Migalhas de Peso

Reforma tributária e federalismo fiscal

Com a regulamentação do PLP 68/24, já é possível traçar um cenário em relação aos efeitos da reforma tributária no federalismo fiscal brasileiro.

19/12/2024

reforma tributária, Federalismo Fiscal e o Comitê Gestor do IBS: entendendo as mudanças no sistema tributário nacional

As análises apresentadas neste artigo tiveram como principais referências o PL complementar 68 (PLP 68/2024), o PL complementar 108 (PLP 108/ 24), a Exposição de Motivos 61/24 MF, de 4/6/24 (EM 61/24) e estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada – IPEA (Carta de Conjuntura 60/23).

Faltando poucos dias para o encerramento do exercício financeiro de 2024, o Governo Federal utilizou todo o seu capital político para aprovar a regulamentação do texto da EC 132/23, consolidada nessa fase no PLP 68/24. Representou tarefa hercúlea, na medida em que o projeto possuía em seu texto original mais de 500 artigos. Deverá ficar para o próximo exercício as regras para o funcionamento do comitê gestor do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS (CG-IBS).

Logicamente a aprovação da Reforma teve de ser negociada com o Congresso, importando na aceleração da liberação de emendas parlamentares, além de alguns acenos para Estados e Municípios como a criação de fundos de compensação e refinanciamentos de dívidas com a União (que fere cláusula pétrea da Lei de Responsabilidade Fiscal), além do fortalecimento da Zona Franca de Manaus.

Durante o processo de discussão da Reforma, foram apresentadas duas propostas visando aperfeiçoar e modernizar o sistema tributário nacional. De fato, existiam (e ainda existem) muitas imperfeições no modelo vigente que devem ser enfrentadas, como por exemplo:

Já as soluções apresentadas, visando a modernização do sistema, incluíam a criação do IVA - Imposto Sobre Valor Agregado, com mais transparência e facilidade de tributação e que vem sendo utilizado por mais de 170 países, dos 193 reconhecidos pela ONU. Outra vantagem do IVA é a sua base ampla de incidência, alcançando todas as operações com bens, tangíveis e intangíveis, e serviços. A tributação do IVA ocorre no destino, demandando uma legislação uniforme, com regras harmônicas aplicáveis em todo o território nacional.

A PEC 45/19 (juntamente da PEC 110/19), discutida nas duas Casas do Congresso Nacional, apresentava uma proposta robusta e ousada, modificando significativamente o sistema federativo fiscal, a partir de um amplo projeto de redistribuição de renda no Brasil, apesar de ainda nessa fase, a Reforma tratar apenas de impostos sobre consumo. Podemos citar como exemplo da busca por uma redistribuição de renda em nível nacional o sistema cashback, uma cesta básica com alíquotas reduzidas, regimes tributários diferenciados, além da criação de um imposto seletivo. O art. 129 do PLP 108/24 e o parágrafo 99 da EM 61/2024, também destacam a ideia de uma ampla redistribuição de renda nacional, entre outras medidas, por meio da realocação das receitas próprias dos Estados e Municípios.

Já a PEC 46/22 trazia em seu conteúdo uma proposta que visava identificar os principais entraves encontrados no ICMS estadual e no ISS municipal. Tratava-se, portanto, de uma proposta “enxuta”, onde os principais problemas do sistema tributário subnacional, como os impostos em cascata, o excesso de normativos e a guerra fiscal deveriam ser atacados. Nesse caso a solução não estaria em misturar competências tributárias, e sim em resolver os problemas de cada tributo.

A proposta da PEC 45/2019 sagrou-se vencedora, conforme a vontade dos seus elaboradores, com apoio do Governo Central. Como características mais importantes do projeto estavam:

A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), conforme apresentado no projeto da Reforma (agora aprovada e regulamentada) é um dos impostos que compõem o IVA, com a finalidade de substituir as contribuições de PIS, Cofins e o IPI, que atualmente possuem legislações próprias, com alíquotas especificas, além de outras obrigações tributárias e regras que variam conforme o tipo de operação e regime de tributação de cada empresa. O Pis, a Cofins e o IPI incidem principalmente sobre as operações de consumo de bens e serviços e após serem unificados em CBS, essas operações passarão a ser tributadas com base em uma única legislação, alíquota e regras em todo o Brasil. Ou seja, nesse aspecto a Reforma não traz grandes alterações formais para os impostos federais, nem sacrifícios operacionais para o Governo Central.

O CBS e o IBS passarão a ser implementados a partir de 2026, quando as empresas deverão emitir na nota fiscal um valor destacado que corresponderá a 0,9% de CBS sobre o produto vendido e 0,1% de IBS. A etapa de transição será encerrada em 2033, sendo que o Pis, a Cofins e o IPI deixarão de existir a partir de 2027 (quando entrará em vigor a CBS) e o ICMS e ISS serão extintos em 2033, dando lugar ao IBS. Em 2027 também entra em vigor o Imposto Seletivo. Nesse caso haverá uma alíquota maior de imposto sobre produtos como bebidas açucaradas, veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bens minerais, inclusive o carvão mineral e concursos de prognósticos.

O Governo Federal apresentou vários estudos tentando mostrar as vantagens do novo sistema tributário, incluindo a expectativa de uma carga global (CBS + IBS) que não ultrapassaria 26,5%. Paralelo aos trabalhos desenvolvidos pela equipe encarregada de promover a divulgação sobre os resultados esperados da Reforma, estudo do IPEA de 2023 (disponível em https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2023/08/impactos-redistributivos-da-reforma-tributaria-estimativas-atualizadas/) indicava que ao menos 8 Estados da Federação e 1030 Municípios poderiam perder receitas com a entrada em vigor do novo modelo tributário, em um montante aproximado de R$ 54 bilhões, que seria redistribuído para outros entes subnacionais. Dessa forma, o efeito redistributivo total seria da ordem de 7% do PIB, favorecendo as Unidades Federativas que concentram 70% da população brasileira. Como conclusão, o estudo do IPEA afirma que:

Em termos quantitativos, as simulações indicam que pelo menos 60% dos estados e 82% dos municípios ganham com a reforma, percentuais estes que se ampliam quando considerados os impactos positivos sobre o PIB e, indiretamente, sobre o bolo de receitas tributárias.

Já as perdas estimadas das receitas de 40% dos Estados e 18% dos Municípios, de acordo com o estudo, poderão ser compensadas, na medida em que a Reforma venha estimular a economia nacional (aumento no consumo). Além disso, a transferência de receitas de Estados e Municípios com maior concentração de renda para entes subnacionais mais pobres deverá impactar positivamente o índice de Gini. Assim, a economia política deverá definir se o que mais pesa na avaliação desse critério de rateio da cota-parte é o aumento do número de perdedores ou o aumento da proporção da população beneficiada (IPEA, 2023).

Outra questão que se apresenta para os governos estaduais e municipais com a Reforma é a perda da governança sobre seus impostos mais importantes: o ICMS nos Estados e o ISS nos Municípios, impostos esses que deixarão de existir a partir de 2033. Apesar dessa realidade, e dos estudos indicando perdas financeiras para alguns entes da federação, foram poucas as manifestações contrárias ao novo modelo de federalismo fiscal.

Os governos subnacionais estão assinando, de fato, um grande pacto político e social, diante de uma atuação republicana e pautada pelo interesse público, conforme descrito no parágrafo 9º da Exposição de Motivos 61/2024 MF. Ainda de acordo com o estudo do IPEA, as perdas de receitas não irão ocorrer no curto prazo, podendo ser compensadas e amenizadas em cenários onde o produto interno deverá crescer, considerando ainda fatores como a queda na sonegação fiscal, a partir dos novos sistemas de controle e gestão dos tributos, além do split payment.

Essa interação harmoniosa que deverá ocorrer entre Estados e Municípios, tendo em vista tratar-se de uma gestão compartilhada de receitas, é fenômeno único em nosso país, considerando que tentativas semelhantes no passado não lograram êxito. Podemos citar como exemplo, a criação do Conselho de Gestão Fiscal previsto na LC 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), órgão que ainda está em fase de implementação, tendo em vista a falta de acordo em relação a sua composição: o Conselho de Gestão deverá ser formado por representantes de todos os Poderes e esferas de Governos. Já a Confederação Nacional dos Municípios – CNM, em sua cartilha “reforma tributária do consumo e seus impactos” também destaca as divergências nas relações federativas entre Estados e Municípios no Brasil, quando afirma que:

O repasse realizado diretamente pelo CG-IBS aos Municípios irá corrigir casos de apropriação indevida ou atrasos nos repasses, como ocorreu em alguns momentos no passado e causou enormes prejuízos aos conjuntos de Municípios de alguns Estados que tiveram suas receitas retidas inadequadamente.

O Governo Federal acena ainda com a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional e de um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, que na prática representarão a transferência de um volume importante de recursos para Estados e Municípios, o que poderá amenizar algumas perdas financeiras que venham a ocorrer.

Ainda em relação às mudanças que ocorrerão no Federalismo Fiscal, visando gerir os principais impostos estaduais e municipais, agora unificados em um único Imposto sobre Bens e Serviços, a Reforma propõe a criação de um Comitê Gestor do IBS (CG-IBS) que terá, entre outras atividades:

Trata-se, portanto, de um órgão com superpoderes e com uma estrutura complexa (como a de um Ministério Federal), conforme se verifica nas propostas de regulamentação do Comitê (PLP 108/2024). Deverá ser ainda uma instituição capaz de harmonizar os interesses de 5570 prefeituras (IBGE, 2024) e 27 governos estaduais (incluindo o GDF), a partir da gestão de um volume importante de receitas públicas. Não é exagero afirmar que, no campo federativo, o Presidente do Comitê Gestor deverá acumular mais poderes (e responsabilidades) que o Ministro da Fazenda.

O grande desafio a ser enfrentado pela reforma tributária será, de fato, o resultado da atuação do Comitê Gestor do IBS. Não é simples fazer com que todas as prefeituras e todos os Estados brasileiros andem de mãos dadas, na perspectiva de um amplo pacto federativo, nunca antes observado em nosso país ou em nível mundial, conforme descrito no parágrafo 9º da EM 61/24.

O sistema federativo possui características próprias que envolvem desde o modelo produtivo local até a cultura regional. As 5570 prefeituras serão representadas por 27 profissionais que, na prática, serão os responsáveis pela redistribuição das receitas municipais por todo o país. Atualmente, cada prefeitura possui junto às suas secretarias de finanças um departamento que trata desse tema tão sensível aos cofres públicos em nível local.

Já a questão que envolve o contencioso tributário de impostos unificados demandará uma nova forma de atuação do sistema fiscalizatório e dos órgãos de controle interno e externos.

Outro tema a ser analisado refere-se ao mandato do Presidente do Comitê Gestor e de sua diretoria, em um período de 2 anos. E aqui há uma clara tentativa de se manter uma representatividade rotativa (e um agrado político) no que se refere ao comando do Comitê. Do ponto de vista operacional, essa rotatividade é preocupante, considerando ainda que a Corte de Contas que fiscalizará o Comitê, de acordo com a proposta atual, será aquela do Estado do Presidente eleito. Ou seja, também os Tribunais de Contas terão um prazo exíguo para uma fiscalização que, dependendo da situação (tomada de contas especial por exemplo) poderá se estender por vários exercícios financeiros, envolvendo várias gestões e vários Tribunais.

O período de 2 anos de mandato, em nosso sentir, poderá comprometer a eficiência na gestão do Comitê Gestor. São tarefas muito complexas a serem desenvolvidas e que, de acordo com a proposta, deverão ser realizadas por equipes técnicas cedidas pelos governos estaduais e municipais.

Apesar de tratar-se de técnicos qualificados e especializados, o prazo de 2 anos é muito curto para o julgamento de contenciosos e o atendimento de demandas estaduais e municipais (do início ao fim), que deverão ser permanentes. Talvez 2 anos seja o tempo necessário para a nova gestão “tomar pé da situação”.

Cumpre ainda ressaltar que o parágrafo 23 da EM 61/24 assevera que a reforma tributária provavelmente demandará mudanças no Direito material tributário, sobretudo no tocante aos processos relacionados à execução fiscal do IBS e às demais espécies de ações que tenham este tributo como o seu objeto de discussão. Tal quadro requer uma reavaliação das normas processuais de regência do contencioso judicial em sede de IBS, de sorte a conformá-las à nova realidade trazida pela Reforma, o que pode envolver, inclusive, eventual reorganização judiciária.

Nesse caso, e considerando a importância do Comitê Gestor para o sucesso da reforma tributária, uma alternativa a ser considerada é a criação de uma carreira específica, um quadro próprio com atividades e qualificações que permitam o desenvolvimento dos trabalhos de forma contínua e ininterrupta. Também a independência funcional do Comitê deverá ser assegurada, evitando-se interferências políticas desnecessárias. Dessa forma, somente o Presidente e os Vice-Presidentes seriam representantes eleitos, para um período mínimo de 4 anos. Já os diretores poderão ser escolhidos e nomeados entre os servidores de carreira do Comitê Gestor, mediante processo seletivo interno e meritocrático.

Apresentamos essas análises e opiniões visando aprimorar o debate sobre os efeitos esperados da reforma tributária e esclarecer em relação às prováveis mudanças que deverão ocorrer no sistema tributário nacional nos governos estaduais e municipais, principalmente. O sistema federativo, na forma como o conhecemos na atualidade, deverá passar por mudanças estruturais profundas, assim como a gestão das finanças públicas em nível estadual e municipal. O período de transição deverá importar em custos adicionais (adaptação de sistemas, treinamentos de pessoal) para que Estados e Municípios, além do Governo Federal.

O Poder Executivo Federal reconhece que a redução de alíquotas de vários produtos da cesta básica, além dos regimes diferenciados, poderá diminuir as receitas federais e dos demais entes federativos, o que demandará aumento da alíquota do IVA dual que, de acordo com estudos recentes poderá ultrapassar 28%, tornando-se a maior do mundo.

Recursos destinados à educação e à saúde pública estão diretamente vinculados ao volume de receitas, na forma de percentuais fixos. Se as receitas públicas forem reduzidas, a manutenção dos mesmos valores destinados a setores meritórios, deverá ser compensada com aumento dos percentuais.

Nesse sentido o sucesso da Reforma está diretamente relacionado ao desempenho do Comitê Gestor e do pacto federativo que Estados e Municípios estarão dispostos a cumprir nos próximos anos (abrindo mão da governança que possuíam sobre o ICMS e o ISS), além da manutenção da alíquota do IVA dual sob controle (não ultrapassando 26,5%). Já a transferência de renda entre as diversas regiões do país não poderá representar desestímulo à eficiência e a produtividade, conquistadas em anos de aperfeiçoamento econômico em diversos Estados e Municípios que se industrializaram, gerando emprego e renda, e se tornaram grandes exportadores dos produtos nacionais.

Edson Ronaldo Nascimento
Economista, Especialista em Administração Financeira e Mestre em Administração Pública. Consultor de Finanças Públicas: ERN Consultoria e Treinamentos S.A

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Discriminação nos planos de saúde: A recusa abusiva de adesão de pessoas com TEA

19/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024