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Por que grandes operações, por vezes, são anuladas? Uma análise jurídica a respeito do caso criminal "Banco Santos"

STF anula sentença do caso Banco Santos por 4x1, reconhecendo nulidade absoluta e reforçando garantias de ampla defesa e contraditório.

18/12/2024

No dia de hoje, foi publicado o acórdão do julgamento proferido nos autos do ARE 1.321.139/SP, no qual a 2ª turma do STF, por 4 votos a 1, anulou sentença proferida pelo Juízo Federal da 6ª vara Criminal da seção judiciária de São Paulo que havia condenado Márcia de Maria Costa Cid Ferreira, mulher do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, fundador do Banco Santos; o contador Ruy Ramazini; e o executivo italiano Renello Parrini.

Os três haviam sido condenados a cinco anos e quatro meses de prisão pelo delito de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613 de 1998). A ação penal é conexa à ação penal instaurada contra Edemar Cid e outros executivos do Banco Santos, na qual houve, alguns anos atrás, a anulação da sentença pelo TRF-3.

O desfecho do julgamento foi digno de uma reviravolta aos 45 do segundo tempo de uma final de futebol disputada. A análise no Supremo dos recursos de agravo regimental – contra decisão monocrática que havia negado seguimento ao recurso extraordinário com agravo – teve início em sessão virtual, em dezembro de 2023. Naquela ocasião, o ministro Fachin, relator do processo, proferiu voto negando provimento aos agravos regimentais.

Após os demais ministros (Dias Toffoli e André Mendonça) terem lançado seus votos no sistema, acompanhando o entendimento do ministro Fachin e garantindo, assim, a maioria, o ministro Gilmar Mendes pediu vista.

Na retomada do julgamento, menos de 1 ano depois, em outubro de 2024, desta vez no ambiente presencial, o ministro Gilmar trouxe voto divergente para conceder a ordem de habeas corpus de ofício e estender os efeitos do acórdão proferido pelo TRF-3, que reconhecia a existência de nulidade absoluta, à ação penal "dependente" (no qual Márcia Cid e outros foram condenados), a fim de determinar o retorno dos autos à origem para proferimento de nova sentença.

Durante amplo e complexo debate jurídico em uma sessão de julgamento inteiramente dedicada ao caso, os ministros Toffoli e André Mendonça mudaram seus votos, para se alinhar à corrente defendida por Gilmar. Por fim, o ministro Nunes Marques, único que não havia proferido voto na sessão virtual, também acompanhou a divergência aberta, vencido, portanto, o ministro Edson Fachin, até então vencedor da tese no ambiente virtual.

Para melhor compreensão da tese de nulidade vencedora, importa explicar brevemente a tramitação dos dois processos criminais.

Ao término das investigações da Polícia Federal sobre o rumoroso "Caso Banco Santos", em que se averiguava o cometimento de crimes financeiros, o Ministério Público Federal ajuizou duas ações penais, uma primeira, no ano de 2004, em relação ao banqueiro Edemar Cid e outros executivos do Banco Santos (processo n. 2004.61.81.008954-9) e outra oferecida posteriormente, em 2006, (processo n. 2006.61.81.005514-7) contra Márcia Cid e dois corréus. 

Enquanto o primeiro processo apurava a ocorrência de gestão fraudulenta e de outros crimes financeiros no âmbito do Banco Santos S.A., o segundo buscava identificar a utilização de empresas de fachada para ocultação de bens e valores provenientes dessa mesma gestão fraudulenta. 

Com numerações distintas, as ações tiveram trâmites processuais separados desde a instrução na primeira instância até todas as instâncias recursais.

Porém, em uma situação jurídica bastante sui generis, ambas as ações penais foram sentenciadas conjuntamente, em uma mesma decisão proferida, em dezembro de 2006, pelo Magistrado Fausto De Sanctis, hoje Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP). Na sentença una, o Magistrado denominou a ação penal contra Edemar e outros de "autos principais" e a ação penal contra sua esposa Márcia e outros (tidos como "laranjas") de "autos dependentes".

Na extensa sentença condenatória – de mais de 600 (seiscentas) laudas –, De Sanctis justificou que a separação dos processos havia se dado por uma mera questão de conveniência: "tendo em vista o fato dos autos principais encontrarem-se em fase adiantada de instrução, muito embora estivesse presente um elo entre os fatos e os fundamentos jurídicos da pretensão persecutória dos feitos suficientemente capaz de ensejar um aditamento à denúncia".

Ou seja, embora reconhecida a evidente conexão probatória dos feitos, de forma ambígua, o Magistrado justificou que o trâmite em separado seria necessário para garantir a eficiência do processo criminal que contava com a instrução adiantada. Essa justificativa cai por terra quando lembramos que a sentença dos dois processos foi proferida conjuntamente. Ora, se a instrução processual da ação penal iniciada em 2004 estava mais adiantada, por que, ao final, ambas as ações penais foram sentenciadas na mesma oportunidade (em dezembro de 2006)?  

Enquanto isso, em 2015, o Tribunal Regional Federal da 3ª região1, por maioria, decidiu anular os interrogatórios realizados na ação penal “principal”, em razão do indeferimento de reperguntas no interrogatório de Edemar Cid pelos advogados dos corréus, tratando-se de nulidade absoluta. Por outro lado, nos autos “dependentes”, o recebimento da denúncia aconteceu após a realização dos interrogatórios na ação penal “principal”.

No julgamento, o ministro Fachin, relator, defendeu a manutenção da condenação dos réus dos autos “dependentes”, pois a instrução penal (e a fase dos interrogatórios) dos processos foi feita a tempo e modo distintos e a nulidade reconhecida na ação penal “principal” não havia sido alegada no âmbito da ação penal “dependente”.

Entretanto, o entendimento jurídico esposado pelo ministro Gilmar Mendes levou ao convencimento dos seus pares, no sentido de que a decisão proferida pelo TRF3 – para anular as sentenças do processo principal – deveria alcançar as condenações do processo dependente, tendo em vista que o Juiz se valeu “indistintamente do acervo probatório produzido em ambas as ações para concluir pela condenação dos corréus em ambos os processos.”

Em trecho da audiência de instrução dos autos “dependentes”, o Magistrado chegou a afirmar, após indagação de advogada da parte que questionava a realização de perguntas referenciando os autos “principais” (ao qual ela não tinha acesso naquela ocasião) que “os processos, na verdade, são um só. Só estão em dois”.

Para o ministro Gilmar, o Magistrado Sentenciante violou o direito à ampla defesa dos corréus, ao negar-lhes o direito de formular reperguntas durante os interrogatórios da audiência do processo “principal”. Por consequência, a nulidade absoluta também deveria ser estendida às condenações proferidas nos autos “dependentes”.

No julgamento, o ministro André Mendonça, embora tenha acompanhado a divergência trazida pelo ministro Gilmar, quis registrar que a anulação de processos criminais lhe causava “profunda tristeza”.

Não há dúvidas de que a anulação de grandes operações criminais causa uma sensação de impunidade para todos que leem os jornais. Porém, é preciso analisar por que operações e processos criminais “rumorosos” são, por vezes, anulados ou revisitados pelas instâncias superiores.

O que se viu na condução das ações penais do caso “Banco Santos” traz lições importantes sobre o processo penal brasileiro. Vimos que a utilização de inovações “perigosas” de regras e procedimentos legais por magistrados em busca de supostas eficiência e celeridade traz consequências profundas.

Não custa lembrar o ensinamento do doutrinador Luigi Ferrajoli2 de que o Estado de Direito pressupõe o respeito às suas regras e princípios, os quais não podem ser desconsideradas quando for cômodo. Ou seja, regras e princípios devem ser cumpridos, para que operações e seus desdobramentos sejam considerados legítimos. Nenhuma operação fica de pé por muito tempo se não há a observância dos princípios basilares do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

A jornalista Josette Goulart, ao traçar o perfil do Magistrado Fausto De Sanctis para a Revista Piauí, no ano de 20183, afirmara o seguinte: “muito antes da Lava Jato e da Operação Calicute, de Sérgio Moro e Marcelo Bretas, houve a Castelo de Areia, a Satiagraha e o juiz Fausto De Sanctis. Os resultados não poderiam ser mais distintos: as mais recentes condenaram e prenderam ex-presidente e ex-governador, entre dezenas de poderosos – e seus juízes viraram figuras populares. Já a Castelo de Areia e a Satiagraha, deflagradas em 2008 e 2009, foram anuladas, as provas jogadas no lixo, e o juiz responsável, colocado de escanteio”. 

Na ocasião, o juiz deu entrevista sobre o caso Banco Santos S.A., defendendo que a nulidade processual que anulou a condenação do famoso ex-banqueiro Edemar não se tratou de um erro na sua carreira, pois o próprio Edemar teria dado causa à nulidade, ao solicitar em seu interrogatório que os advogados dos corréus não lhe fizessem perguntas. Em suas palavras: “Há um princípio no direito: quem ‘daria’ causa à nulidade não pode se valer desta. Isso foi ignorado”.

Quando a entrevista foi realizada, em 2018, Sérgio Moro e Marcelo Bretas ainda experimentavam o “auge da fama” das carreiras de “magistrado celebridade” e as suas rumorosas operações eram celebradas pela imprensa e sociedade brasileiras. À época, De Sanctis acompanhava “a Lava Jato com preocupação, para que não tome a partir daqui um rumo parecido com o da Castelo de Areia – cujas principais provas foram descartadas”.

Anos depois, o tempo se mostrou, mais uma vez, o senhor da razão. Assim como nas operações rumorosas capitaneadas por De Sanctis, Moro e Bretas também tiveram suas operações anuladas, em parte ou no todo, pelo Supremo Tribunal Federal. Voltamos à pergunta deste artigo: Por que grandes operações acabam, infelizmente, sendo anuladas?

No caso do Banco Santos, o Supremo Tribunal Federal, ao anular a sentença para os réus dos autos “dependentes”, corrigiu distorções processuais graves que levaram a condenações injustas, pois não houve a observância da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, garantias constitucionais fundamentais.

Objetivamente, a sequência de atos processuais “excepcionais” – separação instrutória de processos que tiveram uma única sentença; indeferimento de reperguntas para os advogados de corréus no interrogatório – causou, no final das contas, a impossibilidade de manutenção de todas as condenações proferidas. 

O enredo processual inusitado do caso Banco Santos, que culminou no reconhecimento da nulidade absoluta pelo Supremo, não poderia ter tido outro desfecho. Quando olhamos em retrospecto para as operações Castelo de Areia, a Satiagraha, Lava Jato e para as anulações que se seguiram com o passar dos anos, fica claro que o desrespeito às garantias constitucionais do acusado e às normas processuais penais traz como efeito indesejado a anulação de provas, de interrogatórios, de operações inteiras.

É certo, portanto, que a utilização de “soluções inéditas” e “excepcionais” no processo penal, sem o respeito aos direitos e garantias constitucionais e legais dos réus, acaba trazendo como triste consequência, como o tempo bem nos mostra, a anulação de processos e operações criminais.

________
 
1 Os desembargadores José Lunardelli, relator, e Cecília Mello, revisora, acolheram a tese da defesa. O terceiro juiz, Desembargador André Nekatschalow, votou contrário à tese.

2 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. (Tradução de Diritto e ragione: teoria del garantismo penale). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 667.

3 De Sanctis, de proscrito a guru. Revista Piauí, 11 de maio de 2018. Disponível em: em: https://piaui.folha.uol.com.br/de-sanctis-de-proscrito-guru/. Acesso em: 18 de dezembro de 2024.

Camila Crivilin
Advogada sênior no escritório Aragão e Tomaz Advogados Associados.

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