove o embargo de empreendimentos devidamente licenciados pelas autoridades ambientais competentes.

Essas questões ganham especial relevo no cenário atual, em que o Governo Federal planeja implementar a Parceria Público – Privada, através da qual firmará ajustes com empresários para que, dentre outras ações, promovam obras públicas de especial interesse da população, como a construção de estradas e hidrelétricas.

Como grande parte dos projetos da Parceria Público - Privada envolvem atividades potencialmente poluidoras, a ausência de segurança jurídica quanto aos rumos da atividade de fiscalização ambiental poderá desestimular, por completo, a adesão dos empresários.

Causa perplexidade que a concentração de ações com impacto negativo nos futuros empreendimentos seja originária da política adotada pelo IBAMA, quando o Governo Federal vem propagando a necessidade de retomada de investimentos no mercado brasileiro, na expectativa do tão esperado “espetáculo do crescimento”.

Independente da colisão da política de fiscalização do IBAMA com os propósitos de expansão econômica apregoados pelo Governo federal, não se pode conceber que a proteção ao meio ambiente seja realizada de modo a inviabilizar o crescimento econômico e social do país, pois ambos os interesses encontram-se protegidos por princípios e normas constitucionais, inviabilizando que um seja eleito em detrimento do outro.

A perfeita compreensão das normas constitucionais conduz, sim, à necessária convivência harmônica entre a proteção do meio ambiente e as políticas de desenvolvimento econômico e social.

Portanto, o respeito à limitação do poder de fiscalização ambiental não socorre apenas a integridade do regime federativo, mas também à necessidade de conferir segurança aos administrados e permitir uma convivência harmônica entre os interesses de proteção ao meio ambiente e de crescimento econômico e social.
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1 LAZZARINI, Álvaro. In Revista Forense 331, artigo “Aspectos Administrativos do Direito Ambiental”, extraído da palestra proferida na I Semana de Direito Ambiental, em março de 1994, São Paulo – SP, páginas 40 e 41.

2 LAZZARINI, Álvaro. In Revista Forense 331, artigo “Aspectos Administrativos do Direito Ambiental”, extraído da palestra proferida na I Semana de Direito Ambiental, em março de 1994, São Paulo – SP, página 43.
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* Advogada do escritório Oliveira & Leite Advogados Associados S/C









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