O julgamento das plataformas pelo STF tem tomado o debate público, iniciando-se com os votos já prolatados pelos ministros relatores dos Temas de repercussão geral 987 e 533. O foco é a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet. No entanto, a ótica dos direitos humanos e direitos fundamentais é necessária para a correta aferição dos impactos do julgado, consagrando também o dever do STF de controle de convencionalidade das normas (ou seja, verificação de sua compatibilidade com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e internalizados pelo Brasil) e a atenção à historicidade dos Direitos Humanos. É o que aqui se propõe.
- A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”) dispõe em seu art. 13 sobre a liberdade de pensamento e de expressão. Ela veda a restrição do direito de expressão por quaisquer meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
- O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é outro instrumento relevante para a matéria e reconhece em seu art. 19 o direito à liberdade de expressão; liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras.
- A partir da perspectiva de Direitos Humanos e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a liberdade de expressão em plataformas não se trata de concessão de um direito a ou por provedores de aplicação aos usuários de serviço, mas de direitos humanos garantidos pelo art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos e pelo art. 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
- Trata-se de direito fundamental inalienável que sustenta a democracia e, segundo a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, sua restrição deve ser “proibida por lei, bem como qualquer criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão”.
- A partir deste racional, entende-se que a responsabilidade solidária e objetiva aos provedores de aplicação de internet acarretará, por uma lógica de mercado, a ampliação do uso de moderação de conteúdos, fato que vai de encontro com os parâmetros fixados pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para a matéria. Veja-se:
- Em Moya Chacón e outros vs. Costa Rica (2022), a Corte Interamericana entendeu que caracteriza violação à liberdade de expressão a condenação de jornalistas por reportagem de denúncia à conduta de chefes da polícia. Segundo a sentença, embora as informações publicadas fossem inconsistentes, não houve intenção de causar danos às pessoas afetadas pela notícia.
- No mesmo sentido, em Granier e outros vs. Venezuela (2015), a Corte entendeu que, apesar de a liberdade de expressão consagrada no art. 13 da Convenção Americana não reconhecer pessoas jurídicas, como a RCTV, as empresas de mídia são consideradas facilitadoras da liberdade de expressão e desempenham um papel importante em uma sociedade democrática.
Ainda que o precedente não se refira a provedores de aplicação, o entendimento deve ser estendido por analogia, tendo em vista a criação de um ambiente virtual de disseminação de informações e de diferentes perspectivas, enquanto um fomentador e disseminador da pluralidade de pensamentos e opiniões.
- Em Herrera Ulloa vs. Costa Rica (2004), a CIDH delimitou que o art. 13 da Convenção protege a liberdade de expressão em duas dimensões: 1) um direito individual de trocar ideias livremente com o maior número de pessoas; e 2) um elemento social que se expande para proteger o direito de um indivíduo de receber informações e notícias.
Nesse sentido, a ampliação da moderação de conteúdo é apta a afetar não apenas o direito individual de liberdade de expressão, como o direito social.
- Nesse cenário, o modelo de responsabilização solidária e objetiva previsto nos votos já prolatados apresenta risco de, com a intenção legítima de resguardar um direito, subverter a ordem democrática ao transferir para instituições privadas decisões que, segundo a Corte Interamericana e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devem ser analisadas à luz da subjetividade inerente à proteção do direito à liberdade de expressão, respeitando o devido processo legal.
- As redes sociais são hoje o principal espaço de debate público. A possibilidade de responsabilização civil objetiva incentiva as plataformas a priorizarem remoções automatizadas para evitar litígios e responsabilização, notadamente nos casos identificados pelo rol apresentado pelos votos prolatados (exceções ao notice and take down). A dificuldade se apresenta notadamente porque a linguagem humana é subjetiva, complexa e contextual.
- As empresas privadas não podem, em um regime constitucional submetido ao sistema interamericano de Direitos Humanos, ter o poder de decidir o que pode ou não ser dito pelos cidadãos. A subjetividade na tomada de decisão quanto à remoção ou permanência do conteúdo cria um sistema opaco em que discursos de resistência ou contra hegemônicos correm o risco de serem sistematicamente silenciados. Ou seja, neste contexto, ao invés de proteger direitos, plataformas tornar-se-iam instrumentos de exclusão.
- Essa prática, no entanto, é incompatível com um sistema democrático que protege direitos fundamentais e o amplo debate de ideias. Crimes como violência contra a mulher, ao Estado Democrático de Direitos ou de racismo demandam análise qualitativa que a intervenção humana oferece. Apresentam, como se aponta abaixo, zonas de certeza e de penumbra a respeito de sua aplicação ao caso concreto, notadamente tendo em vista as dinâmicas humanas de apropriação, por grupos vulnerabilizados, das mesmas expressões utilizadas para violação. É o que se vê, por exemplo, entre mulheres lésbicas no uso da expressão “sapatão”; por homens gays de expressões como “bicha” ou “viado” dentro da própria comunidade; ou por parcela das mulheres trans da autoidentificação “travesti”. Tais expressões terão acepção pejorativa e discriminatória em determinados contextos, e terá conotação emancipatória em outros. A ausência de notificação e contraditório gera graves riscos de censura prévia e exclusão de vozes legítimas.
- Segundo o relator, votos já prolatados, deverão ser retirados (sem necessidade de notificação) conteúdos que envolvam “qualquer espécie de violência contra a mulher, incluindo os crimes da lei 14.192, de 2021. Note-se que a expressão “qualquer violência contra mulher” é altamente subjetiva e demanda análise casuística.
- Exemplo disso é a ressignificação de termos como “vadia” (expressão de conotação misógina), que exemplifica a dificuldade de aplicação da moderação estabelecida pelo ilustre ministro para casos de violência política contra a mulher. Isso porque a lei 14.192/21 exige interpretação cuidadosa para distinguir injúria real de expressões reivindicatórias. Por exemplo, há diferença entre conteúdos que prevejam:
- Divulgação da “marcha das vadias”, movimento feminista que prega a liberdade e autonomia de pessoas que se identificam com o gênero feminino;
- Publicação que identifica uma mulher como “vadia” em decorrência de prática cultural, sexual ou política na intenção de ferir sua honra.
- Embora o termo seja o mesmo, a acepção oscila conforme contextos, subjetividades e interlocutores envolvidos na publicação/obra. Em ambientes digitais em que a realidade e os marcadores sociais de cada usuário não são de conhecimento dos provedores, torna-se impossível a identificação desses contextos, podendo remover conteúdos feministas que, ironicamente, combatem a própria violência que a lei busca eliminar. Conceder aos provedores de aplicação o poder de moderar de ofício o conteúdo oferece risco a grupos historicamente vulnerabilizados, como é o caso da população feminina.
- A ressignificação de termos pejorativos por comunidades historicamente oprimidas é um ato de resistência. Palavras como “viado” e “sapatão” foram apropriadas por grupos LGBTQIAPN+ para afirmar identidade e pertencimento.
- A expressão “sapatão” surgiu na década de 1970 para se referir a mulheres lésbicas que usavam sapatos masculinos. Sua acepção pejorativa e discriminação histórica tem, contudo, sofrido mudanças, por sua reivindicação por lésbicas e sáficas, como símbolo de orgulho e resistência. É o que se vê com a criação de diversos perfis em cujos nomes a expressão é utilizada. A expressão, no entanto, segue sendo utilizada por segmentos sociais em sua acepção pejorativa e a distinção de cada caso não é possível sem a compreensão de cada contexto e da realidade de cada usuário. A moderação automatizada, ao remover indiscriminadamente essas expressões, apresenta significativo risco de silenciar justamente os grupos que dependem da liberdade de expressão para existir e resistir.
- A atribuição de responsabilidade civil objetiva às plataformas, sem a necessidade de notificação prévia, é apta a transformar os provedores em censores privados. Na prática, isso implica na implementação de moderação para evitar riscos jurídicos e financeiros, especialmente em questões que dependem de interpretação subjetiva.
- A responsabilização solidária e objetiva em relação aos conteúdos cuja veiculação contenham crimes contra o Estado Democrático de Direito (modalidades típicas previstas lei 14.197/21) é também altamente complexa, pois a sua materialidade depende de análise delicada que transita entre crítica política legítima e atos ilícitos.
- O tema, como os demais, apresenta zonas de certeza e zonas de penumbra, notadamente à luz da exceção prevista no art. 359-T: “Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.”
- Pensemos nos recentes casos de violência policial por parte da polícia militar do Estado de São Paulo. Imagine-se a hipótese de publicação promovida por jovem periférico morador de região onde a violência foi perpetrada que contenha o seguinte conteúdo: “A POLÍCIA MILITAR TEM QUE ACABAR!”. A defesa da desmilitarização é tema recorrente em movimentos sociais.
A mesma frase poderia vir acompanhada de um dispositivo final: “A polícia militar tem que acabar com as pessoas de [determinado grupo]”. A distinção de ambos os casos (manifestação legítima sobre segurança pública e dinâmicas sociais vs. manifestação ilícita com base em configuração de racismo ou de outra hipótese de grave discriminação) exige dos provedores de aplicação análise casuística, o que somente pode ocorrer mediante notificação.
- No mesmo sentido, há debates históricos de movimentos separatistas em determinadas localidades, como se viu, por exemplo, em 2017, com o plebiscito informal organizado pelo movimento “O Sul é Meu País”. Ações do movimento configuram ou não violação ao art. 359-J da lei (que dispõe como conduta tipificada “Praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente”). Prescinde de análise judicial a aferição do caráter constitucional da manifestação enquanto liberdade de expressão ou ilícito enquanto violação ao art. 359-J, não sendo possível – sob pena de afronta a direitos fundamentais – atribuir a entes privados a definição dos limites da manifestação popular.
- O assassinato de Genivaldo Santos, homem negro 38 anos, com esquizofrenia e morto pela polícia rodoviária Federal em Sergipe é paradigmático para refletirmos a hipótese mencionada: a persecução penal dos agentes penais envolvidos no caso só foi possível porque transeuntes filmaram e publicaram o ocorrido em suas redes sociais.
Caso as publicações tivessem sido acompanhadas de frases como “FOGO NOS RACISTAS!!!!”, “ESTADO ASSASSINO”, “JUSTIÇA POR GENIVALDO, JUSTIÇA A TODO CUSTO”, as publicações – sob o regime proposto pelo voto - provavelmente teriam sido banidas pelos provedores tendo em vista o risco de quem fossem compreendidas como atentatórias ao Estado Democrático de Direito, por risco de configurar conduta tipificada pelo art. 359-L (“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”). Sob pretensão de defesa do Estado Democrático de Direito, coloca-se em xeque uma de suas pedras angulares em razão da impossibilidade de identificação de nuances subjetivas, com risco de eliminação de vozes legítimas e fragilização do debate público.
- Outra hipótese que apresenta graves riscos à liberdade de expressão de grupos vulnerabilizados é o caso de responsabilização solidária e objetiva para conteúdos que veiculam crimes de racismo. O tipo penal “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” possui conteúdo com grau de subjetividade e demanda análise caso a caso, contextualizada e subordinada às particularidades da situação.
- Uma das características dos Direitos Humanos é sua historicidade: Direitos Humanos são fruto de evolução histórica, não apenas em seu processo de reconhecimento, como na interpretação de sua aplicação à luz do contexto social, econômico, político e cultural em que se inserem. Nesse sentido, as dinâmicas de racismo, misoginia e de violação de grupos minorizados e vulnerabilizados mudam de acordo com cada localidade e momento histórico.
- Se, historicamente, o Brasil reconhece determinados grupos como tutelados pelo combate ao racismo (por exemplo, pessoas negras pelo Estatuto da Igualdade Racial; e pessoas judiais, tendo em vista o nefasto histórico do nazismo e como já reconheceu o E. STF no caso Siegfried Ellwanger), diferentes contextos podem impor a extensão ou a limitação de sua aplicabilidade. Durante a pandemia de Covid-19, pessoas asiáticas foram sistematicamente vítimas de xenofobia (modalidade de racismo), contexto que impôs a necessidade de extensão do conceito. De outro lado, o ordenamento jurídico brasileiro não contempla hipóteses do denominado “racismo reverso” enquanto juridicamente tutelável. A distinção de ambos exige a compreensão dos marcadores de privilégio ou de vulnerabilidade que são aptos a ensejar a definição de determinado grupo ou marcador enquanto juridicamente tutelado pela vedação do art. 1º da lei 7.716/89 como ato de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Como se vê, o debate é complexo e exige compreensão dos efeitos práticos da decisão, notadamente à luz dos parâmetros de Direitos Humanos com os quais o Brasil se compromete (muitos dos quais dotados de valor de EC, nos termos do art. 5º, §3º, da CF/88).