“Não roubarás”, este imperativo contido na lei mosaica impele a muitos moralmente, não somente no sentido de não subtrair bem alheio mediante violência ou grave ameaça, mas de sempre honrar seus compromissos tal como foram pactuados.
Ante este intento muitos dos tomadores de crédito e consumidores em geral sentem-se constrangidos a procurar instrumentos legais para repactuar suas dívidas, seja por meio de negociações, ou utilizando institutos legais benéficos como a recuperação judicial e a lei do superendividamento, que ao contrário do que muitos pensam não retirarão as dívidas, mas sim permitirão que elas sejam pagas.
Muitos destes consumidores temem duas realidades sobretudo: a reprovação moral da sociedade por não conseguir pactuar suas dívidas preferindo abraçar o risco da insolvência absoluta, bem como, temem ter o nome sujo na praça bancária e não conseguirem mais crédito, que é indispensável para a sua atividade.
Entretanto, diante destes temores, um questionamento deve ser feito: têm os bancos medo do não pagamento das dívidas?
Na última semana quando escrevi sobre o mercado internacional no artigo “Entre o brioche e o bife: O embate do acordo Mercosul-União Europeia” cuja leitura recomendo, o leitor certamente deve ter percebido que no que se refere às transações econômicas há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.
Assim como a França tem por trás de seu discurso ambientalista um interesse econômico, nas relações entre instituições financeiras e consumidores a situação igualmente se repete. E certamente os consumidores devem estar atentos a esta realidade quando se deparam diante de uma transação econômica onerosa que sempre o coloca numa posição de vulnerabilidade.
Diante deste fato intransponível é preciso observar que para responder à pergunta feita neste texto, antes é preciso compreender: os bancos ganham alguma coisa com a inadimplência?
Conforme estudo realizado pelo economista Joelson Sampaio e apresentado por Glauber do Carmo em obra coletiva, os dados revelam uma percepção clara dos ganhos das instituições financeiras em cenários de inadimplência. A pesquisa avaliou o lucro médio de bancos listados na bolsa de valores B3, como Alfa Financ, Itaú Unibanco, Bradesco, Santander BR, Nu Holdings, entre outros.
Entre dezembro de 2020 e dezembro de 2022, o lucro líquido das instituições financeiras variou significativamente, mas de forma surpreendente, a inadimplência não parece ter afetado diretamente a rentabilidade dessas instituições. O lucro começou em R$ 67 milhões em dezembro de 2020, caiu para R$ 21 milhões em março de 2021, mas rapidamente se recuperou, alcançando R$ 46 milhões em julho de 2021 e subindo para R$ 91 milhões em dezembro de 2021. Apesar de uma leve queda para R$ 28 milhões em abril de 2022, o lucro continuou sua trajetória ascendente, atingindo R$ 104 milhões em dezembro de 2022.
A inadimplência, por sua vez também apresentou evolução iniciando com o índice de 2,12% em dezembro de 2020 seguindo em reta ascendente atingindo o patamar de 3,00% em dezembro de 2022. Como se vê apesar do aumento dos índices de inadimplência, as instituições bancárias concomitantemente mantiveram a margem de lucro ascendente.
De igual modo, observa-se que, no mesmo período, o patrimônio líquido dos bancos, apesar do crescimento da inadimplência, passou de R$ 550 milhões em dezembro de 2020 para R$ 650 milhões em dezembro de 2022. O balanço patrimonial também revela que os ativos totais estavam em R$ 7 bilhões em dezembro de 2020 e quase atingiram R$ 8,55 bilhões em dezembro de 2022.
Assim, o estudo indica que, mesmo diante do aumento da inadimplência, as instituições financeiras têm experimentado um crescimento constante em seus lucros. O patrimônio líquido cresceu cerca de 20%, o lucro aumentou em 30% e os ativos totais cresceram em 42%.
Essa correlação comprova que mesmo diante de uma elevação nos índices de inadimplência, as instituições financeiras conseguiram preservar e até ampliar suas margens de lucro.
A correlação entre estes dois fatores aponta que o endividamento do consumidor na verdade é fonte de lucros para a atividade bancária, quanto maior a inadimplência maior o lucro. Conforme o professor Glauber do Carmo, promotor de Justiça, a correlação entre lucratividade e inadimplência é estatisticamente significativa, sendo descartada a possibilidade da relação não ser verdadeiras, podendo se afirmar que há uma relação direta com cerca de 99% de confiança.
Tais dados devem levar o leitor a refletir: será que o banco ao fazer aquele contrato que tanto tem me prejudicado esperava que eu realmente pagasse aquilo que pactuei ou ele estruturou o negócio de tal forma que eu não iria conseguir pagar?
Como disse anteriormente, há mais coisas nas relações financeiras do que sonham nossa vã filosofia, entretanto, munindo-me da filosofia de Baumann que não é vã, diferente da nossa, é possível perceber conforme aponta o pensamento do autor em sua obra Vida a Crédito que os bancos credores, em vez de quererem que seus devedores quitem suas dívidas, preferem que os débitos permaneçam abertos, permitindo que os juros sejam cobrados continuamente.
Isso acontece porque os juros se tornaram a principal fonte de lucro para essas instituições financeiras. Para os credores, o cliente que paga sua dívida de forma antecipada é visto como um "pesadelo", pois não gera mais receita para a instituição. Aqueles que tentam pagar suas dívidas de maneira regular ou que não gastam mais do que ganham são considerados menos vantajosos para os bancos, que dependem da "manutenção" das dívidas para assegurar seus lucros e os dos acionistas.
Ao contrário dos antigos credores, que se preocupavam em reaver o dinheiro emprestado em prazos fixos e não renováveis, os bancos modernos adotaram uma abordagem mais flexível, porém igualmente estratégica. Em vez de exigir o pagamento integral das dívidas, os bancos preferem manter seus devedores em um ciclo contínuo de endividamento, oferecendo novos créditos para quitar as dívidas antigas, com a promessa de que, assim, o cliente poderá até mesmo obter algum dinheiro extra.
Essa prática, que pode parecer benévola e amigável, na verdade, cria um sistema onde o cliente nunca consegue se livrar completamente da dívida, pois ele se vê constantemente à mercê da necessidade de contrair mais empréstimos para saldar os anteriores.
Baumann descreve essa abordagem como uma mudança de postura dos bancos, que, ao invés de pressionarem pela quitação das dívidas, oferecem soluções que garantem a perpetuação do endividamento. A ideia de "bancos amigos", que sorriem e estão sempre prontos para oferecer mais crédito, é uma estratégia de marketing que mascara um sistema que, na realidade, visa o lucro contínuo com base na manutenção do endividamento. Essa prática gera um ciclo vicioso, no qual os clientes, constantemente estimulados a contraírem novas dívidas, acabam ficando presos a um sistema que beneficia apenas os bancos, e não sua estabilidade financeira.
O "devedor ideal", conforme Baumann, é aquele que nunca consegue quitar sua dívida integralmente, o que garante uma fonte constante de receita para as instituições. Indivíduos que possuem uma poupança e não fazem uso de cartões de crédito são considerados um alvo difícil de alcançar, sendo vistos como mercados inexplorados, prontos para serem "explorados" de forma lucrativa. Quando essas pessoas entram no sistema de empréstimos, elas se tornam "presas", já que escapar das dívidas se torna uma tarefa árdua. Aqueles que desejam quitar suas dívidas antes do prazo estipulado enfrentam grandes encargos, o que dificulta ainda mais a possibilidade de se libertarem da condição de devedor.
A chamada “contração do crédito” que estamos vivendo hoje não é resultado de um fracasso dos bancos, mas do êxito em transformar uma grande parte da população em devedores permanentes. A perpetuação do “estar endividado” foi estabelecida, criando um ciclo onde, para pagar as dívidas antigas, as pessoas precisam contrair novas. Hoje, é mais fácil do que nunca se tornar um devedor, mas sair dessa situação se torna uma tarefa quase impossível. Milhões de pessoas foram levadas a fazer dívidas, muitas vezes sem terem a capacidade de pagá-las.
Com isso não se quer fazer uma defesa do chavão popular “ladrão que rouba ladrão, 100 anos de perdão” advogando por uma inadimplência em massa, mas sim defende-se que os tomadores de crédito e consumidores e em geral percebam que antes da sua “falta” ao não conseguir pagar o que deve, há uma presença diretiva bancária que o conduziu intencionalmente a isso. Sim caro leitor, o banco quer o seu endividamento, quer lucrar com sua dor de cabeça.
Diante deste dolo o devedor não deve em nome do não roubar, deixar de procurar institutos que venham ao seu socorro e assim conseguir sair do sufoco, deve-se, no entanto, buscar defender seus interesses, na forma da lei, assim como o banco que, de maneira voraz, e por vezes ilegal, na persecução de seus interesses, desarmando de qualquer pudor moral.
O tomador de crédito também deve se recordar que na lei de Moisés não há somente o “não roubarás”, mas também se proíbe cobiçar as coisas alheias, e saibam: os bancos estão prontos e ávidos a cobiçar cada centavo que puderem arrancar dos seus devedores. O mercado também tem seu deu$, e ele não falou no Sinai.
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BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010
BAUMAN, Zygmunt. Vidas para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008
CARMO, Glauber S. Tabatinga do. A inadimplência, o superendividamento e o faturamento das instituições financeiras. In: BUZZI, Marco Aurélio Gastaldi; MARQUES, Claudia Lima; CABRAL, Trícia Navarro Xavier; ANDRADE, Juliana Loss de (org.). Superendividamento dos consumidores: aspectos materiais e processuais. São Paulo: Editora Foco, 2024. p. 429-438.