O desvio de função, infelizmente, tornou-se prática quase que considerada natural no serviço público: Federal, estadual e municipal.
Isso é muito grave: gera desmotivação, diminui a produtividade, além de impacto emocional e psicológico nos servidores.
Esse tema tem importância, não apenas para milhões de servidores públicos, mas para a sociedade. Está em jogo a qualidade e eficiência do serviço público.
Uma coisa triste: há o servidor “faz de tudo”. Ah, me lembrei dos estagiários de Pindorama como fala Lenio Streck: "afinal, eles dão sentenças, fazem acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos…"
Aliás, vejam o depoimento do advogado Fernando Veloso sobre o tema:
“estagiei em uma vara criminal e havia um estagiário do gabinete do juiz que tinha a alcunha de 'indefiro'”.
Um cheiro de ilegalidade, imoralidade, inconstitucionalidade e improbidade ronda a Administração Pública…
Como ocorre o desvio de função?
O desvio de função ocorre quando o servidor passa a exercer atribuições diferentes do cargo para o qual prestou concurso e foi empossado.
Exemplo: por acaso, um servidor aprovado no concurso de técnico de atividade judiciária realize as atribuições do cargo de analista judiciário, estará, sim, configurado o desvio de função.
Por quê? Porque que o cargo de analista tem investidura, natureza e a complexidade diferente do cargo de técnico e, claro, maior remuneração.
Dia vai, dia vem, e, porém, existe o escancarado desvio de função: ilegal, imoral e inconstitucional!
Pois é. O administrador, ao invés de realizar concurso público para os cargos, prefere cometer ilegalidades, desviando de função os servidores. É uma mesquinharia danada.
Por outro lado, uma gastança com nepotismo, boquinhas nos governos, altos subsídios aos agentes políticos, que, aliás, vivem em um mundo à parte. Isso sem falar, nas viagens internacionais.
Quem perde com tudo isso é a população que paga a conta.
Consequências práticas do desvio de função para a sociedade
Quando o servidor é desviado de função para baixo, atinge a sua autoestima, já que realiza atribuições incompatíveis com a complexidade do cargo que foi aprovado no concurso, ou seja, funções triviais.
O que gera em consequência: estresse, ansiedade, sentimento de incapacidade, dano psicológico e licenças médicas. Por óbvio, acaba atingindo a sua produtividade, não é?
Por outro lado, desviando de função o servidor para cima, ou seja, para exercer uma função de maior responsabilidade, ocasiona primeiro uma imensa frustação.
Por quê? Porque, no final do mês, não recebe a mesma remuneração pela função que efetivamente desempenha. Sente-se desvalorizado e explorado!
Além do que, pode gerar estresse crônico, cansaço estremo, falta de energia e motivação. Até a síndrome de Burnout.
Incrível: o servidor que questionar a ordem ilegal do chefe imediato, por estar desviado de função, é taxado de encrenqueiro. Que não gosta de trabalhar. Que tumultua o serviço. É ameaçado com punição.
Cruel e perverso!
Nada autoriza e justifica o desvio de função, por abuso de poder, obrigando o servidor público a realizar atribuições de outro cargo do qual não prestou concurso.
Atualização da legislação
Ah, uma notícia boa em relação ao desvio de função: a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou recentemente projeto de LC 186/04 que altera o regime jurídico dos servidores públicos. Apesar de pontos polêmicos teve avanço em relação a praga do desvio de função.
Ou seja, o art. 3º, § 7º, da LC 94/79, que é o Estatuto dos Servidores Públicos do Poder Executivo do município do Rio de Janeiro, vai prever que:
“Constitui falta grave para o chefe imediato, a permissão ou tolerância de desvio de função por funcionário sob sua subordinação, não excluída a sua responsabilização civil e/ou criminal”
A implicação prática da nova lei
Sendo a conduta do chefe imediato falta grave, será passível de demissão, após instauração do PAD - processo administrativo disciplinar, com direito à ampla defesa.
O que é cargo público?
O mestre de todos nós, professor José dos Santos Carvalho Filho1: ensina que o cargo público é o lugar dentro da organização funcional da administração direta e de suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específicas e remuneração fixadas em lei.
Daí a observação de Renato Ferraz2:
“As atribuições dos cargos, pelo Direito Administrativo, são como paralelas, ou seja, só se encontram no infinito... Senão, haverá a praga do assédio moral, na espécie desvio de função”.
Dessa maneira, o cargo X, jamais pode ter a mesma atribuição do cargo Y. Simples assim.
Explicarei melhor esse ponto: não existem dois cargos diferentes com as mesmas atribuições. Como exemplo: o cargo de investigador policial nunca pode ter as mesmas atribuições do cargo de inspetor de polícia, sob pena de desvio de função.
Não poderia deixar passar em branco o que ensina o professor José dos Santos Carvalho Filho3:
“Não pode ser instituído cargo com funções aleatórias ou indefinidas: é a prévia indicação das funções que confere garantia ao servidor e ao Poder Público”.
“Por tal motivo, é ilegítimo o denominado desvio de função, fato habitualmente encontrado nos órgãos administrativos, que consiste no exercício, pelo servidor, de funções relativas a outro cargo, que não o que ocupa efetivamente. Nem a insuficiência de servidores na unidade administrativa justifica o desvio de função”.
“Cuida-se de uma corruptela no sistema de cargos e funções que precisa ser coibida, para evitar falsas expectativas do servidor e a instauração de litígios com o escopo de permitir a alteração da titularidade do cargo.”
Do cargo em comissão e apadrinhados
De fato, o cargo em comissão é para colocar os apadrinhados que não prestaram concurso público. Vem sempre à tona os casos da prática ilícita da “rachadinha”.
Os comissionados entram pela janela. Os concursados pela porta da frente. Seria uma norma constitucional inconstitucional na lição de Oto Bacof?
O ideal é que os cargos em comissão fossem ocupados, somente, por servidores de carreira e nomeados com critério objetivo de eficiência e competência, e não por serem “amigos do rei”.
A CF veda o desvio de função
A vedação ao desvio de função está fundamentada no art. 37, caput, da CF/88, que dispõe sobre os princípios a serem observados pela Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Desvio de função: Violação dos princípios da legalidade e do concurso público
O desvio de função, sim, atropela o princípio da legalidade e do concurso público, no art. 37, II, da CF/88, pois a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público.
Logo, em respeito ao princípio do concurso público (art.37, II, CF) as atribuições dos cargos efetivos são exclusivas dos servidores concursados e empossados, e não por servidores em desvio de função.
Desvio de função é princípio da moralidade
Além do que, o desvio de função, ofende também o princípio da moralidade (art. 37, caput, CF), que na lição de Renato Ferraz4: "a moralidade pública é a ética na conduta da Administração Pública."
Pergunta de um milhão de dólares: quando o servidor é desviado de função, para uma atribuição de maior complexidade, sem, no entanto, receber a remuneração devida, há ética pública na conduta da Administração?
Enriquecimento ilícito da Administração Pública com o desvio de função
Comprovado o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes por desempenha atribuições diferentes daquela inerente ao cargo para o qual foi investido.
Nesse sentido, a súmula 378 do STJ:
“Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes do desvio de função por servidor sob sua subordinação, ou sua tolerância.”
Desvio de função e assédio moral
O art. 2º lei 3921/02, do Estado do Rio de Janeiro, considera assédio moral o desvio de função:
"determinar o cumprimento de atribuições estranhas ou atividades incompatíveis com o cargo do servidor ou em condições e prazos inexequíveis; designar para funções triviais, o exercente de funções técnicas, especializadas ou aquelas para as quais, de qualquer forma, sejam exigidos treinamento e conhecimento específicos".
Por falar em assédio moral, ele causa impacto na vida dos servidores, vale dizer, graves transtornos à saúde física e emocional; violando o princípio fundamental da república, que é a dignidade da pessoa humana. (art.1º, III, CF).
Para autorizado magistério de Renato Ferraz5:
"O Princípio Constitucional da Legalidade é um antídoto contra o assédio moral. O administrador público não tem vontade. Não tem desejo. Ele é um mero executor do ato. Mero executor da lei, vale dizer, sua conduta tem que ser pautada na legalidade constitucional."
Entenda um caso emblemático
Servidores públicos da Câmara Municipal de Mendes, cedidos ao TJ-RJ, tendo como causa de pedir, o desvio de função, por exercerem as funções de técnico de atividade judiciária, na Vara Única da comarca de Mendes, entraram com ação em face do Estado do Rio de Janeiro.
A pretensão foi receber a percepção das diferenças salariais, além dos benefícios relativos aos últimos cinco anos de efetivo exercício. O pedido na sentença foi julgado improcedente.
Não obstante, na apelação civil 0003431-58.2011.8.19.0032, sendo relator o culto e eminente desembargador Juarez Fernandes Folhes foi dado provimento ao apelo dos autores.
O Estado do Rio de Janeiro foi condenado ao pagamento das diferenças salariais entre os cargos que os autores ocupam na prefeitura de Mendes e as funções de técnico judiciário exercidas no TJ/RJ, especificamente na Vara Única da comarca de Mendes.
Conclusão
O desvio de função, lamentavelmente, tornou-se prática banalizada nos órgãos públicos; sendo ilegal, imoral e inconstitucional.
O assunto é muito relevante. Envolve milhões de servidores públicos. Mas essa prática ilegal afeta a todos. Os fins não justificam os meios.
Urge ações concretas para prevenir e combater os graves casos de desvio de função.
Os servidores, sindicatos, OAB, cidadãos e o Ministério Público, que, aliás, pode propor ação civil pública, devem engajarem-se na solução coletiva do problema.
Denunciando e realizando campanhas para combater essa prática no cotidiano do serviço público; o qual acaba influenciando na qualidade do serviço público, com evidente prejuízo à sociedade.
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1 CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, p.655, 2018, 32ª ed. Gen/Atlas.
2 FERRAZ, Renato, Estatuto dos Policiais Civis do Estado do Rio de Janeiro, p. 124, 2019.
3 CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, p.656, Gen/Atlas.
4 FERRAZ, Renato, Estatuto dos Policiais Civis do Estado do Rio de Janeiro, p. 35, 2019
5 FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p.54.