Balanço Legal
Eliane Y. Abrão*
Nunca se falou tanto em direitos autorais no Brasil como nos últimos cinco, seis anos. Mas a Lei decenal pouco tem a ver com isso. A despeito de serem todas as leis do mundo ocidental, e outras tantas dos países orientais, filhotes da Convenção Internacional de Berna, firmada ainda no século XIX, foi a Organização Mundial do Comércio, o estatuto globalizante, e um de seus anexos, o acordo TRIPs, a grande responsável pela importância dada ao tema, com a elevação das obras protegidas pela propriedade intelectual à categoria dos bens comercialmente relevantes.
A virtualização e a digitalização das comunicações deram a tônica aos direitos autorais. Muito embora a lei se aplique a qualquer mídia, a verdade é que a internet quase faz implodir o que a máquina de imprensa fez surgir. Sendo a fiscalização dos direitos autorais um dos pilares do sistema, a dificuldade de implementá-la no mundo digital levou a crises anunciadas na indústria, principalmente a fonográfica. Enquanto a nova lei proíbe a cópia privada de obra protegida, a mídia digital facilita-a com um simples toque de dedo. Não pegou. Assim como não pegou o desaparecimento do art. 36 da lei anterior que tratava da obra encomendada sob vínculo de emprego ou de prestação de serviços. Ao invés de disciplinar os efeitos na titularidade desse tipo especial de contrato de confecção de obra, o legislador expulsou-o como se fosse possível fazê-lo desaparecer do mundo dos negócios. A verdade é que está mais florescente que nunca. E como face de uma mesma moeda, nunca se pirateou tanto. Na Espanha de hoje, por exemplo, o comércio pirata apresenta o mesmo volume de negócios que o comércio legal, e também integra a lista negra dos EUA (por que, se o comércio de CDs e DVDs piratas tem origem também, se não maior, na produção local?) ao lado de Rússia, Canadá, e outras importantes economias.
O grande saldo desses dez anos, de fato, ficou por conta do que a lei não disse, do que ela não regulou: o interesse público existente nos direitos autorais, o acesso da sociedade ao conhecimento, à informação, à cultura daquilo que a lei considera protegido, isto é, do que se permite o uso público somente após autorização dos titulares. Outras garantias e direitos individuais, aliados às funções do Estado de garantir o acesso de todos aos resultados de pesquisas, saberes e fazeres tiveram visibilidade tão grande quanto os direitos autorais. O abuso dos titulares de direitos na fixação dos preços e na política de distribuição dos bens culturais protegidos por direitos autorais fomentou novas discussões dos parâmetros sobre os quais se assentam a matéria, em relação ao que ninguém se atrevia há anos. No Brasil, merece registro a atuação de um grupo de jovens advogados da FGV do Rio de Janeiro que faz história balançando os alicerces desse direito, ainda que com mais argumentos políticos que jurídicos.
Repercutiu no mundo a adesão de nosso ministro da Cultura, reconhecido músico e poeta, a um sistema de licenças livres, viabilizado pela internet, que funciona como um saudável e barato canal de distribuição de obras intelectuais. Programas de computador de fonte aberta transformaram-se em uma alternativa ao sistema protegido por licenças, abrindo uma oportunidade mais democrática para novos negócios. Como o são os formatos de programa de TV, os quais, como todo e qualquer formato não pode ser objeto de proteção autoral, mas que, ao modo das franquias, revela um novo modelo de negócios.
No varejo das disposições da lei vigente, ainda nos debatemos com alguns dispositivos de péssima presença, como o inacreditável inciso VIII do art. 46, que em sua primeira parte libera o uso público de alguns trechos e obras, e, na segunda, abre oportunidade para fechá-la com tranca. Ou como as discussões em torno da prescrição, sobre a qual a Lei 9.610/98 também resolveu se omitir, por força do veto presidencial de então. Ou com mais dedicação às sociedades de gestão coletiva. Mas como nem tudo está perdido é em meio a esses clarões que se manifesta o Judiciário, principalmente o deste Estado de São Paulo, que tem dado mostras de excelência no assunto. E embora clamem alguns poucos por varas especializadas ("guetos impenetráveis", na expressão de um magistrado relatando antiga e negativa experiência com varas especializadas), turmas especializadas nos Tribunais tendem a ser o caminho natural, funcionando melhor um colegiado em matérias de alta complexidade, como ainda o é a propriedade intelectual, deixando-se ao juízo geral de primeira instancia a coleta das provas.
Muito pode ser feito para melhorar. Mas é exatamente a abertura da matéria a discussões em eventos abertos a esse balanço, com a aproximação de boas e novas cabeças, o fato novo que trará contribuições positivas à sociedade e ao Parlamento, este que está situado abaixo da linha do minimamente aceitável na área.
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*Advogada do escritório Eliane Y. Abrão, Advogados Associados
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