Introdução
A resolução 591/24 do CNJ foi criada com o objetivo de regulamentar o julgamento de processos em ambiente eletrônico, visando à celeridade e à eficiência no trâmite processual. Entretanto, as disposições da norma suscitaram críticas por parte da classe jurídica, especialmente da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, em razão de potenciais violações aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.
O contexto normativo
Esta resolução 591/24 do CNJ define as regras para os julgamentos virtuais assíncronos, permitindo que os processos sejam decididos sem a necessidade de reunião presencial dos membros do colegiado. Essa forma de julgamento é pautada na publicação de votos eletrônicos e, na realização de sustentações orais previamente gravadas pelos advogados.
Apesar de prometer maior eficiência, o modelo proposto apresenta desafios que afetam diretamente e profundamente o exercício pleno da advocacia, sua atuação laboral e, em especial, afronta os pilares da CF/88 sob a ótica do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, e da indispensabilidade do advogado como porta-voz do cidadão em face ao estado-juiz (art. 133 – “O advogado é indispensável à administração da justiça…”).
Conforme narra o art. 9º da resolução, “Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior que venha a ser definido em ato da Presidência do Tribunal.”, ou seja, respeitando pensamentos divergentes, o jurisdicionado acaba sendo tolhido e prejudicado, pois seu representante legal (advogado – detentor do jus postulandi – excluindo as exceções legais), não poderá se socorrer de todo ordenamento jurídico para defender seus interesses.
Análise dos impactos nos princípios constitucionais
1. O contraditório e a ampla defesa
O julgamento eletrônico assíncrono, conforme disposto no art. 1º da resolução, elimina a possibilidade de interação direta entre advogados e magistrados durante as sessões. Isso representa uma significativa limitação ao contraditório dinâmico, um dos pilares do processo justo.
A sustentação oral gravada prevista no art. 9º impede que o advogado responda imediatamente a questionamentos ou conteste pontos levantados por votos divergentes. Sem essa interação, a capacidade de esclarecer e elucidar situações daquele momento ficam reduzidas, dificultando, muitas vezes, o melhor esclarecimento dos fatos para mais assertivo entendimento dos julgadores, comprometendo a defesa eficaz do cliente.
2. A sustentação oral: Desafios e restrições
A exigência de gravação prévia em áudio ou vídeo (§ 2º do art. 9º) traz à tona questões logísticas e técnicas que podem dificultar o exercício da advocacia, especialmente em regiões onde o acesso à tecnologia é limitado ou mais dificultoso.
Ademais, tal resolução desconsidera a natureza argumentativa e dialógica da sustentação oral, essencial para esclarecer questões de fato e de direito. Ao limitar os esclarecimentos durante o julgamento a questões exclusivamente factuais (§ 6º do art. 9º), a norma restringe ainda mais a participação ativa do advogado e a efetiva busca pela verdade real dos fatos.
3. A irreversibilidade de votos
O art. 8º, § 3º da resolução, determina que votos proferidos em ambiente virtual permanecem inalterados, mesmo quando o julgamento for transferido para sessão presencial. Essa previsão engessa o processo decisório, impedindo que novos argumentos ou elementos apresentados em sustentação oral presencial alterem o entendimento dos julgadores, aclarando melhor o caso concreto ali julgado.
Implicações práticas para a advocacia
1. Desigualdades tecnológicas
A necessidade de equipamentos e infraestrutura adequados para gravação de sustentações orais impõe dificuldades adicionais para advogados que atuam em localidades mais remotas ou em escritórios com recursos limitados. Essa barreira contraria o princípio da igualdade (paridade ou da isonomia) de armas entre as partes, podendo até mesmo configurar um vício de procedimento grave e poderia levar à nulidade do julgamento.
2. Danos à eficiência do exercício profissional
A exigência de cumprimento de prazos e requisitos técnicos específicos para sustentações orais gravadas pode resultar em indeferimento de peças essenciais para a defesa. Tais obstáculos colocam o advogado em posição desvantajosa, comprometendo a entrega de uma defesa plena e eficaz.
Reações institucionais e propostas de solução
A OAB tem se manifestado de forma veemente contra as disposições da resolução. Entre as ações destacam-se:
- De Lei: Apresentação de projeto para incluir no Estatuto da Advocacia o direito à sustentação oral em tempo real, mesmo em julgamentos virtuais.
II. Apoio ao PDL 371/24: Este projeto de decreto Legislativo busca sustar os efeitos da resolução, reforçando a importância do contraditório e da ampla defesa.
- Institucional: Mobilização junto ao Congresso Nacional e ao CNJ para revisar os dispositivos mais polêmicos.
Soluções e recomendações
1. Adaptação normativa
A Resolução deve ser revista para incluir a possibilidade de sustentação oral em tempo real nos julgamentos virtuais, garantindo a interação dinâmica entre advogados e magistrados, respeitando o contraditório, ampla defesa, devido processo legal, dentre diversos outros princípios constitucionais.
2. Garantia de infraestrutura
O CNJ deveria promover e incentivar, juntamente com cada uma das seccionais da OAB, programas de incentivo ao uso de tecnologia em escritórios de advocacia, especialmente em regiões mais carentes, afastadas e isoladas, assegurando igualdade de condições e mesmas oportunidades de apresentação de teses, sem que a desigualdade técnica prejudique nenhuma das partes.
3. Prazos mais flexíveis
A flexibilização dos prazos para envio de sustentações orais gravadas e a ampliação das opções de participação nos julgamentos poderiam reduzir os impactos negativos para a advocacia.
Conclusão
A resolução 591/24 do CNJ introduz significativas inovações tecnológicas ao processo judicial, alinhando-se à tendência global de modernização e digitalização das atividades do Poder Judiciário.
No entanto, a implementação dessas mudanças de forma irrestrita e abrupta acarretará prejuízos aos pilares fundamentais que sustentam o processo judicial democrático e equilibrado, especialmente no que concerne aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
A eficiência, por mais desejável que seja em qualquer sistema jurídico, jamais deve ser buscada em detrimento da garantia de direitos fundamentais que asseguram a paridade de armas entre as partes e o pleno exercício da advocacia, até porque, se pararmos para pensar nos processos que adormecem há anos na justiça, seria contraditório tal justificativa, sendo “dois pesos e duas medidas”, pois, em vezes, verificamos uma grande diferença entre como o judiciário deveria se portar e como ele de fato se porta.
O contraditório, enquanto princípio essencial ao devido processo legal, pressupõe a possibilidade de interação dinâmica e imediata entre as partes, de modo que argumentos possam ser rebatidos e questões esclarecidas em tempo hábil. A resolução, ao privilegiar mecanismos eletrônicos e assíncronos, como sustentações orais gravadas e julgamentos virtuais, corre o risco de transformar o processo judicial em uma prática formalista e mecânica, onde a riqueza do debate jurídico se perde por completo.
Essa dinâmica não apenas limita a capacidade do advogado de defender os interesses de seu cliente de maneira integral, mas também pode afetar a qualidade das decisões judiciais, uma vez que o magistrado pode não ser exposto a todas as nuances do caso em tempo real.
Além disso, a ampla defesa, que compreende tanto o direito de apresentar argumentos quanto o de influenciar o convencimento do julgador, também é enfraquecida pela aplicação rígida das diretrizes da resolução.
A modernização do sistema judiciário é uma necessidade inegável, especialmente em um contexto em que a celeridade processual se tornou uma demanda crescente da sociedade. Contudo, ajustes são indispensáveis para que a inovação tecnológica não colida com valores essenciais do sistema de justiça.
É preciso que a busca por eficiência seja cuidadosamente equilibrada com a preservação dos direitos fundamentais, especialmente daqueles que garantem o pleno exercício das prerrogativas profissionais da advocacia.
Assim, medidas como a implementação de sustentações orais síncronas, o estabelecimento de salvaguardas para assegurar a participação ativa dos advogados e a flexibilização de exigências técnicas devem ser consideradas como formas de harmonizar a evolução tecnológica com a proteção dos direitos das partes e o fortalecimento do devido processo legal.