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Responsabilidade civil e provedores de internet: A inconstitucionalidade do art. 19 da lei 12.965/14

STF analisa o art. 19 do Marco Civil da Internet, debatendo responsabilidade de plataformas e proteção às vítimas no ambiente digital.

17/12/2024

Nesta última semana útil de 2024, o STF retoma o julgamento que envolve a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet1. Trata-se de polêmica antiga, centrada no conflito entre liberdade de expressão e responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. A redação atual do art. 19 somente admite a responsabilização civil do provedor, nesses casos, quando houver ordem judicial específica para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente e a empresa não tomar as providências cabíveis dentro do prazo assinalado na decisão judicial. O julgamento, ao que tudo indica, caminha no sentido de considerar inconstitucional responsabilizar as plataformas apenas em casos de descumprimento de ordem judicial. Segundo o Ministro Luiz Fux, o último a votar antes da suspensão da sessão, os conteúdos ilícitos ou ofensivos devem ser removidos assim que as plataformas forem notificadas pelos ofendidos. E se o conteúdo gerado por terceiros veicular discurso de ódio, racismo, pedofilia, incitação à violência e apologia à abolição violenta do Estado Democrático de Direito e ao golpe de Estado, as plataformas devem realizar o monitoramento ativo e retirar o conteúdo do ar imediatamente, sem necessidade de notificação.

Entendo que, em matéria de responsabilidade civil, a disposição legal questionada no STF não se mostra suficiente e adequada à reparação dos danos ocorridos ou decorrentes do uso do espaço virtual. O lapso de tempo que pode decorrer entre a divulgação de um conteúdo ofensivo e a ordem judicial para que ele seja indisponibilizado é passível de tornar irreparável o dano. Não se olvide a abrangência dos danos provocados e disseminados no espaço virtual e a extensão de seus efeitos, muitas vezes incontroláveis, face à quase impossibilidade de fazê-los cessar, uma vez que os arquivos contendo a informação danosa, a imagem lesionadora, a exposição ilícita da privacidade, potencialmente serão “baixados” e “salvos” por milhões de usuários, talvez bilhões,  que estarão aptos a continuar a difundi-los infinitamente.

No anteprojeto de reforma do Código Civil, a Comissão de Juristas, de que tive a honra de participar, propôs a revogação do artigo por incompatibilidade sistêmica com as propostas apresentadas pelo grupo ao Senado Federal. Segundo a professora Laura Porto, que foi relatora da subcomissão do Direito Civil Digital, é preciso “repensar o sistema regulatório em vigor, que não atribui quaisquer deveres para as plataformas e redes sociais em relação à circulação e amplificação de conteúdos ilícitos”.

Já faz alguns anos que venho refletindo sobre esse tema, especialmente no que toca aos abusos na circulação da informação na internet, por meio da veiculação indevida de informações privadas, veiculação distorcida de informações públicas, armazenamento de informações lesionadoras de direitos da personalidade, violação de direitos autorais ou, simplesmente, do envio e recebimento de informações indesejadas2. Naturalmente tais abusos são passíveis de produzir danos, nascendo, em conseqüência, o direito à reparação civil.3

Não tenho dúvidas de que nessa “quarta era dos direitos” em que vivemos, que é a era tecnológica, precisamos pensar em um “novo paradigma” para a responsabilidade civil que contemple a reparação de danos relacionados ao espaço virtual, com a proteção integral das vítimas, assegurando-lhes, em qualquer hipótese, a cobrança da indenização,  seja do autor do dano (quando identificável), seja de terceiro a quem seja atribuída a obrigação de indenizar, sem mais qualquer perquirição quanto à culpabilidade.  Não se pode admitir que as eventuais dificuldades para se apontar o verdadeiro responsável pelo dano, inviabilizem a reparação, que constitui direito fundamental da pessoa humana.

No âmbito do espaço virtual, toda a cadeia de sujeitos envolvida na relação jurídica individualmente considerada deve ser solidária e integralmente responsável pela reparação, em qualquer circunstância, independentemente de prévia notificação da vítima para a retirada do conteúdo ofensivo. Mesmo a pessoa que não deu causa direta ao dano, porque não produziu o conteúdo ofensivo, deve ser obrigado à reparação, em razão da relação estabelecida com aquele que foi o seu agente direto.

É o caso dos provedores de aplicações de internet, que permitem ou possibilitam a utilização de um determinado espaço virtual para armazenamento de quaisquer tipos de dados, acessíveis a uma universalidade de pessoas e que podem conter as mais variadas ilicitudes. Não se pode negar a responsabilidade desses provedores frente a terceiros no tocante aos conteúdos armazenados, que devem ser fiscalizados (monitoramento ativo), sem que o provedor se converta em “censor” de seus usuários. A abrangência dos danos provocados e disseminados no espaço virtual e a extensão de seus efeitos, muitas vezes incontroláveis, justifica, a nosso ver, eventuais medidas restritivas que venham a ser adotadas pelos provedores quanto à utilização dos sítios eletrônicos por parte de seus usuários.

Perfeitamente aplicável, me parece, a conclusão de Ricardo Lorenzetti, para quem deve ser imputada a responsabilidade ao provedor “se teve a oportunidade de valorar a ilegalidade do conteúdo da informação ou sua danosidade para terceiros”4. Ou ainda, se poderia (ou deveria) tê-lo feito, aproveitando-se das novas tecnologias que surgem diuturnamente, e não o fez por falta de diligência e violação do dever geral de proteção imposto a todos aqueles que se expõem ao mercado de consumo. 

A tendência jurisprudencial, em matéria de responsabilidade civil no espaço virtual, é a de considerar responsável o provedor quando praticar ato omissivo no que tange a danos provocados por terceiros por meio da plataforma. Esse entendimento é correto e condizente com o princípio maior de garantir que nenhuma vítima de dano deixe de lograr o respectivo ressarcimento ou a devida compensação.

A principal consequência dessa tendência jurisprudencial, que se vislumbra a partir do julgamento do STF,  é  fazer com que todos os provedores de aplicações de internet aumentem suas cautelas e multipliquem suas providências no sentido de coibir os conteúdos ilícitos e lecionadores gerados por terceiros.

______

1 Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.  § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

2 Cf. DELGADO, Mário Luiz. Responsabilidade civil na sociedade da informação: novas tendências. In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da. (Org.). Responsabilidade civil contemporânea. Em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. 1ed.São Paulo: Atlas, 2011, v. 1, p. 372-392.

3 Como bem coloca o Prof. Silvio Venosa, “a nova sociedade, nesse alvorecer do século XXI, lastreia seu poder na informação. Trata-se da era do computador e da informática. A cada dia, no sentido literal do termo, novos implementos e atualizações ocorrem nesse campo. O homem, com isso, perde sua privacidade. (...) O ser humano em qualquer lugar do planeta está apto a receber todas as informações do conhecimento humano. Cada vez mais a universalização do conhecimento torna-se realidade. Nem sempre, porém, esses avanços refletem-se unicamente em vantagens.” (VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito civil: responsabilidade civil”. 4. v., 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 190).

4 LORENZETTI, Ricardo. Informática, Cyberlaw, E-commerce. In: Direito & internet: Aspectos jurídicos relevantes. Coord. Newton De Lucca e Adlaberto Simão Filho.São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 492.

Mário Luiz Delgado
Advogado fundador do escritório MLD - Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado. Presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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