É cediço que a existência da justa causa é essencial para conferir a necessária legitimidade à instauração de sindicância ou de PAD. Porém, na prática, não é o que ocorre.
Com efeito, é cada vez mais usual que um PAD ou sindicância sejam instaurados, apenas, para devassar a vida do servidor público, em busca de elementos materiais que tenham o condão de emular, eventualmente e a posteriori, uma pseudo justa causa, evidenciando, assim, a prática ilegal e imoral do fishing expedition.
Nesse contexto, percebe-se que a discricionaridade da Administração Pública quanto à instauração de sindicâncias e de PADs não é absoluta, devendo haver um suporte probatório mínimo a justificar a citada instauração, sob pena de lesão ao Princípio da Segurança Jurídica e de promover a destruição ilegal da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem do servidor público. Nesse sentido:
"Com efeito, a necessidade de justa causa para a procedibilidade da denúncia tem o propósito de não submeter o indivíduo a uma situação que expõe sua reputação e imagem e não houver elementos suficientes consistentes que indiquem sua necessidade." (Juiz Roberto Barroso, Temas de Direito Constitucional, tomo lI, Renovar, 2002. p. 553.)
Nessa mesma linha, cabe colacionar a Doutrina de Adilson Abreu Dallari: "Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu falta funcional (Adilson Abreu Dallari, Limitações à atuação do Ministério Público, Malheiros. 2001, p. 38.)
Necessário, ainda, o registro de que a mera existência de um fato ou a mera suspeita de suposta irregularidade não podem ser considerados como suporte probatório mínimo capaz de ensejar a justa causa necessária à instauração do procedimento disciplinar.
Logo, é essencial que a instauração de um PAD seja precedida de juízo de valor minimamente fundamentado por parte do Administrador Público, de modo a perfectibilizar o fumus boni iuris necessário ao início do procedimento disciplinar, porquanto o excesso apuratório caracteriza excesso de poder e desvio de finalidade, além de lesar os Princípios da Impessoalidade, da Eficiência e da Moralidade Administrativa.
Outrossim, tal excesso apuratório fere o Princípio da Proporcionalidade, nos termos do art. 2º, parágrafo único, inc. IV, da Lei nº 9874/99:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...)
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;
Não por acaso que o procedimento disciplinar genérico e aberto, onde acusações vagas servem para iniciar uma devassa na vida do agente público, inaugurando o fishing expedition, insere-se no contexto do lawfare e se utiliza das máximas extraídas do Direito Penal do Inimigo.
Nessa linha, a doutrina de Mauro Roberto Gomes de Matos:
A boa fé e a segurança jurídica retiram do administrador público a faculdade da instauração do procedimento administrativo genérico, sem que haja aparente transgressão aos princípios disciplinares que regem a vida funcional.
Não funciona o processo disciplinar como "uma caixa de supresas" onde a ausência de materialidade de uma possível falta funcional poderia proporcionar a instauração de inquérito administrativo para devassar a vida do servidor, no afã de se encontrar algo que possa ser usado contra ele. (Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada, 1ª ed., Rio de Janeiro, América Jurídica, 2005, p. 745).
Por fim, cabe ressaltar que a presunção de inocência funciona como óbice ao procedimento disciplinar genérico, aberto e sem justa causa, na medida em que impõe à Administração provar a irregularidade ou a culpa do servidor, inclusive na fase da instauração, por meio de um suporte probatório minimamente razoável.
Ante o exposto, a justa causa na instauração do processo disciplinar impede que tal expediente seja natimorto, e, por conseguinte, anulado pelo Poder Judiciário.
Nesse sentido, o Exmo. Min. Arnaldo Esteves de Lima fez constar em voto por ele proferido o alerta de que “tendo em vista a repercussão negativa na esfera funcional, familiar e pessoal do servidor público e, ainda, os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, mostra-se indispensável a necessidade de justa causa para a abertura de sindicância ou processo disciplinar”. (MS 10.442/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/08/2005, DJ 26/09/2005, p. 172)
Nessa mesma linha, assim entende o TRF1:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO. APELO DESPROVIDO. 1.A remessa oficial deve ser tida por interposta, por se tratar de sentença proferida contra a União, nos termos do art. 475, I, do CPC/73, vigente à época de sua prolação, não se enquadrando nas hipóteses excludentes dos §§ 2º e 3º do referido dispositivo processual. 2.Visa o autor ao trancamento do processo administrativo disciplinar instaurado em seu desfavor, por meio da Portaria 081/2009-SR/DPF/PA, por ausência de justa causa. 3.O controle judicial dos processos administrativos cinge-se à constatação da existência de vícios capazes de ensejar sua nulidade, sendo possível adentrar ao mérito administrativo naquelas hipóteses em que, ainda que se cuide de espaço de atuação política reservado ao administrador, as decisões se revelem arbitrárias e dissonantes da finalidade pública. A possibilidade de análise do ato administrativo decorre do princípio da razoabilidade, pois, dentre as diversas escolhas postas ao administrador, algumas são, aos olhos do senso comum, inteiramente inadequadas. Nesses casos é evidente que o Poder Judiciário poderá analisar o mérito. 4.Na hipótese, o autor, agente da polícia federal, foi acionado para comparecer à delegacia no dia 08.03.2008, um sábado. Por não estar na escala de sobreaviso daquele dia, mencionou que havia outros policiais que poderiam atender à convocação. Teve então seu nome lançado no livro de ocorrências e foi instado a se manifestar sobre os fatos (despacho 0200/2008-DPF/SNM/PA). Por meio do memorando 003-NBABN-DPF/SNM/PA, o autor mencionou a existência de um núcleo operacional na delegacia, que tinha entre suas atribuições a de elaborar escalas de plantão e sobreaviso, havendo outros policiais disponíveis naquele dia a serem acionados antes do autor. A despeito de tais esclarecimentos, foi instaurado em face do autor, processo administrativo disciplinar, por meio da Portaria 081/2009-SR/DPF/PA, a fim de apurar a prática de conduta que, em tese, amoldar-se-ia aos tipos previstos no artigo 43, XXIV e XXX, da Lei 4.878/1965. 5.A Lei 4.878/65, em seu artigo 43, XXIV e XXX, prevê as seguintes condutas como infrações disciplinares: XXIV negligenciar ou descumprir a execução de qualquer ordem legítima; XXX faltar ou chegar atrasado ao serviço, ou deixar de participar, com antecedência, à autoridade a que estiver subordinado, a impossibilidade de comparecer à repartição, salvo motivo justo. 6.Todavia, ao se considerar que o autor não estava na escala de sobreaviso no dia da convocação e que havia outros policiais que poderiam ser acionados para trabalhar naquele dia, a simples recusa de comparecimento, nos termos em que ocorreu, não constitui justa causa para a instauração de um processo administrativo disciplinar contra ele, sob o argumento de ter descumprido ordem legítima. Não se vislumbra, portanto, conduta que se amolde aos mencionados dispositivos legais. 7.A instauração de um processo administrativo disciplinar, embora seja apenas uma apuração, a qual garante a oportunidade do exercício do contraditório e da ampla defesa antes de qualquer punição, não deixa de ser uma situação gravosa para o servidor público, o que impõe a existência de justa causa suporte fático que evidencie a prática da infração para sua instauração. Dessa forma, tendo em conta a atipicidade da conduta do agente, é imperioso concluir pela ausência de justa causa para a instauração do processo administrativo disciplinar, razão pela qual não merece reparos a sentença. 8.Apelação e remessa oficial, tida por interposta, desprovidas.(AC 0002461-93.2009.4.01.3902, DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO LUIZ DE SOUSA, TRF1 - SEGUNDA TURMA, PJe 22/07/2020 PAG.- grifei)
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. SINDICÂNCIA. CONCLUSÃO PELA AUSÊNCIA DE IRREGULARIDADE. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ARTIGO 143 DA LEI 8.112/90. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL NÃO PROVIDAS. 1. A instauração de processo administrativo pressupõe a existência de justa causa, consubstanciada ao menos em indício de que tenha o servidor cometido irregularidades no exercício de suas atribuições (art. 143 da Lei 8.112/90). 2. É cabível o trancamento do procedimento administrativo instaurado quando há falta de justa causa (contingente mínimo de elementos probatórios sobre a existência do ato ilícito e da autoria) em face da prova pré-constituída. 3. Os fatos imputados ao impetrante foram negados pelo próprio autor da denúncia, não justificando a instauração de processo administrativo disciplinar, já que a Comissão de Sindicância concluiu pela inexistência da irregularidade noticiada. 4. Apelação e remessa oficial a que se nega provimento.
(AMS 0008815-92.1999.4.01.3900, JUIZ FEDERAL MIGUEL ÂNGELO ALVARENGA LOPES (CONV.), TRF1 - PRIMEIRA TURMA, DJ 15/01/2007 PAG 12.- grifei)
Caminha no mesmo sentido a recente decisão do e. TRF-4:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ART. 148, LEI 8.112/90. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. NULIDADE. 1. O art. 148 Lei nº 8112/90 define e delimita o objeto do processo disciplinar, dispondo que se destina à apuração da responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido. 2. Os fatos imputados à parte autora não foram praticados no exercício de suas atribuições ou em razão delas, não se podendo estabelecer o nexo causal entre a função exercida com as supostas infrações praticadas. Em consequência, é infundada a iniciativa da Administração Pública, porque de seu dever de apurar e punir as faltas e irregularidades cometidas pelos seus servidores públicos não decorre o poder de instaurar processo administrativo disciplinar para investigar conduta "atípica" ou sem justa causa. (TRF4, AC 5008893-64.2015.4.04.7001, TERCEIRA TURMA, Relator ROGERIO FAVRETO, juntado aos autos em 23/02/2022 - grifei)
Da mesma forma, assim entende o e. TJ/SP:
Mandado de segurança. Processo administrativo. Autuação de municipalidade. Apuração de eventual culpa de servidor. Motivos determinantes não configurados. Trancamento do expediente. Sentença mantida. Recurso e reexame necessário desprovidos. (TJSP; Apelação Cível 1003500- 09.2015.8.26.0236; Relator (a): Borelli Thomaz; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Público; Foro de Ibitinga - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/09/2016; Data de Registro: 29/09/2016)
APELAÇÃO - MANDADO DE SEGURANÇA PAD - Alegação de violação de direito ilíquido e certo ante a instauração de PAD sem justa causa para tanto -Sentença de primeiro grau que denegou a segurança Descabimento Fatos narrados que impõe a concessão da segurança pleiteada Ausência de justa causa para a instauração do PAD Impetrante que agiu em prol do bem público Necessidade de ponderação de valores Sigilo de documentos que não pode se prestar a encobrir condutas criminosas e ímprobas Encaminhamento dos documentos ao Ministério Público que resultou na responsabilização dos envolvidas nas práticas ilícitas Prosseguimento do PAD que implicaria imposição de verdadeira sanção a servidor público que agiu com lisura e probidade Trancamento do PAD por ausência de justa causa que é medida que se impõe - Segurança concedida - Recurso provido. (Apelação nº: 1033259-14.2017.8.26.0053 – 09.04.2019 - Voto nº: 26591)
Por fim, caminha no mesmo sentido a recente decisão do e. CNJ:
RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. DESEMBARGADOR DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ALEGADA INTERFERÊNCIA INDEVIDA DO RECLAMADO EM PROCESSOS EM QUE SUA FILHA FIGURA COMO PARTE. FALTA DE JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS INDICIÁRIOS SUFICIENTES QUE JUSTIFIQUEM A ABERTURA DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
1. A imputação de ingerência indevida para a concessão de habeas corpus preventivo, no qual o requerido teria formulado pedido direto e pessoal ao relator, não encontra suporte em qualquer elemento probatório colhido durante a investigação prévia. Em verdade, a decisão monocrática do mencionado writ, além de fundada em julgado do STF (HC 95362. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 10/03/2009), fora confirmada pelo competente órgão colegiado, não se podendo extrair, de tais fatos, indícios de veracidade das imputações ao requerido.
2. Doutrina e jurisprudência exigem prova induvidosa da ocorrência de um fato delituoso e prova ou indícios de autoria, sem as quais inexiste justa causa para a instauração de procedimento administrativo disciplinar.
3. Reclamação disciplinar arquivada.
(CNJ - RD - Reclamação Disciplinar - 0002657-17.2015.2.00.0000 - Rel. NORBERTO CAMPELO - 234ª Sessão Ordinária - julgado em 28/06/2016).
Ante o exposto, conclui-se que o PAD desprovido de justa causa representa uma anomalia jurídica a ser combatida, de modo que a persecução administrativa se subsuma ao espectro de garantias previstas na Carta Magna.