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A síndrome do déspota esclarecido

O parlamentar envolvido em corrupção não tem direito de se candidatar a qualquer cargo eletivo, desde que, é óbvio, já tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. Esta regra, aliás, está incorporada ao sistema jurídico nacional na Lei Complementar 64/90, que veda candidaturas nestas circunstâncias.

17/6/2008


A síndrome do déspota esclarecido

Ricardo Penteado*

O parlamentar envolvido em corrupção não tem direito de se candidatar a qualquer cargo eletivo, desde que, é óbvio, já tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. Esta regra, aliás, está incorporada ao sistema jurídico nacional na Lei Complementar 64/90 (clique aqui), que veda candidaturas nestas circunstâncias.

Difícil é voltar a aceitar que se imponha inelegibilidade ao parlamentar ou cidadão apenas acusado ou sob suspeita de envolvimento em atos abjetos de corrupção, sem ter sido ainda julgado pelo Poder Judiciário. Dessa regra, felizmente, nos livramos com a revogação da Lei Complementar nº. 5, de 1970 (clique aqui), editada sob o regime militar para afastar da política aqueles que eram cautelarmente acusados por quem dominava a polícia e os meios de repressão.

Para quem não tem pesadelos com a lembrança daquela época, convém refrescar a memória: eram inelegíveis os cidadãos meramente denunciados por crime contra a administração pública, ainda que não tivessem sequer apresentado defesa em juízo.

No campo político, como é próprio das ditaduras, a mera acusação equivalia a uma inapelável sentença de condenação.

Impressiona que boa parte da sociedade brasileira se veja tentada a adotar medidas desta natureza, na ilusão de que agora elas seriam produto de um clamor social e não da vontade tirânica de um sistema ditatorial. É assustador, entretanto, que nos vejamos seduzidos a resolver certos problemas pelo "higiênico" linchamento de determinados elementos que, por razões às vezes episódicas, são julgados por paixões e circunstâncias da mídia, sem que sequer tenham tido a oportunidade de apresentar sua defesa perante o Poder Judiciário.

Desde os pecados que justificaram o castigo do dilúvio, passando pelas perversidades que causaram a destruição de Sodoma até chegar na dissoluta política do "mensalão" e nas práticas depravadas dos "sanguessugas", é recorrente o delírio que suplica uma providência suprema que ponha ordem na casa e separe os bons dos maus, em um mundo que é branco e preto.

Mas como todo delírio, este surto recorrente produz muito mais o mal do que o bem, pois além de estimular a irresponsabilidade dos ingênuos, outorga um poder de legitimação duvidosa ao vaticínio dos fuzilamentos morais sumários, uma vez que se tornam irreversíveis depois de consumados.

O equívoco está em considerar que a ditadura seja produto apenas de um tirano. Não é, pois também faz parte dela um sistema jurídico que desrespeita garantias fundamentais como o direito de defesa e a soberania do voto no Estado Democrático de Direito.

A despeito disso, propostas existem no sentido de se negar diplomação a políticos eleitos mesmo ainda não condenados em definitivo, mas contra os quais haveria "provas irrefutáveis de corrupção". Das duas uma, ou a idéia é ingênua, ou é demagógica, visto que só se pode dizer irrefutável a prova discutida no contraditório e na ampla defesa e só pode existir condenação quando decretada por decisão judicial transitada em julgado. Em suma: não se faz justiça sem o devido processo legal e sem decisão definitiva do órgão judicial competente; assim está escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos e também no Pacto de São José da Costa Rica.

De resto, reconhecer elegibilidade ao cidadão meramente suspeito de corrupção não implica necessariamente elegê-lo. Diferente do que certas pessoas pensam, o povo sabe votar e só o eleitor tem direito ao julgamento político e só o eleitor pode sufragar ou rejeitar um candidato. A pena de inelegibilidade, quando mal aplicada, não castiga apenas o político, priva também o eleitor de uma escolha e retira do Estado de Direito aquele predicado que o qualifica como democrático.

Por último, para aqueles que ainda crêem que certos políticos buscam mandatos eletivos para ganhar impunidade, convém lembrar que nosso sistema constitucional evoluiu ao eliminar a indevida imunidade que impedia que o parlamentar fosse julgado sem autorização do Poder Legislativo. Mesmo eleito, o acusado de corrupção pode ser processado e julgado e, se for condenado, perderá o mandato obtido nas urnas – agora sim, por uma decisão civilizada e não como produto de uma recaída autoritária.

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*Artigo publicado em Folha de S. Paulo, em 2006.
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*Advogado do escritório Malheiros, Penteado, Toledo e Almeida Prado - Advogados

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