MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Reflexões sobre a responsabilidade civil do Estado no desastre natural em Porto Alegre

Reflexões sobre a responsabilidade civil do Estado no desastre natural em Porto Alegre

Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul sofreu uma catástrofe natural com chuvas intensas, enchentes devastadoras e muitas perdas humanas e materiais.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Atualizado às 13:05

1. Introdução: o desastre natural em Porto Alegre e a responsabilidade estatal

No início de maio de 2024, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores catástrofes naturais de sua história: chuvas torrenciais e um volume pluviométrico sem precedentes provocaram o transbordamento de rios, enchentes urbanas devastadoras e a submersão de bairros inteiros em Porto Alegre.

Estima-se que milhares de famílias tenham sido diretamente impactadas, com a perda de suas residências e bens essenciais, além de dezenas de mortes registradas. O evento climático foi classificado por meteorologistas como um fenômeno extremo, agravado pelo assoreamento dos rios, falhas na drenagem urbana e insuficiência das barragens e diques de contenção.

Nesse contexto, a atuação do Poder Público - seja no âmbito federal, estadual ou municipal - passou a ser questionada sob a ótica da responsabilidade civil do Estado.

Esse foi o cerne da ação judicial movida por uma cidadã atingida pelas enchentes, culminando na sentença proferida pelo Juiz Federal Substituto Bruno Brum Ribas, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, em 20 de fevereiro de 2025, no processo nº 5031767-22.2024.4.04.7100/RS.

A sentença em questão promoveu uma abordagem restritiva dessa responsabilidade, ao afastar a indenização com base no argumento de que a enchente teve caráter imprevisível e excepcional, sem nexo causal com alguma falha do poder público.

O juízo invocou o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, que atribui à União a competência para planejar e promover a defesa contra calamidades públicas, e a Lei 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC).

Em outros termos: a sentença afastou a responsabilidade dos entes federativos por entender que a enchente foi um evento climático extremo e sem precedentes, decorrente de caso fortuito e força maior, categorias que afastam o nexo de causalidade.

Os principais pontos da decisão foram: i) a Constituição atribui à União a competência para planejar e promover a defesa contra calamidades públicas (art. 21, XVIII); ii) a Lei 12.608/2012 estabelece diretrizes para a atuação estatal na proteção e defesa civil, mas não impõe um dever absoluto de evitar desastres; iii) a responsabilidade do Estado por omissão, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), exige comprovação de um dever legal específico de agir e a efetiva possibilidade de evitar o dano; iv) o poder público adotou medidas emergenciais de assistência às vítimas, como auxílio-reconstrução e programas de realocação, afastando a necessidade de indenização.

A tese central da decisão foi a de que o Estado não pode ser tratado como um segurador universal, arcando com os prejuízos individuais de cada cidadão diante de desastres climáticos extremos.

No entanto, este artigo tem por objetivo acadêmico analisar criticamente essa fundamentação. Verificaremos se, com base na visão mais recente da doutrina, o ordenamento jurídico impõe ou não ao Poder Público um dever positivo de prevenção, mitigação e reassentamento de populações em áreas de risco, tornando a responsabilidade estatal aplicável mesmo em casos resultantes de caso fortuito ou força maior. Além disso, discutiremos a responsabilidade solidária entre União, Estado e Município, considerando que a política de defesa civil exige uma atuação conjunta das três esferas federativas e que a distribuição de competências administrativas não pode ser utilizada como subterfúgio para afastar a obrigação de reparar danos individuais.

Nos termos do art. 21, XVIII, da Constituição Federal, a União tem competência para planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas, especialmente enchentes e secas. O Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Porto Alegre, por sua vez, possuem atribuições no monitoramento de riscos ambientais, na urbanização segura e na implementação de medidas de contenção e mitigação dos danos.

Então, a ausência de uma política eficaz para prevenir e minimizar os impactos das enchentes levanta a seguinte questão: houve omissão estatal relevante de modo a tornar o poder público civilmente responsável?

A sentença respondeu a essa questão negativamente: como o evento climático não teria decorrido de qualquer omissão estatal e como medidas emergenciais foram adotadas, não seria possível reconhecer a responsabilidade civil dos entes federados.

Mas a questão não é simples: a sentença suscita um debate jurídico relevante e complexo sobre os limites da responsabilidade estatal em desastres naturais e as obrigações do poder público em matéria de prevenção e resposta a catástrofes.

No plano acadêmico, a questão remete a concepções consolidadas na doutrina. Este artigo pretende analisar, de forma crítica, os argumentos da sentença e discutir as tendências contemporâneas do direito administrativo e civil sobre a responsabilidade estatal diante de desastres naturais, considerando tanto o direito brasileiro quanto referências internacionais.

2. O fundamento jurídico da decisão e a exclusão da responsabilidade estatal

A sentença baseou-se na tese de que a magnitude do desastre impediu qualquer atuação preventiva eficaz. O juiz argumentou que o Estado não pode ser responsabilizado por eventos naturais imprevisíveis e que medidas emergenciais foram adotadas, tais como a concessão de auxílios financeiros e programas de realocação temporária.

Além disso, a decisão invocou o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 841.526, segundo o qual a responsabilidade civil do Estado por omissão exige nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano sofrido pela vítima. O magistrado sustentou que, como as proporções das enchentes não eram previsíveis, seria impossível responsabilizar o Estado.

No entanto, a doutrina da responsabilidade civil por omissão administrativa indica que a exclusão da responsabilidade do Estado em desastres naturais não pode ser absoluta. Se o problema do nexo causal é um dos mais difíceis da responsabilidade civil, mesmo nos casos em que há ação do Estado, essa dificuldade se revela ainda maior nos casos de omissão estatal. Como afirmar, com razoável segurança, que o dano está ligado à omissão do Estado? Nesse ponto, como em qualquer outro da responsabilidade civil, as respostas não podem ser apriorísticas e peremptórias, dependem sempre do caso concreto. ENNECCERUS, notável jurista alemão, certa vez desabafou: "A difícil questão de saber até onde vai o nexo causal não se pode resolver nunca, de maneira plenamente satisfatória, mediante regras abstratas, mas em casos de dúvida o juiz há de resolver segundo sua livre convicção, ponderando todas as circunstâncias, segundo lhe faculta o parágrafo 287 da LPC" (lei processual alemã).1

Conceituamos o fortuito (ou força maior) como um fato externo à conduta do agente, de caráter inevitável, a que se atribui a causa necessária ao dano. Partindo da premissa lógica da não imputabilidade do ofensor, inferimos os seus dois atributos: a exterioridade e a inevitabilidade. Exterioridade significa que o dano ocorreu por um fato relevante por si de causar o dano, portanto não imputável ao agente, completamente extraordinário e estranho ao seu comportamento ou atividade a que se associe.  Assim, não haverá de se cogitar de exterioridade quando o fortuito só houver gerado danos em razão de fato pregresso por parte do responsável. Já a inevitabilidade (ou impossibilidade) qualifica o fato imponderável e atual (não eventual ou futuro), que surge de forma avassaladora e cujos efeitos são irresistíveis. Como se infere da própria nomenclatura, não é possível evitar ou impedir as suas consequências danosas. É absolutamente impossível uma atuação distinta capaz de afastar a sua carga.2

O parágrafo único do art. 393 do Código Civil estabelece os dois atributos: "o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".

A previsibilidade de eventos climáticos extremos impõe ao poder público um dever estrutural de planejamento urbano, contenção de danos e resposta rápida. A ausência dessas medidas pode configurar falha grave na prestação do serviço público de defesa civil.3

Uma das principais críticas à decisão aqui analisada reside na interpretação restritiva da responsabilidade objetiva do Estado. A Constituição Federal, no art. 37, §6º, estabelece que o Estado responde objetivamente pelos danos causados a terceiros e a jurisprudência tem reconhecido que, mesmo nos casos de omissão, a responsabilidade estatal pode ser reconhecida quando há dever legal de agir.

Põe-se, então, a questão: por quais omissões o Estado responde? Cremos que existem duas chaves hermenêuticas que podem ajudar o intérprete diante de casos difíceis: i) os conceitos de omissão genérica e omissão específica; e ii) a indagação a ser contextualizada no caso concreto: o Estado tinha o dever de evitar o dano?

Desenvolvamos, ainda que brevemente, essas questões. Em relação ao item "a", não é qualquer omissão que faz surgir para o Estado o dever de indenizar. Diríamos que se trata de uma omissão qualificada ou, mais exatamente, uma omissão juridicamente relevante, que revele ter sido inadequada e injusta a inação do Estado no caso concreto, delimitando-se o nexo causal entre a omissão estatal e o dano.4

Em relação ao item "b", sabemos que são muitas e complexas as questões que envolvem a responsabilidade civil do Estado por omissão. Um questionamento talvez possa servir como fator de iluminação: o Estado tinha o dever de evitar o dano? Deve-se, portanto, verificar se há, no caso concreto, o dever de impedir aquele resultado.5  Devemos verificar, caso a caso, se a omissão estatal é juridicamente relevante. Em outras palavras, convém investigar, em caso de omissão, se o Estado pode ser tido como garantidor do bem jurídico lesado. As sociedades em que vivemos, complexas e plurais, redefinem as funções do Estado e reformulam os seus deveres. Reduzem-se, qualitativamente, os espaços de omissão estatal legítima. O Estado do século XXI não pode se omitir em determinadas áreas; a ele são juridicamente proibidas, hoje, certas omissões que, no passado, talvez se permitissem. Exige-se, portanto, um agir estatal proporcional, eficiente, cuidadoso. Se ele falhar na sua função de garantidor dos direitos fundamentais, no caso concreto, a responsabilidade civil do Estado deverá se impor.

A Lei 12.608/2012 não apenas orienta a atuação estatal, como impõe obrigações concretas aos entes federativos, a exemplo da "atuação articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para redução de desastres e apoio às comunidades atingidas" (art. 4º, I).

O dever de prevenção não se esgota na resposta emergencial ao desastre, mas inclui ações contínuas de planejamento urbano, infraestrutura e sistemas de alerta, tais como: i) mapeamento de áreas de risco e medidas de reassentamento preventivo; ii) construção de diques e barreiras de contenção; iii) sistemas eficientes de drenagem urbana; e iv) monitoramento meteorológico e emissão de alertas antecipados.

Se o Estado falhou na implementação dessas medidas, ele não pode simplesmente alegar força maior para se eximir da responsabilidade. Os programas assistenciais instituídos pelo poder público em razão de desastres naturais não afastam a responsabilidade civil do Estado pela omissão no dever de prevenção e mitigação dos riscos ambientais.

Ao nosso ver, a responsabilidade do Estado por omissão pode se configurar mesmo quando o evento climático seja imprevisível, caso fique demonstrado que medidas preventivas poderiam ter reduzido os danos dele decorrentes. A ausência de infraestrutura adequada para enfrentamento de eventos climáticos severos pode caracterizar a chamada responsabilidade por omissão específica, especialmente quando há dever jurídico preexistente do poder público de proteção e prevenção.6 

No mais, nem sempre o fato concorrente significará uma concorrência causal envolvendo o comportamento da vítima e do agente. Pode ocorrer de a causalidade múltipla envolver uma autoria plural entre o agente e a força maior.  A omissão estatal conjugada à extraordinariedade do evento conduz a uma tragédia que terminaria de outra forma se os dois fatos não se associassem. 

3. O dever de reassentamento e a falha na proteção de populações vulneráveis

Um dos pontos negligenciados pela decisão judicial sob análise foi o dever do poder público de reassentar populações em áreas de risco. A Lei 12.608/2012, que regulamenta a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, estabelece em seu art. 5º, VII, que compete ao poder público promover a identificação e avaliação das ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência.

O Estado e o Município deveriam, portanto, ter adotado medidas estruturais para mitigar os impactos da enchente, incluindo a remoção prévia de moradores de áreas suscetíveis a alagamentos. A omissão nesse aspecto reforça a tese de responsabilidade estatal por falha no dever de urbanização segura.7

A alocação de populações em zonas de risco sem infraestrutura adequada configura uma violação do dever de cuidado estatal, sendo insuficiente alegar que o fenômeno climático foi imprevisível. Ora, justamente pelo caráter preventivo e mitigatório desse tipo de medida, o poder público deveria tomá-la antes do evento e independentemente de sua previsibilidade. Isso revela o caráter simplista e abstrato do argumento segundo o qual a imprevisibilidade das enchentes afastaria toda e qualquer responsabilidade estatal, no caso sob análise. 

4. A responsabilidade solidária entre União, Estado e Município

Outro ponto de controvérsia a respeito da decisão se refere à rejeição do litisconsórcio passivo necessário entre União, Estado e Município. O magistrado argumentou que a autora poderia direcionar seu pedido a qualquer um dos entes federativos, mas essa posição ignora que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil exige a atuação conjunta e coordenada entre os entes públicos.

A responsabilidade por desastres naturais deve ser compartilhada entre as esferas governamentais. Não pode ser fragmentada entre os entes públicos. A resposta estatal deve ser conjunta, e qualquer tentativa de excluir um dos níveis de governo compromete a eficácia da reparação.8

Entendemos, portanto, que há litisconsórcio passivo necessário.

5. Considerações finais

A decisão do Juiz Federal Substituto Bruno Brum Ribas, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, em 20 de fevereiro de 2025, nos autos nº 5031767-22.2024.4.04.7100/RS, abre um precedente restritivo para a responsabilidade do Estado em desastres naturais, ao afastar o dever de indenizar sob o argumento de que o evento era imprevisível.

Porém, à luz da doutrina nacional e internacional, a responsabilidade estatal pode ser configurada mesmo em eventos climáticos extremos, especialmente quando há falha no planejamento urbano, omissão no reassentamento de populações vulneráveis e ausência de medidas eficazes de contenção de danos, até porque essas são medidas que devem ser tomadas antes e independentemente do momento exato em que desastres venham a ocorrer

Uma visão excessivamente permissiva da omissão estatal, embora possível de ser sustentada em tese, pode enfraquecer a proteção jurídica das vítimas de tragédias ambientais e, por via reflexa, abrir margem para novos episódios lastimáveis à população.

______________

1 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLF, Martin. Tratado de derecho civil: derecho de obligaciones.

Traducción de Blas Pérez González e José Alger. Barcelona: Bosch, 1954. t. II, p. 67.

2 "O conceito de ordem objetiva gira sempre em torno da imprevisibilidade ou inevitabilidade, aliado à ausência de culpa. A imprevisibilidade não é elemento especial a destacar: por vezes, o evento é previsível, mas são inevitáveis os danos, porque impossível resistir aos acontecimentos. Um tufão ou ciclone, por exemplo, pode ser previsto com dias de antecedência, mas seus efeitos são, em princípio, inevitáveis; da mesma forma que uma longa estiagem em determinada região; o avançar de um incêndio na mata etc. Nessas situações, nem sempre, apesar de toda tecnologia, os danos podem ser evitados. De qualquer forma, o caso fortuito e a força maior devem partir de fatos estranhos à vontade do devedor ou do interessado. Se há culpa de alguém pelo evento, não ocorre o seccionamento ou rompimento do nexo causal. Desse modo, desaparecido o nexo causal, não há responsabilidade. A ideia é válida tanto na responsabilidade contratual como na aquiliana. Centra-se no fato de que o prejuízo não é causado pelo fato do agente, mas em razão de acontecimentos que escapam a seu poder." (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 25. ed.  Barueri: Atlas, 2025. E-book).

3 "A responsabilização civil do Estado por desastres em casos de omissão tem relação direta com situações em que as autoridades administrativas tinham, ou deveriam ter, o conhecimento de informações acerca de riscos reais que ameaçam uma determinada comunidade, falhando estas autoridades em remediar a situação ou deixando de fazer tudo o que era racionalmente possível e passível de ser esperado do agente público para evitar os danos catastróficos.28 Um motivo de redução ao âmbito de incidência da responsabilidade civil do Estado por omissão nestes casos dirá respeito aos casos de danos decorrentes de atos discricionários, quando o agente público detém uma margem de liberdade para exercer o cumprimento da juridicidade e em razão de seus limites orçamentários.29 Como consequência direta desta compreensão, ter-se-ia a responsabilidade civil do Estado por omissão apenas em casos em que os desastres naturais tenham decorrido do descumprimento de deveres de proteção normativamente expressos.30 Contudo, mesmo atos discricionários que tenham causado ou contribuído para a ocorrência de desastres podem ser objeto de motivação suficiente para a responsabilização civil do ente estatal por omissão.31 Como explicam Michael Faure e Ton Hartlief, onde os entes públicos são cobrados a desenvolver alguma forma de atividade discricionária, não será usual estes serem responsabilizados por decisões tomadas dentro dos parâmetros de discricionariedade, a menos que esta decisão pudesse ser classificada como inteiramente irrazoável nos termos dos princípios de um direito público.32 Contudo, os deveres de proteção não se limitam aos casos de previsão legal expressa, podendo ser ampliado para casos de configuração de contrariedades a regras, tais como princípios e desconformidade a Direito. Portanto, não apenas a violação à norma expressa, mas também a omissão ante a existência de riscos previsíveis para os quais a atuação do poder público era racionalmente exigível, ante o imperativo constitucional de deveres de proteção ambiental, constantes no art. 225, podem justificar a responsabilização do Estado por omissão. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado apresenta uma dupla natureza de direito-dever, numa racionalidade jurídica-constitucional simultaneamente subjetiva e objetiva.33 A primeira dimensão tem relação direta com a face constitutiva de ter direito ao ambiente ecologicamente sadio, por meio de um direito subjetivo público. Já a dimensão objetiva (perspectiva sistêmica e transindividual) consiste na imposição dos deveres de proteção justificada na relevância34 transindividual e comunitária do bem ambiental (impondo limites à dimensão subjetiva, de usufruto dos bens e serviços ambientais). Assim, há conciliação entre o 'direito de todos ao meio ambiente ecologicamente' acompanhada de deveres constitucionais ambientais ('impondo-se ao poder público e à coletividade de defendê-lo e preservá-lo') aos entes públicos e privados. Esta dimensão coletiva, consiste em verdadeira tarefa fundamental do estado, havendo expressamente a imposição de deveres genéricos de proteção ambientais ao Estado.35 Assim, a violação destes § 1.º do art. 225, justificam a imputação de responsabilidade civil pelo seu não cumprimento.36 Para além destes, uma análise lançada sobre a jurisprudência demonstra grande incidência de responsabilizações civis do Estado por omissão em decorrência de desastres 'naturais', cujas consequências poderiam ser evitadas. Assim, a título exemplificativo, a violação de tais deveres pode adquirir a forma de (a) autorizar indevidamente um projeto de loteamento em áreas de risco (pré-disposição da área para alagamentos) antes que fossem adotadas as medidas preventivas necessárias como causa determinante do fato (alagamento da residência da autora);37 (b) ausência de fiscalização estatal da qual decorreu destruição de imóvel por deslizamento de terra;38 (c) deixar de realizar obras de recuperação da área degradada por erosões, as quais estariam causando danos ao meio ambiente e riscos à população;39 (d) violações ao dever de preservar e fiscalizar a preservação do meio ambiente que redundam em dano ambiental coletivo;40 (e) omissão do ente estatal a atender aos inúmeros pedidos de providências para a adoção de medidas no sentido de evitar a ocorrência de acidentes provocados por blocos de pedras que ameaçavam deslizar sobre residências, o que se confirmou.41 A competência constitucional atribuída aos Municípios para 'promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano',42 lança sobre as municipalidades um dever fundamental na gestão dos riscos de desastres, por meio de deveres de agir previstos de forma direta ou indireta na legislação brasileiro. Considerando que muitos desastres ambientais no país ainda estão ligados com a inundações e deslizamentos de terra, a ocupação do solo urbano ocupa um papel de destaque, juntamente com a necessidade de ações de fiscalização pelos entes municipais. Por tal motivo, as decisões judiciais tendem a responsabilizar as municipalidades por danos de dimensões desastrosas. Menor dúvida deve persistir quanto à possibilidade de responsabilização do Estado por omissão bem como, pessoalmente, de seus agentes públicos pela falta de cumprimento de deveres de proteção impostos expressamente na legislação infraconstitucional aplicável a matéria de desastres. Este é o caso dos deveres expressamente impostos pelos art. 8.º, IV, V e VII, da Lei 12.608/201243 e 3-A, § 2.º, I, II, III, IV, V44, §§ 4.º45, 5.º46 e 6.º,47 da Lei 12.340/2010. Também há deveres de agir previstos nos arts. 4.º, I e 5.º, I, da Lei 12.608/2012. Tais deveres expressos tem o condão de limitar de forma significativa a discricionariedade da administração pública em matéria de prevenção a desastres ambientais decorrentes de fenômenos naturais, justificando a responsabilidade civil do ente estatal e dos gestores pelo descumprimento dos deveres de condutas positivas." (CARVALHO, Délton Winter de. Responsabilidade Civil do Estado por Desastres Naturais: Critérios para configuração da omissão estatal face ao não cumprimento de deveres de proteção. Revista de Direito Ambiental, v. 77, p. 137 - 168, Jan - Mar. 2015).

4 "Quanto ao dano indenizável, este pressupõe, primeiramente, que o bem afetado pela conduta lesiva seja protegido juridicamente. Por isso, não são indenizáveis os danos gerados em bens ilícitos dos particulares, como ocorre no caso da expropriação mencionada no art. 243 da CR. Ademais, o dano deve ser certo e aferível, não importando que seja de ordem moral ou co-letiva24. Para a qualificação do dano como indenizável, a doutrina tem utilizado geralmente da pesquisa acerca da ilicitude (ou licitude) do ato do Poder Público25. Naquele caso, porque fora maculado o princípio da legalidade, todos os danos gerados pela conduta do Estado devem ser albergados no dever de indenizar (dever reparatório), de modo a se obter uma justa correspondência com o status quo ante: o dano tem aqui um espectro abrangente, abraçando os danos atuais (materiais, morais e/ou estéticos) e lucros cessantes (considerando-se aquilo que razoavelmente deixou de ganhar; art. 402 do Cód. Civil de 2002).   No segundo caso (ato lícito), são indenizáveis apenas os danos considerados especiais e anormais; mas não um qualquer 'incômodo' ao bem protegido juridicamente. Isso porque o fundamento da responsabilidade do Estado (dever compensatório), neste caso, frise-se, remonta à ideia da distribuição igualitária dos encargos públicos perante os cidadãos. Nesse sentido, o particular prejudicado pelo ato lícito danoso do Estado deve ter sido especial e peculiarmente atingido, pois, caso contrário, terá de suportar o ônus como os demais cidadãos, em condições iguais. A limitação permanente do direito de propriedade de um indivíduo, com a especial restrição de uso ou a imposição de vínculo ambiental (ex.: fechamento definitivo para o trânsito de automóveis; tombamento de imóvel de valor cultural), pode gerar o dever de indenizar; o que não aconteceria em mero incômodo pela construção de rede de saneamento básico. O dever de indenizar não se configuraria igualmente se a imposição fosse genérica." (GOMES, Ana Cláudia Nascimento. Art. 37, §6°. In: CANOTILHO, João Joaquim Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. E-book).

5 Há muito a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal constata, em certos casos, que o Estado responde civilmente pelos danos decorrentes de sua omissão, pois deveria evitar o fato lesivo e não evitou: "O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno" (STF, RE 109.615, rel. Min. Celso de Mello, DJ 2-8-1996).

6 "Responsabilidade civil. Município de Guarujá. Morro da Vila Baiana. Deslizamento de terra que atingiu o imóvel dos autores após fortes chuvas em março/2020. Pretensão dos demandantes à condenação da municipalidade à indenização por danos materiais (R$ 100.000,00) e morais (R$ 90.000,00 para cada um dos sete requerentes, totalizando R$ 630.000,00). Parcial procedência decretada em primeiro grau de jurisdição, estipuladas as indenizações em R$ 30.000,00 pelos danos materiais e em R$ 30.000,00, a todo grupo familiar, pelos danos morais. Insurgência de ambos os polos. Pontual acatamento do apelo da municipalidade, apenas para correção de consectário legal. Omissão estatal configurada. Risco de desastre no local dos fatos previamente conhecido do poder público anos antes, tanto que até mesmo condenado em ação civil pública a retirar os moradores da área, sem que tenha cumprido a obrigação de fazer judicialmente imposta. Ausência, ademais, de tomada de providência destinadas à demolição das construções, mitigação de riscos de desastres etc. Circunstâncias do caso que não permitem afastar a responsabilidade do requerido ou diminuí-la, com reconhecimento de culpa exclusiva das vítimas ou de culpa concorrente, ainda que à luz do volume anormal das chuvas e da ocupação irregular da área. Danos materiais e morais configurados. Precedentes. Quantum indenizatório arbitrado na origem que, observadas suas funções, bem assim a razoabilidade e proporcionalidade, não comporta alteração. Sentença modificada em mínima extensão, apenas para alterar o termo inicial dos juros de mora. Recurso fazendário provido em parte, desprovido o autoral." (TJ-SP - Apelação Cível: 10075028020238260223 Guarujá, Relator.: Jose Eduardo Marcondes Machado, Data de Julgamento: 01/10/2024, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 01/10/2024)

7 "Finalmente, deve-se fazer menção que novas ocupações de áreas de risco devem ser objetos de proibição e fiscalização pelas municipalidades, enquanto que aquelas já existentes devem ser regularizadas mediante a adoção de medidas de redução e controle das vulnerabilidades (infraestrutura verde e cinza; regularizações fundiárias de assentamentos irregulares como zonas especiais de interesse social etc.). Assim, verificada a existência de ocupação pré-existente destas áreas de risco, o município deverá adotar medidas de redução de riscos de desastres, mediante a execução de plano de contingência e de obras de segurança. Para os casos de ocupações de áreas de risco já consolidadas e quando estritamente necessário para a segurança dos moradores, a remoção das edificações e o reassentamento dos ocupantes em local seguro estará condicionada os seguintes procedimentos: realização de vistoria no local e elaboração de laudo técnico que demonstre os riscos da ocupação para a integridade física dos ocupantes ou de terceiros; e notificação da remoção aos ocupantes acompanhada de cópia do laudo técnico e, quando for o caso, de informações sobre as alternativas oferecidas pelo poder público para assegurar seu direito à moradia. Após tal remoção, a municipalidade deverá adotar medidas para impedir novas ocupações da área." (CARVALHO, Délton Winter de. O papel do direito e os instrumentos de governança ambiental para prevenção dos desastres. Revista de Direito Ambiental, v. 75/2014, p. 45 - 74, Jul - Set. 2014).

8 ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIZAÇÃO POR DANO AMBIENTAL. RISCO DE DESLIZAMENTOS EM ENCOSTAS HABITADAS. RECUPERAÇÃO AMBIENTAL DA ÁREA DEGRADADA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. 1. Este Superior Tribunal tem asseverado que, nas demandas que objetivam a reparação e a prevenção de danos ambientais causados por deslizamentos de terra em encostas habitadas, a responsabilidade dos entes federativos é solidária.2. Nada obstante o reconhecimento de que é dever do Município regularizar a ocupação e o uso do solo, observa-se que, na hipótese vertente, restou demonstrado que a condenação imposta pela instância ordinária apresenta, também, o intuito de proteção ambiental e de prevenção de desastres ecológicos, motivo pelo qual há que se reconhecer a possibilidade de condenação solidária do Estado do Rio de Janeiro no cumprimento das obrigações de fazer estabelecidas no acórdão recorrido. 3. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp n. 1.573.564/RJ, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 8/2/2021, DJe de 11/2/2021.)

Nelson Rosenvald

Nelson Rosenvald

Advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Arthur Mendes Lobo

Arthur Mendes Lobo

Doutor em Direito Processual pela PUC-SP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade Carlos III de Madrid. Advogado e Professor de Direito Empresarial e Processual Civil. Membro do IBERC.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca