Comentários sobre o art. 59 do novo Código Civil
Carlos Miguel Castex Aidar*
Já em dezembro de 2003, quando nosso escritório colocava a público sua primeira NewsLetter sobre Direito Desportivo, afirmávamos, naquela oportunidade, e justificávamos, que “as decisões de nossos Tribunais e pareceres de renomados juristas brasileiros confirmam o entendimento de que o art. 59 do Código Civil não é aplicável às associações desportivas, as quais possuem autonomia suficiente para sua organização e funcionamento, podendo, assim, eleger seus administradores da forma que melhor lhes convier ... as associações desportivas são regidas exclusivamente pela norma presente no art. 217, I, da Constituição Federal de 1988.”
Na época discutiam-se aspectos eleitorais e assembleares, de forma que as considerações de então não passaram sobre a Lei Pelé.
Mas, desde então, analisando a matéria sob comento, o sempre saudado e ilustrado Prof. Dr. Miguel Reale, autor-coordenador do novel Código Civil Brasileiro, analisando tal hipótese, escreveu, em O Estado de S. Paulo, edição de 29 de março de 2003, tratando de “As Associações no Novo Código Civil”, o seguinte:
“...Não é dito, assim, que os cargos que compõem a diretoria da associação devam ser eleitos pela assembléia geral, para cada um deles, podendo o estatuto social estabelecer a escolha por ela de todos os componentes de um conselho, cabendo a este, depois, a designação, dentre os seus membros, dos titulares dos cargos de direção. Com tais medidas fica preservado o direito dos associados de decidir livremente sobre o processo de administração que julguem mais adequados aos interesses da entidade, preferindo a eleição indireta de seus diretores, bem como que a eleição não seja global, mas apenas para uma das partes do conselho, na proporção e em datas previamente estabelecidas. Parece-me que a eleição dos dirigentes feita em dois ou mais pleitos é a mais indicada para as associações de grande porte e com valores da tradição a serem preservados, visto como, com tais providências, a renovação do quadro dirigente se operará sem rupturas e descontinuidade indesejáveis. Como se vê, o entendimento que estou dando às determinações do novo Código Civil sobre associações é o que melhor atende ao exercício da “liberdade de associação” assegurada pelo inciso VVII do artigo 5º da Constituição Federal, sem o seu prejudicial engessamento, resultante de restrita interpretação da lei, sem atender ao valor essencial da liberdade”.
Nem poderia ser diferente, posto que se estaria, mais, criando inviabilidade prática, uma vez que, pelo parágrafo único do art. 59 do CC, o quorum mínimo de instalação de assembléia de associados, para a alteração do Estatuto Social, varia de 2/3 a 1/3, dependendo se em primeira ou segunda convocação, respectivamente.
Significa isso que, se um clube hipotético, tivesse cerca de 15.000 (quinze mil) associados, necessário seria, para instalar uma assembléia geral, a presença de aproximados 7.500 (sete mil e quinhentos) associados, em primeira convocação, e 5.000 (cinco mil) associados, em segunda convocação. Mais ainda, para aprovar uma alteração estatutária seria necessária a presença de aproximados 5.000 (cinco mil) ou 3.330 (três mil, trezentos e trinta) votos afirmativos dos associados presentes.
Em outras, estaria decretado o fim e a extinção de todas as associações deste país, em face da inequívoca inviabilidade prática de reunir, numa mesma data, hora e local, aproximadamente 5.000 pessoas, como é o caso do hipótese, fazendo-as votar em concomitância.
Daí porque o i. Prof. Miguel Reale posicionou-se manifestando expressamente acerca da desnecessidade da assembléia geral, neste caso, em razão da obediência ao princípio da “liberdade de associação” que, se assim não fosse, estaria prejudicado.
A Lei 10.406/02, que instituiu o novo Código Civil, trouxe alterações substanciais à organização e ao funcionamento das associações, que em diversos casos se mostram inadequadas ao bom funcionamento dos clubes de futebol, chamados também de entidades de prática desportiva, os quais adotam este tipo de organização social.
É sabido que no Brasil a absoluta maioria dos clubes de futebol sempre adotaram, e ainda adotam, sobretudo por questões fiscais, a forma de associação, regida pelo novo Código Civil por meio dos artigos 53 e seguintes.
O ponto nevrálgico da novel legislação aplicável às associações, trazida pelo novo Código Civil, encontra-se positivado em seu artigo 59, especialmente nos incisos II e IV, que estabelecem a competência da Assembléia Geral dos membros das associações, dentre as quais encontramos desde associações de bairro, compostas por algumas dezenas de associados, até clubes de futebol, cujo quadro associativo pode ser composto por milhares de associados. Destituir seus administradores e aprovar alterações em seu estatuto social, sob a exigência de um quorum mínimo, mostra-se absolutamente impraticável.
Destarte, os clubes de futebol, como dito acima, são entes que corporificam uma das tradições mais indeléveis de nosso país, aos quais devem ser conferidos meios de minimamente manter-se ordenados e em funcionamento. Não é por outro motivo, como supramencionado, que o ilustre Prof. Miguel Reale, supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, entende como exagerado o proposto pelo novo Código Civil às associações que, ao lado de diversos outros exageros já discutidos pela doutrina e pelo Poder Judiciário, merece imediata correção.
Resta claro que o intuito almejado pelo artigo em referência foi municiar os associados de clubes de futebol com meios de efetiva participação nos rumos da vida social do clube. Todavia, ressalte-se e repita-se, que esses meios sempre foram conferidos aos associados através da representação dos milhares de associados do clube pelos membros de seu Conselho Deliberativo.
Ainda no que se refere a essa questão, impossível não mencionar os dizeres constantes no V. Acórdão proferido nos autos do recurso de agravo, por instrumento, impetrado pelo Santos Futebol Clube, da lavra do Des. Morato de Andrade, digníssimo membro da 2ª Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde, por unanimidade, assim decidiu-se:
“Não pode ter sido intenção do legislador, no artigo 59 do novo Código Civil, fazer incidir a regra do inciso IV às agremiações de grande porte, como o Clube-réu, tornando materialmente impossível qualquer reforma dos estatutos.
Acrescente-se que, entendida a lei por aquela forma, seria a mesma de duvidosa constitucionalidade, uma vez que o artigo 217 inciso I da Carta Magna obriga o Estado a respeitar a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento”.
(Agravo de Instrumento nº 322.990-4, com Acórdão registrado sob o nº 00682812 – data do julgamento - 06/04/2004)
Como se não bastasse, julgando caso análogo, envolvendo a Sociedade Esportiva Palmeiras, a 5ª Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento nº 293.980-4/0, em julgamento de 05 de agosto de 2003, assim pronunciou, em síntese:
“ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. ANULAÇÃO DE ELEIÇÕES DE SOCIEDADE ESPORTIVA. PEDIDO DE SUSPENSÃO, COM DESIGNAÇÃO DE NOVAS E NOMEAÇÃO DE ADMINISTRADOR PROVISÓRIO. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS, EM ESPECIAL A VEROSSIMILHANÇA. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO NÃO PROVIDO.
‘O artigo 59 do novo Código Civil não leva à convicção certa e induvidosa de que a eleição dos dirigentes de associações e clubes desportivos, em assembléia geral, respeitados os princípios constitucionais da autonomia de organização e funcionamento (art. 5º, XVII, C.F.), só possa ser a direta, pelos próprios sócios, e não a indireta, em dois ou mais pleitos”.
A manutenção dos clubes de futebol depende de entendimento correto do disposto no novo Código Civil, sob pena de fadá-los a gradual destruição, com a impossibilidade de deliberações essenciais ao seu funcionamento. Afinal, é inimaginável a instalação de Assembléia Geral de associados de clubes de futebol com a presença mínima de 1/3 dos milhares de membros que compõem um corpo associativo, para que assim possam adaptar seu Estatuto Social às novas disposições legais vigentes no país, especialmente no que tange a legislação desportiva, que sofreu mudanças significativas com a edição da Medida Provisória n° 79, de 27 de novembro de 2002, e da Lei 10.672, de 15 de maio de 2003.
Outrossim, ainda que assim não fosse, mas o é, fato é que as disposições contidas no artigo 59 do novo Código Civil não se aplicam às entidades de prática desportiva.
Da inaplicabilidade do artigo 59 do novo código
civil para as entidades de prática desportiva.
Os princípios constitucionais do desporto, formal ou não, são trazidos pelo artigo 217 da Constituição Federal e especialmente pelo seu inciso I, transcritos a seguir:
“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento”;
Como se vê, ao clube de futebol é constitucionalmente garantida autonomia quanto à organização e funcionamento internos. Isso significa, à saciedade, que podem os clubes de futebol adotar a forma societária que melhor lhes aprouver, organizar-se por meio de seus atos constitutivos conforme entendam mais apropriado e funcionar da maneira que acreditem mais acertado.
Como se não bastasse, o artigo 5° da Constituição Federal, que lista os direitos e deveres individuais dos cidadãos, traz em seu inciso XVII e seguintes, o princípio da liberdade de associação, sendo que, conforme dispõe o inciso XX deste mesmo artigo, “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.
Desses dispositivos, pode-se concluir que aos associados deve ser conferida a liberdade de se associarem a qualquer entidade, no caso específico a clubes de futebol, conforme desejem, e deixarem de ser associados do clube caso não mais concordem com sua forma organizativa e funcional, ou não mais compartilhem dos fins buscados pela união de pessoas que se organizaram sob essa entidade.
Neste contexto, qualquer disposição infraconstitucional que dispuser de maneira diversa ao constitucionalmente garantido, visando retirar a autonomia conferida aos clubes de futebol, é visivelmente inconstitucional ou, no mínimo, inaplicável às entidades de prática desportiva.
Se o novo Código Civil, que é uma norma hierarquicamente inferior à Constituição Federal, apresenta elementos que se mostram claramente contrários a tais princípios, não seriam esses dispositivos aptos a obrigarem os clubes de futebol a promoverem sua própria e gradual destruição, adotando procedimentos que claramente não lhes são aplicáveis na vida prática.
Percebe-se assim e nitidamente que a constitucionalização e aplicabilidade das alterações trazidas pelo novo Código Civil no que se refere às limitações impostas aos clubes de futebol que adotam a forma de associações, especialmente no que se refere a sua organização e quanto a representação de seus associados nas deliberações sociais, deve ser questionada e declarada, visto que a perpetuação dos clubes de futebol encontra-se deveras ameaçada por esses dispositivos.
Corroborando esse entendimento, o eminente Prof. Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado no jornal Valor Econômico, edição de 6 de novembro de 2003, bem dispôs acerca da inaplicabilidade do artigo 59 do novo Código Civil às entidades de práticas desportivas, haja vista o conteúdo inserto no artigo 217, I, da Constituição Federal. Em resumo, assim se posiciona o notável jurista:
“Estou convencido de que o Código Civil, no que diz respeito aos artigos 58 e 59, não se aplica às entidades desportivas, que, por força de norma especial da lei suprema, gozam de autonomia quanto a sua organização e funcionamento ... Autonomia para ‘organização’ e ‘funcionamento’ que tais entidades possuem em decorrência do art. 217, I, da Constituição Federal, diz respeito a algo diferente daquela autonomia própria das associações em geral, caso contrário a enunciação no texto constitucional seria despicienda ... Por esse motivo, entendo que o artigo 59 não é aplicável às agremiações esportivas, por força de diploma hierarquicamente superior (art. 217, I, da C.F.)”.
Mais completo e abrangente, respondendo a consulta formal formulada por um clube de futebol da capital, no final do ano de 2003, o Professor Ives Gandra é claro e preciso ao concluir acerca da inaplicabilidade (ou inconstitucionalidade) do artigo 59 do novo Código Civil para as entidades de prática desportiva.
Ademais, não é por outro motivo que o Partido Democrático Trabalhista (PDT), consoante notícia publicada no site do Supremo Tribunal Federal (ÚLTIMAS NOTÍCIAS), já ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3045), visando suspender a eficácia do artigo 59, “caput”, e seu parágrafo único do novo Código Civil, no que diz respeito a convocação de assembléias gerais com quorum mínimo para a realização de alterações estatutárias e eleições relacionadas as entidades de prática desportiva.
Mencionada notícia tece os seguintes comentários acerca dessa ADIN:
“O partido pede que seja reconhecido a essas associações o direito de decidir sobre suas formas de administração e funcionamento. O PDT cita na ação que o art. 217, I, da Constituição Federal assegura a autonomia das entidades desportivas, ao contrário do que diz o Código Civil, segundo o partido. O PDT explica na ação que o art. 59 do Código determina que as decisões das entidades sejam tomadas por meio de Assembléias Gerais, e fixa um quorum mínimo para essas deliberações. Segundo o PDT, as associações esportivas, como se sabe, congregam, em inúmeros casos, muitos milhares de associados tornando, na prática, extremamente difícil a realização de assembléias gerais com o “quorum” previsto no parágrafo único do artigo 59.
O dispositivo dispõe: "Para as deliberações que se referem os incisos II (destituição de administradores) e IV (alteração de estatuto) é exigido o voto concorde de dois terços dos presentes à assembléia para esse fim, não podendo ela deliberar, em primeira convocação, sem a maioria absoluta dos associados, ou com menos de um terço nas convocações seguintes."
Alega ainda o partido que a Lei 9.615/98 - Lei Pelé - atribuiu às entidades desportivas o caráter de pessoas jurídicas de direito privado, com estatuto próprio, tendo, portanto, organização e funcionamento autônomos, como estabelece a Lei Maior. Ao justificar o pedido de liminar, o PDT afirma que muitas associações esportivas estão precisando, com urgência, adotar as providências necessárias para a realização de suas assembléias, para que possam funcionar normalmente”.
Por derradeiro, para colocar uma pá de cal sobre o assunto, cumpre trazer à colação o parecer encaminhado ao mesmo clube antes referido, na data de 04 de fevereiro p.p., pelo i. Ministro, Prof. Dr. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, que, nada mais foi do que o autor responsável pela elaboração da Parte Geral do Novo Código Civil, na qual se encontra o artigo 59.
Nesse parecer, com inequívoca propriedade, clareza e inteligência, ao concluir o trabalho para o qual se dispôs dissertar, com absoluta isenção, o festejado jurista assim posiciona a questão em voga:
“6. Assim fixados o sentido e os limites da autonomia especial que o artigo 217, I, da Constituição concedeu às associações desportivas, e tendo em vista que as normas contidas no artigo 59 do novo Código Civil relativas à competência e a funcionamento de um dos órgãos que integram essas pessoas jurídicas se situam no terreno da organização e do funcionamento das referidas associações desportivas, com relação a elas não tem ele incidência, não se lhes aplicando conseqüentemente”.
Como visto, quer pela inviabilidade prática que o artigo 59 e seus incisos trazem aos clubes de futebol e demais associações com milhares de associados, quer pela inaplicabilidade desse dispositivo legal às entidades de prática desportiva, à vista da norma contida no artigo 217, inciso I, da Constituição Federal, não se tem como dar à norma em comento outra interpretação se não aquele de sua inaplicabilidade aos clubes de futebol organizados sob a forma de associações.
Ora, leitores, se ao art. 59 do Código Civil já se deu, doutrinária e jurisprudencialmente o tratamento comentado, o que se dizer de uma lei ordinária, no caso a Lei Pelé, por força de seu art. 27, # 11?
Extreme de dúvida, somos forçados a discordar dos ilustres advogados nominados ao início deste comentário, embora todos merecedores do maior respeito, porque, contrariamente a eles, posicionamo-nos contrários à adaptação dos clubes tanto ao art. 27 da Lei Pelé quanto ao art. 59 do Código Civil.
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* Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais