Quando Darcy Ribeiro identificou no mameluco o protobrasileiro, o fez porque entendeu que, em nossas raízes, está a falta de identidade; a rejeição por nossos pais ibéricos e por nossas mães indígenas nos deixou órfãos de referências.1 Essa indefinição estrutural costuma engendrar personagens e enredos de lógica tão especial que ficamos com a impressão de que a lógica é não ter lógica.2 O que poderia acontecer quando um herói fabular desses chega à alta Administração Pública?
Nos últimos anos, mesmo os institutos jurídicos foram objeto de perda de referência. Vejam, por exemplo, o foro por prerrogativa de função: enquanto em 2018 o STF estabeleceu um precedente histórico3, com os critérios mais restritivos até então fixados pela Corte4, não chegou a passar um ano para que, com a abertura do Inq 4.781/DF5, o mesmo STF decidisse se tornar um vórtice poderosíssimo, que suga o que quiser e transforma em competência originária.
Em 2024, especialmente, foi a vez da inviolabilidade parlamentar. Truísmos como “liberdade de expressão não é liberdade de agressão” – haja vista seus poderes mágicos de síntese normativa – foram entendidos pelo STF como fundamento jurídico suficiente para decretar medidas cautelares pessoais e patrimoniais contra centenas de pessoas, físicas e jurídicas, desde março de 2019 até hoje, dada a capacidade de geração espontânea de petições e inquéritos pela Corte. Esses truísmos esbarram até no caput do art. 53 da CF/886 e na súmula vinculante 14 do STF.7
A história constitucional do art. 53 nos interessa porque não raro o legislador precisa elevar as tautologias normativas ao paroxismo para conter o revisionismo – e consequente descaracterização – por via judicial. Se o texto original do art. 53 da CF/888 já era suficientemente simples e direto9, foi graças a discursos teóricos de fragmentariedade das normas e à fabricação de antinomias ready-to-use que o Legislativo foi forçado a adicionar as expressões “civil e penalmente” e “quaisquer de” para que a CF/88 seguisse dizendo, nos tribunais, o que já era claro pela palavra “inviolável” – esta, sim, inconveniente aos detratores do instituto. Fatto la legge, trovato lo sbaglio!
A inviolabilidade costuma incomodar porque incentiva as lideranças populares a falar e cobrar; ela é a battuta do inconformismo democrático. Exatamente por isso que, assim como observa a doutrina especializada10, o dossiê de tramitação da PEC que deu origem à EC 35/0111 revela o cuidado no desenho do instituto não como privilégio pessoal do parlamentar, mas como garantia de liberdade política e independência institucional num Brasil já tão surrado por ditaduras. É a liberdade de expressão – por meio de opiniões, palavras e votos – que estabelece a condição do exercício da atividade parlamentar; e, garantindo-se a atividade parlamentar, por sua vez, garante-se a própria viabilidade do Poder Legislativo12.
Nós, os juristas, enchemos a boca sempre que podemos para falar dos parlamentares heroicos que antagonizaram a Ditadura de 1964, como Ulysses Guimarães, Pedro Simon e Chico Pinto. Está canonizado, nos anais do Congresso Nacional13, o discurso que Márcio Moreira Alves proferiu da tribuna da Câmara dos Deputados contra a violência na Universidade de Brasília, contando com invectivas do calibre de “Quando o Exército não será um velhacouto de torturadores?” 14Acusar de torturador alguém ou algum grupo que jamais foi submetido à condenação por sentença judicial transitada em julgado é, em tese, crime de calúnia15 tanto em 1968 quanto em 2024. O CP é o mesmo e permaneceu intocado na descrição típica dos crimes contra a honra. Mas é graças à proteção da inviolabilidade parlamentar – criada para impedir a incidência de norma sancionatória16 – que o uso criminoso de palavras em prol da nossa liberdade pavimentou a redemocratização do Brasil. Nossa história constitucional se orgulha desses criminosos!
Tendo isso em mente, é curioso quando um ministro de Estado vai à Câmara17 e diz que o STF interpretou o art. 53 no sentido de que “a imunidade material e processual dos parlamentares não inclui os crimes contra a honra.” Quando foi isso, precisamente? Invocou-se como fundamento o caso do ex-deputado Daniel Silveira18, mas ficou para escanteio o fato de que ele nunca tratou de crimes contra a honra, e sim de crimes da lei de segurança nacional. Nos debates, elencaram um precedente sugestivo19, que invertia o rumo da exposição. Na confecção da contrarresposta, outro problema: não se esclarecia o precedente mencionado, mas retornava-se ao voto do caso Silveira – que, de novo, não envolvia crime contra a honra.
Atabalhoamento em debates orais é compreensível; ocorre todos os dias, em todas as esferas. O perigo aparece quando vemos fundamento jurídico onde não existe. O trecho lido na comissão, em casos que de fato versaram sobre crimes contra a honra20, foi evidentemente escrito em obiter dictum. Justamente por isso, nunca foi submetido à deliberação colegiada da Corte e, portanto, jamais integrou a jurisprudência do STF – seja vasta, seja estreita. Plantar obiter dictum para tentar colher ratio decidendi é uma técnica silenciosa de se violar a ordem jurídica e promover a confusão do direito; nesse caso, é a tentativa de fabricação de uma jurisprudência que não existe.21
A empáfia sempre nos pega de calças curtas. Cortar a cabeça da boiuna não salva Macunaíma de ser perseguido por ela.22 Daí uma pesquisa na jurisprudência do STF descortinar que quinze anos de decisões monocráticas jamais atentaram contra a inviolabilidade parlamentar23, apesar de ocasionais proselitismos em decisões colegiadas. A jurisprudência rastreável vai no mesmo sentido24, chegando até a fixar que a “imunidade é absoluta quanto às manifestações proferidas no interior da respectiva casa legislativa.” 25 Portanto, o que mudou? Quando foi que a inviolabilidade parlamentar ficou órfã?
As respostas são simples: nada e nunca. Apesar de alguns precedentes no mínimo discutíveis, a jurisprudência do STF, ainda hoje, é sólida na preservação da inviolabilidade parlamentar. Até porque a imunidade material é prerrogativa diretamente protegida pela cláusula pétrea institucional da separação de poderes26, prevista no art. 60, § 4º, inciso III, da CF/88.27 Se nem emendas constitucionais poderão negar vigência ao art. 53, como aconteceu na Câmara, certamente não será uma jurisprudência vazia de julgados que poderá.
Em reação, no dia 11/12/24, um grupo de deputados recolheu 187 assinaturas para protocolar a PEC 48/2428, a qual, na prática, não adiciona ao caput do art. 53 absolutamente nada que o STF já não tenha reconhecido. O avanço está na estratégia de “defesa ofensiva” do novo § 9º, que cria uma hipótese específica de impeachment de ministro do STF, se atentar contra a inviolabilidade parlamentar.
Certamente haverá quem pense que a PEC é uma excrescência. Será mesmo? Talvez um pulso firme do Congresso reposicione as instituições em seus devidos lugares e ressuscite a separação de poderes no Estado brasileiro, que até hoje respira por aparelhos. De volta aos tempos em que a liberdade de expressão depende mais de coragem individual que de instituições, pode ser que a reação do Poder Legislativo seja a última chance desta elegia que escrevemos não se transformar em nênia.
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1 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 4. ed. São Paulo: Global Editora, 2022, pp. 81-86.
2 CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, pp. 62-74.
3 AP nº 937 QO/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 11.12.2018.
4 MARCHIONATTI, Daniel. Processo penal contra autoridades. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 3-36.
5 O chamado “inquérito das fake news” foi instaurado de ofício pelo então Presidente do STF, Min. Dias Toffoli, em 14.3.2019.
6 Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
7 Súmula Vinculante nº 14/STF. É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
8 Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html >
9 Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.
10 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Inviolabilidade parlamentar. São Paulo: Quartier Latin, 2020, pp. 51-62.
11 Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14848 >
12 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 24. ed. rev. atual. 5. tir. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 131.
13 Ver: < https://www.camara.leg.br/tv/191631-discurso-historico-do-deputado-marcio-moreira-alves-completa-40-anos/ >
14 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, pp. 316-317.
15 Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
16 Sobre isso: “A única inviolabilidade é aquela do caput do art. 53 da Constituição Federal, o qual prevê que os parlamentares federais são ‘invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos’. Tal dispositivo impede a incidência dos tipos penais de calúnia, difamação e injúria nas circunstâncias dadas. Se, em um voto, o parlamentar imputa a alguém falsamente fato definido como crime, fato ofensivo à reputação e ofende a dignidade do atingido, não terá cometido os crimes dos arts. 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria) do CP.” In: MARCHIONATTI, op. cit., p. 6. No mesmo sentido: “Opiniões e palavras que, ditas por qualquer pessoa, podem caracterizar atitude delituosa, mas que assim não se configuram quando pronunciados por parlamentar.” In: TEMER, op. cit., p. 131. E finalmente: “Esta é a imunidade material, instituto que exclui a ilicitude decorrente dos votos, opiniões ou palavras proferidas pelos parlamentares. Assim, independentemente do conteúdo dos votos, palavras ou opiniões exaradas por congressista, oralmente ou por escrito, dentro ou fora do recinto da Casa legislativa, no exercício do mandato ou em sua função, gozará o parlamentar de imunidade, que exclui o crime ou a ilicitude do ato.” Trecho de: STRECK, Lenio Luiz [et. al.]. Art. 53. In: MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.] (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. 3. ed. rev. atual. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 1128.
17 “Ministro da Justiça presta esclarecimentos sobre temas da segurança pública – 03/12/2024”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=WU7MBCs7Twg&t=9486s >
18 AP nº 1.044/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 23.6.2022.
19 Pet nº 6.587/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 18.8.2017.
20 Pet nº 8.831/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 16.10.2020.
21 MITIDIERO, Daniel. Obiter dictum: quando uma decisão não decide? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, pp. 67-79.
22 ANDRADRE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Antofágica, 2022, pp. 54-67.
23 Pet nº 4.057/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 10.8.2007; RE nº 591.423/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 20.11.2008; ARE nº 1.053.211/AP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 19.6.2017; RE nº 1.007.756/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 8.8.2019; Pet nº 8.831/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 16.10.2020; Pet nº 9.558/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 19.10.2021; ARE nº 1.325.295, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 15.12.2021.
24 RE nº 577.785 AgR/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ 21.2.2011; ARE nº 964.815 AgR/MS, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 28.6.2016; RE nº 1.283.533 AgR/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 3.12.2021; RE nº 606451 AgR-segundo/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 15.4.2011; RE nº 443.953 ED/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 30.6.2017; Inq nº 2.874 AgR/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 1.2.2013; Pet nº 7.634 AgR/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 16.10.2019; Pet nº 9.128 AgR/DF, Rel. Min. Nunes Marques, Tribunal Pleno, DJe 14.6.2024; ARE nº 1.421.633 AgR/SC, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe 9.5.2023; Inq nº 2.282/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do acórdão Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 24.11.2006; AI nº 350.280 AgR/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 31.3.2011.
25 Pet nº 6.156/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 28.9.2016.
26 KLANOVICZ, Jorge Mauricio. Cláusulas pétreas institucionais: uma proposta teórica sobre poder de reforma constitucional, direitos fundamentais e instituições. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022, pp. 162-163.
27 § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III - a separação dos Poderes; (...).
28 Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2478427 >