A despeito da tradição jurídica brasileira, ao longo do tempo, diferentes culturas jurídicas começaram a se interconectar, formando o que hoje chamamos de globalização. Mesmo buscando preservar sua liturgia, o direito brasileiro foi influenciado pela interação com os sistemas do civil law e do common law.
Essa aproximação trouxe ao Direito brasileiro uma significativa atualização com o CPC/15. Tradicionalmente vinculado ao sistema do civil law, o Brasil incorporou em sua prática um instituto amplamente conhecido no common law: os precedentes judiciais. Como aponta o professor Daniel Mitidiero em seu artigo sobre o tema:
“A tradição do common law cada vez mais trabalha com o direito legislado, fenômeno lugar do common law em uma época em que cada vez mais vige o statutory law. (…) De outro, a tradição do civil law cada vez mais se preocupa em assegurar a vigência do princípio da liberdade e da igualdade de todos perante o direito, trabalhando com uma noção dinâmica do princípio da segurança jurídica.”
A mudança ganha relevo no art. 926 do novo CPC, que estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Neste breve ensaio, buscamos responder à seguinte questão: qual princípio é central na figura dos precedentes judiciais? Qual o perigo da jurisprudência de ocasião?
A figura dos precedentes judiciais tem sido amplamente discutida no Direito brasileiro, mais ainda nos últimos anos. O §2º do art. 926 determina que “ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”, o que se denomina ratio decidendi.
Os tribunais superiores vêm gradualmente adotando os precedentes judiciais com o objetivo de fortalecer princípios constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito, como economia e celeridade processual. Contudo, o ponto nevrálgico dos precedentes é a busca pela segurança jurídica.
No passado, o Brasil enfrentava um cenário de decisões judiciais divergentes para casos idênticos. Por exemplo, uma pessoa que ajuizasse uma ação em determinada vara cível poderia obter uma decisão favorável, enquanto outra, em um caso idêntico na vara ao lado, receberia uma resposta desfavorável.
Tradicionalmente, a resposta para esse problema vinha na forma de súmulas, enunciados e jurisprudências. Contudo, o advento dos precedentes judiciais em nosso ordenamento busca garantir previsibilidade e coerência na aplicação das leis, fortalecendo o princípio da segurança jurídica.
Doutrinadores destacam que a mera aplicação da letra fria da lei não é suficiente para interpretar o direito. Com o avanço da sociedade, os códigos passaram a adotar conceitos jurídicos indeterminados, ampliando a responsabilidade do Poder Judiciário. Esse contexto exige respeito não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também à liberdade e à igualdade.
Dessa forma, a uniformização do Direito — tanto Federal quanto constitucional — é uma tarefa central das Cortes Supremas (STJ e STF). Como guardiãs da segurança jurídica, essas cortes devem, ao editar um acórdão que fixe precedente, fundamentá-lo com base na ratio decidendi. Essa fundamentação deve atender ao trinômio adequação, efetividade e tempo hábil na proteção dos direitos.
Ultimamente, apesar dos avanços trazidos pelo CPC/15 em relação à uniformização da jurisprudência, ainda se observa, a meu ver, uma prática recorrente nos tribunais superiores brasileiros: a “jurisprudência ocasional”.
Esse termo pode ser conceituado como decisões que, embora solucionem conflitos específicos sob o argumento de que a ocasião exige, contrariam o espírito do art. 926 do CPC, que preconiza a estabilidade, a integridade e a coerência da jurisprudência.
A jurisprudência ocasional caracteriza-se pela flexibilidade e pela ausência de vinculação, o que pode ser vantajoso em situações excepcionais. Contudo, seu uso indiscriminado enfraquece a previsibilidade das decisões judiciais, promovendo um retorno ao casuísmo que o sistema de precedentes visa combater, o que acaba por gerar mais insegurança jurídica, como por exemplo o caso Musk vs Moraes1.
Essa prática ilustra uma tensão estrutural entre dois valores fundamentais do sistema jurídico: a segurança jurídica, garantida pela aplicação dos precedentes, e a justiça material, que pode exigir soluções adaptadas a circunstâncias específicas. Quando os tribunais optam pela jurisprudência ocasional, frequentemente renegam a ratio decidendi de precedentes consolidados ao longo de décadas, justificando a decisão com base em fatores excepcionais.
Embora seja legítimo que o Poder Judiciário encontre soluções para situações inéditas, a banalização do uso da jurisprudência ocasional compromete a estabilidade do sistema, gera desigualdade entre jurisdicionados e dificulta o cumprimento do princípio da isonomia. Assim, torna-se urgente delimitar os critérios para a adoção de decisões casuísticas e fortalecer os precedentes como instrumentos centrais para a uniformização e previsibilidade do Direito, algo que o legislador quis buscar com a edição do novo código processual
A jurisprudência ocasional surge como resposta dos tribunais em momentos de grande instabilidade, como guerras, crises institucionais e mudanças de regimes, quando é necessário conferir legitimidade a situações excepcionais ou mesmo ilegítimas. Nessas ocasiões, abandonam-se os precedentes consolidados e recorrem a decisões casuísticas sob o argumento de que a complexidade do momento exige soluções pragmáticas.
Embora essa prática busque assegurar a confiança pública no Poder Judiciário, ela frequentemente contradiz os princípios de segurança jurídica e isonomia, promovendo desigualdade e incerteza na aplicação do Direito, tais atos são eivados na seguinte tese: “era necessário fazer tais atos, para manter a democracia”.
Porém, essa prática reflete a tensão entre a necessidade de preservar a estabilidade social e política e o dever de garantir coerência jurídica. Ao justificar situações controversas com base na excepcionalidade, os tribunais acabam por legitimar medidas que podem desrespeitar direitos fundamentais e enfraquecer o sistema de precedentes. Assim, a jurisprudência ocasional, embora aparentemente necessária em crises, compromete a confiança de longo prazo dos cidadãos na integridade e previsibilidade do Judiciário.
E a análise do tema nos permite concluir que a tutela dos direitos fundamentais exige decisões bem fundamentadas, capazes de criar precedentes judiciais que promovam a liberdade, a isonomia e, sobretudo, a segurança jurídica almejada desde que o Direito passou a regular as sociedades.
Além disso, cabe aos tribunais não apenas editar tais precedentes, mas também demonstrar aos jurisdicionados os caminhos para uma prestação jurisdicional mais coerente e transparente. Essa prática reforça a legitimidade das instituições judiciais e contribui para a construção de um sistema jurídico mais sólido, baseado na harmonia entre o direito legislado, a dinâmica das demandas sociais e evitar as jurisprudências de ocasião.
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1 Um exemplo recente de jurisprudência ocasional pode ser observado no caso Starlink, no qual contas da empresa foram bloqueadas para pagamento de dívidas do Twitter sob a justificativa de grupo econômico, apenas por Elon Musk ser sócio em ambas as empresas. Além disso, a intimação do próprio Musk foi realizada de forma inusitada, por meio do perfil oficial do tribunal na rede social Twitter, utilizando o feed de notícias.
2 MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas no novo código de processo civil brasileiro - precedenti, giurisprudenza e massime (“súmulas”) nel nuovo codice di procedura civile brasiliano. Revista de Processo | vol. 245/2015 | p. 333-349 | jul. 2015.
3 https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-intima-elon-musk-e-x-a-indicarem-representante-legal-em-ate-24-horas-sob-pena-de-suspensao-de-atividades-no-brasil/
4 https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-determina-transferencia-de-r-1835-milhoes-bloqueados-da-x-e-da-starlink-para-conta-da-uniao/