O governo Federal publicou recentemente o decreto 12.341/24, uma norma programática que regulamenta a lei 13.060/14, responsável por disciplinar o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo pelas forças policiais. Apesar de sua natureza regulamentadora, o decreto gerou resistência de alguns governadores, que alegaram interferência Federal na autonomia dos Estados. Ameaçam protocolar uma ação direta de inconstitucionalidade no STF, sob o argumento de que o decreto fere o pacto federalista brasileiro. No entanto, como norma secundária, ele não pode ser questionado por ação direta. Ainda que assim não fosse, a sua observância é voluntária, funcionando como um "contrato federativo": os Estados que optarem por seguir suas diretrizes garantem acesso a verbas discricionárias Federais dos fundos especiais geridos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O ponto mais sensível do decreto diz respeito às situações em que a arma de fogo não deve ser utilizada. Eis os dois casos estabelecidos no decreto: a) uma pessoa desarmada em fuga, que não represente riscos, e b) um veículo que fure bloqueio, desde que sem representar perigo, não podem ser alvos de disparos letais. Nessas circunstâncias, as forças policiais devem priorizar outras técnicas.
Essas diretrizes estão alinhadas às melhores práticas internacionais. O Código de Conduta das Nações Unidas (1979) afirma que o uso da força pelos agentes de segurança deve ser estritamente necessário e proporcional às obrigações a serem cumpridas. Isso não implica, como argumentam críticos, uma proteção ao crime ou à “bandidagem”. Essa acusação, além de despropositada, empobrece o debate.
A profissionalização das forças policiais exige treinamento robusto, baseado nos princípios da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Na prática, o uso da força deve ser uma resposta técnica, não arbitrária. O policial, agindo em nome do Estado, deve ter habilidades para manejar diferentes técnicas antes de recorrer a medidas extremas, como o uso letal de armas de fogo. Essa abordagem contrasta com a visão simplista de que segurança pública equivale a “guerra”, uma noção que desconsidera o papel central da proteção da vítima em qualquer sociedade democrática.
A militarização das polícias brasileiras contribuiu para a confusão entre segurança pública e defesa nacional, gerando práticas incompatíveis com os objetivos civis de manutenção da ordem. A segurança pública exige estratégias próprias, orientadas por legalidade, proporcionalidade, necessidade, não discriminação e responsabilidade. Policiais bem treinados devem ser capazes de prevenir a escalada da violência e, quando necessário, empregar armas letais dentro de parâmetros técnicos e éticos.
Os PBUFAF - Princípios Básicos para o Uso da Força e de Armas de Fogo, estabelecidos pela ONU, reforçam que armas de fogo só devem ser utilizadas em casos de:
- legítima defesa própria ou de terceiros diante de ameaça iminente de lesão grave ou morte;
- prevenção de crime grave que envolva ameaça à vida;
- prisão de pessoa que represente perigo ou resista à autoridade; e
- quando medidas menos extremas forem insuficientes para atingir tais objetivos.
Esses critérios são indispensáveis para uma polícia técnica, profissional e eficaz. Tragédias envolvendo o uso indevido de armas de fogo pelas forças de segurança, que frequentemente vitimam inocentes, não apenas reforçam a necessidade de padronização, mas também fragilizam a relação entre sociedade e polícia.
O decreto 12.341/24 consolida três eixos principais:
- Observância da legislação pelas forças policiais;
- Controle e fiscalização do uso da força;
- Vinculação ao cumprimento da lei para acesso aos fundos Federais de segurança pública.
Esses princípios derivam de valores constitucionais e tratados internacionais. Argumentar que ferem o federalismo brasileiro é recusar-se a buscar soluções modernas para a violência, insistindo na desgastada fórmula do “tiro, porrada e bomba”.
Quanto ao federalismo, é importante destacar que a legislação penal e processual penal no Brasil já é nacionalizada. Exemplo recente é a lei orgânica nacional das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares (lei 14.751/23), sancionada em 2023, que estabelece diretrizes gerais para essas corporações com base no art. 22, inciso XXI, da CF, que confere à União competência para legislar sobre a organização das polícias ostensivas estaduais.
A história brasileira apresenta outros precedentes de normas Federais para polícias militares, desde a legislação de 1936, sancionada pelo ministro Vicente Ráo, no governo Vargas, até os decretos-lei do regime militar, como o DL 667/69 e o DL 2010/83. Mais recentemente, a lei orgânica das polícias civis (lei 14.735/23) trouxe diretrizes nacionais para as polícias judiciárias regionais, reafirmando a prática de regulamentação Federal.
Em última análise, a resistência ao decreto parece estar mais ligada a disputas políticas do que a aspectos técnicos. Sob o ponto de vista técnico, o decreto representa um avanço, ao reforçar a necessidade de constante aperfeiçoamento das forças policiais e uma maior padronização no uso da força em prol da segurança pública. A construção de soluções eficazes para o problema da violência exige diálogo, cooperação federativa e o abandono de discursos simplistas, em favor de práticas modernas e responsáveis.