A ascensão das moedas virtuais, sustentada por tecnologias disruptivas como as DLTs - Distributed Ledger Technologies, inaugura um novo paradigma no Direito Tributário Internacional. Essa inovação tecnológica, que permeia a economia globalizada, impõe desafios de elevada complexidade aos sistemas tributários, sobretudo no que tange à identificação de fatos geradores, à mensuração da base de cálculo e à jurisdição competente para tributação. O cenário é agravado pela celeridade com que os criptoativos foram incorporados às práticas comerciais e financeiras, contrastando com a lentidão na adaptação dos regimes fiscais existentes.
O contexto das reuniões do G20, que congregam as maiores economias mundiais, é oportuno para aprofundar discussões técnicas sobre o tratamento tributário das moedas virtuais e a harmonização de normas em escala global. O G20, em cooperação com a OCDE, tem reiterado a necessidade de enfrentar os desafios fiscais impostos pela digitalização da economia, destacando o papel das moedas virtuais no incremento de riscos de evasão fiscal, na erosão da base tributária e no financiamento ilícito. A ausência de uma definição jurídica uniforme e de padrões globais de tributação, aliados à volatilidade e à pseudoanominidade inerentes aos criptoativos, exacerba as dificuldades enfrentadas pelos legisladores e administradores tributários.
A digitalização da economia global transformou profundamente as dinâmicas de geração e circulação de riqueza, ampliando o alcance de fenômenos como a descentralização financeira e o uso de ativos intangíveis em transações econômicas. As moedas virtuais, produtos dessa transformação, emergem como ativos desmaterializados que transcendem fronteiras e desafiam as estruturas fiscais tradicionais. Essas moedas, ao desconsiderarem a intermediação de instituições financeiras tradicionais, criam uma rede paralela de circulação de valores, fragmentando os sistemas tributários que se baseiam em relações jurídicas claramente delimitadas por território.
Esse cenário exige um debate aprofundado sobre a eficácia dos conceitos jurídicos tradicionais para abarcar os fenômenos da economia digital, tais como a territorialidade fiscal, a materialidade do fato gerador e a mensuração do lucro tributável. A ausência de um marco normativo coeso para a tributação de moedas virtuais resulta em tratamento assimétrico entre jurisdições, fomentando lacunas exploráveis para planejamento fiscal agressivo e evasão tributária.
1. Histórico do tratamento regulatório e tributário pelo G20 e pela OCDE
Desde 2015, o G20, em parceria com a OCDE, tem buscado direcionar os esforços regulatórios e tributários para a digitalização da economia. Os relatórios produzidos no âmbito do projeto BEPS - Base Erosion and Profit Shifting destacaram os impactos das moedas virtuais na mobilidade de capitais e na desmaterialização das bases econômicas, identificando a necessidade de adaptação normativa.
A Cúpula de Buenos Aires, em 2018, consolidou o compromisso do G20 com a regulamentação das moedas virtuais, enfatizando a necessidade de mecanismos que assegurem a integridade do sistema tributário internacional frente à opacidade transacional promovida por criptoativos. Já em 2020, o relatório Taxing Virtual Currencies: An Overview of Tax Treatments and Emerging Tax Policy Issues, da OCDE, delineou os principais desafios fiscais e propôs medidas de coordenação multilateral. A ausência de uniformidade regulatória, entretanto, persiste como obstáculo à implementação eficaz das propostas, criando um ambiente propício à arbitragem fiscal.
2. Impacto das DLT - tecnologias de contabilidade distribuída nas políticas fiscais
As DLTs, como o blockchain, são a infraestrutura tecnológica subjacente às moedas virtuais, operando por meio de registros distribuídos, imutáveis e verificáveis. Embora essa tecnologia ofereça maior transparência nas transações, a descentralização elimina a presença de intermediários financeiros que tradicionalmente desempenham um papel crucial na retenção e reporte de tributos.
A dificuldade em rastrear transações realizadas por meio de DLTs afeta a capacidade dos Estados de aplicar normas de direito tributário, especialmente na identificação de contribuintes e na alocação de receitas tributárias em operações transfronteiriças. A incerteza jurídica acerca do local de ocorrência do fato gerador – uma característica intrínseca das transações com criptoativos – torna-se um problema jurídico-fiscal complexo, especialmente para tratados internacionais de bitributação.
Além disso, a capacidade das DLTs de suportar contratos inteligentes (smart contracts) desafia a aplicação de conceitos tributários clássicos, como o conceito de renda e o momento do fato gerador. O uso de criptoativos em operações financeiras de alta frequência, como os derivativos automatizados, amplifica os desafios para a mensuração da base tributária e a verificação de compliance fiscal.
3. Caracterização das moedas virtuais
Os criptoativos, como categoria ampla, englobam ativos digitais baseados em DLTs, que utilizam criptografia para assegurar transações e validar a propriedade. Dentro desse universo, as moedas virtuais destacam-se como instrumentos financeiros que transcendem as funções convencionais de pagamento, adquirindo características de especulação, reserva de valor e mecanismo de transferência.
A tipologia dos criptoativos inclui três categorias principais:
- Tokens de pagamento: Utilizados primordialmente como meio de troca, são mais comuns em transações peer-to-peer e apresentam desafios tributários relacionados à volatilidade e à anonimização das operações.
- Tokens de utilidade: Conferem acesso a bens ou serviços, sendo frequentemente vinculados a operações de ICOs - Initial Coin Offerings, cuja tributação pode variar de acordo com sua natureza híbrida.
- Tokens de segurança: Representam direitos contratuais, como ações ou dívidas, atraindo a aplicação de regimes tributários específicos para instrumentos financeiros.
Essa classificação é permeada pela interseção de características entre os tipos de tokens e pela mutabilidade de suas finalidades econômicas ao longo do tempo, o que impõe desafios interpretativos aos administradores fiscais na aplicação de normas específicas.
Enquanto as moedas fiduciárias são emitidas por autoridades centrais e gozam de curso forçado, as moedas virtuais carecem de respaldo estatal e de reconhecimento jurídico amplo. Sua aceitação no comércio e nas finanças é voluntária e fragmentada, dificultando sua equiparação às moedas tradicionais para fins fiscais.
A ausência de um emissor soberano resulta na desmaterialização da base monetária, amplificando as dificuldades para o estabelecimento de uma métrica consistente de valor. Além disso, as moedas virtuais operam fora do controle dos sistemas financeiros regulados, o que agrava os riscos de lavagem de dinheiro, evasão fiscal e outras práticas ilícitas. Apesar de sua atratividade em razão da rapidez transacional e do baixo custo operacional, as moedas virtuais apresentam alta volatilidade e dependem da confiança no protocolo tecnológico subjacente.
A qualificação jurídica dos criptoativos permanece uma questão central no Direito Tributário. A diversidade de abordagens adotadas pelos países – como a caracterização de moedas virtuais como ativos intangíveis, commodities ou representações digitais de valor – revela a ausência de um consenso internacional, expondo as vulnerabilidades do sistema tributário global a estratégias de arbitragem fiscal.
Essa indefinição afeta diretamente a aplicação de normas sobre renda, propriedade e consumo, gerando conflitos de competência tributária entre jurisdições e dificultando a aplicação de tratados internacionais. A falta de clareza sobre o status jurídico das moedas virtuais também interfere na delimitação de obrigações tributárias acessórias, como o reporte de transações e o registro de operações em exchanges.
4. Eventos tributáveis no ciclo de vida das moedas virtuais
A criação de moedas virtuais enseja um debate tributário que transcende a mera identificação de fatos geradores, adentrando o campo da qualificação jurídica dos rendimentos auferidos. No caso da mineração, onde novos tokens são gerados como contrapartida por atividades computacionais intensivas, há uma tendência em se qualificar os rendimentos como lucros de capital ou receita ordinária, dependendo da natureza da operação. Jurisdições que tratam a mineração como atividade empresarial usualmente admitem a dedução de despesas operacionais, como consumo energético e custos com hardware, reconhecendo sua essencialidade na produção econômica. Essa abordagem, contudo, depende da caracterização do minerador como profissional ou amador, o que impacta diretamente na forma de incidência tributária.
No mecanismo de staking, que se baseia na validação de transações mediante bloqueio de ativos digitais previamente detidos, o retorno financeiro aproxima-se de um rendimento de investimento vinculado ao capital, o que implica sua tributação como rendimento de capital em diversas jurisdições. Contudo, a ausência de uma relação de contraprestação evidente em algumas configurações do staking suscita questionamentos sobre a natureza jurídica do rendimento, especialmente em cenários onde os ganhos derivam de algoritmos e não de uma atividade direta do contribuinte.
Os airdrops, enquanto instrumentos de distribuição gratuita de criptoativos, desafiam a concepção clássica de aquisição de bens para fins fiscais. A interpretação predominante qualifica os criptoativos recebidos como rendimento tributável no momento da aquisição, salvo nos casos em que os valores sejam insignificantes ou diretamente vinculados à atividade pessoal do destinatário, como em campanhas promocionais. A ausência de uma contrapartida clara, porém, continua sendo objeto de interpretações divergentes, especialmente quanto à valorização subsequente desses ativos.
O armazenamento de criptoativos, por meio de carteiras digitais (custodiais ou não custodiais), usualmente não configura evento tributável, mas implica desafios jurídicos em relação à mensuração de eventual valorização acumulada. A natureza intangível e transnacional dos criptoativos dificulta o rastreamento patrimonial, sendo frequente a evasão fiscal pela ocultação de ativos em jurisdições com supervisão fiscal deficiente.
As transferências de criptoativos entre carteiras digitais ou entre usuários são particularmente desafiadoras do ponto de vista fiscal. Embora, em regra, tais operações não impliquem ganho de capital imediato, algumas jurisdições consideram que a troca de criptoativos entre diferentes tipos (como permutas) ou entre plataformas estrangeiras pode configurar alienação tributável. A ausência de um consenso normativo global agrava o problema, especialmente no contexto de operações internacionais realizadas por meio de exchanges descentralizadas, onde a supervisão fiscal é limitada.
A alienação de criptoativos, seja para aquisição de moeda fiduciária, seja por meio de permuta, é amplamente reconhecida como um evento tributável em regimes fiscais modernos. A maioria das jurisdições adota o valor de mercado do criptoativo no momento da alienação como base de cálculo para a apuração de ganhos de capital, aplicando os princípios gerais de tributação sobre bens intangíveis. A definição do custo de aquisição, no entanto, apresenta desafios técnicos, especialmente em casos de múltiplas aquisições ao longo do tempo. Sistemas de avaliação como FIFO e pooling têm sido implementados para uniformizar a tributação, mas permanecem lacunas quanto à aplicabilidade em cenários de valorização expressiva.
O uso de criptoativos como meio de pagamento, por sua vez, impõe obrigações tributárias duplas. O comprador enfrenta a apuração de eventuais ganhos de capital pela alienação do criptoativo, enquanto o vendedor deve converter o valor recebido em moeda fiduciária e reportá-lo como receita ordinária, seguindo as normas tributárias aplicáveis a bens e serviços. Essa dualidade tem gerado críticas em relação à carga tributária indireta aplicada sobre tais transações.
5. Tratamentos tributários em diferentes jurisdições
A tributação da criação de moedas virtuais varia conforme a natureza da atividade e a jurisdição fiscal em questão. Na mineração, frequentemente qualificada como atividade produtiva, os rendimentos obtidos são tratados como receita ordinária ou como lucro de capital, dependendo da frequência e do volume da operação. Estados como a Noruega e o Reino Unido tributam os ganhos no momento da criação dos tokens, considerando seu valor de mercado como a base tributável, enquanto outros, como a Austrália, condicionam a tributação ao momento de alienação, caso a mineração não configure uma atividade empresarial.
O staking, dada sua vinculação direta aos ativos previamente detidos, frequentemente atrai a incidência de impostos sobre rendimentos de capital. Jurisdições como a Finlândia reconhecem as recompensas obtidas por staking como rendimento patrimonial, enquanto outras, como os Estados Unidos, tratam a atividade sob o mesmo enfoque da mineração, impondo tributação no momento do recebimento do ativo.
O tratamento fiscal das alienações de criptoativos geralmente segue os princípios de tributação sobre ganhos de capital, mas as metodologias de apuração do custo base variam significativamente entre os Estados. O Reino Unido adota o pooling para agrupar custos associados a um mesmo tipo de criptoativo, enquanto os Estados Unidos permitem a identificação específica dos tokens alienados, desde que devidamente documentada, aplicando o FIFO como método padrão na ausência de registros detalhados.
As diferenças de regime se acentuam na tributação de indivíduos e empresas. Em muitas jurisdições, as empresas são obrigadas a incluir os ganhos com criptoativos em suas receitas operacionais, enquanto os indivíduos podem se beneficiar de isenções ou alíquotas reduzidas em casos de longos períodos de detenção.
As moedas virtuais integram, na maioria dos sistemas tributários avançados, o patrimônio do contribuinte para fins de tributação de herança e doações. No Reino Unido, os criptoativos são considerados ativos patrimoniais sujeitos à incidência de imposto sobre heranças, enquanto na Coreia do Sul já se reconhece sua natureza tributável, ainda que as diretrizes específicas permaneçam em desenvolvimento.
No caso de doações, a apuração de eventual ganho de capital no momento da transferência depende do valor de mercado atribuído ao ativo. Nos Estados Unidos, doações inferiores a um valor limite estão isentas, mas requerem registros detalhados para fins de auditoria fiscal. A ausência de harmonização normativa sobre a mensuração do valor de mercado e a definição de propriedade em criptoativos aumenta a complexidade do tratamento tributário, expondo lacunas na regulamentação internacional.
6. Impostos sobre valor agregado (VAT/GST) e moedas virtuais
O caso Skatteverket v. Hedqvist, julgado pelo ECJ - Tribunal de Justiça da União Europeia, é um marco na interpretação da tributação sobre moedas virtuais no contexto do imposto sobre VAT - valor agregado. O ECJ entendeu que a troca de moedas virtuais por fiduciárias, apesar de não configurar uma transação envolvendo moeda oficial, cumpre função análoga à de operações cambiais e, portanto, enquadra-se na isenção prevista pelo artigo 135(1)(e) da diretiva do VAT.
Essa decisão consolidou o entendimento de que as transações com moedas virtuais, desde que realizadas com propósito econômico, são serviços sujeitos ao VAT, mas isentos devido à sua natureza financeira. O raciocínio utilizado pelo ECJ enfatizou a neutralidade fiscal e a uniformidade na aplicação do VAT, evitando distorções no mercado interno da União Europeia. Contudo, a interpretação deixou lacunas significativas no que diz respeito a outras atividades associadas a criptoativos, como mineração, serviços de custódia e operações com tokens que transcendem as funções de meio de troca.
No panorama internacional, há disparidade no tratamento tributário das transações com moedas virtuais para fins de VAT ou GST. Em algumas jurisdições, como a Austrália, as moedas virtuais são equiparadas a instrumentos financeiros para efeitos de GST, isentando-as das obrigações tributárias que incidem sobre bens e serviços. Essa abordagem busca evitar a dupla tributação que ocorreria se cada transação fosse tratada como uma permuta onerosa.
Por outro lado, há países que adotam uma postura mais restritiva, limitando isenções a transações específicas ou qualificando moedas virtuais como ativos intangíveis, o que implica a incidência do VAT em circunstâncias mais amplas. A ausência de consenso internacional sobre a classificação jurídica das moedas virtuais agrava a fragmentação nas abordagens, incentivando práticas de arbitragem fiscal e dificultando a harmonização regulatória.
Os serviços associados a moedas virtuais, como exchanges, carteiras digitais e mineração, representam desafios distintos no campo tributário. Exchanges centralizadas, que intermedeiam transações entre usuários, são frequentemente tratadas como prestadoras de serviços financeiros e, em várias jurisdições, estão isentas de VAT. Contudo, exchanges descentralizadas, que não possuem uma entidade operadora, permanecem em uma zona cinzenta jurídica, uma vez que não há um ente claro responsável pela prestação de serviços.
A mineração, por sua vez, é frequentemente tratada como atividade fora do escopo do VAT, sob o argumento de que não há uma relação jurídica entre o minerador e os beneficiários dos serviços prestados. No entanto, a tributação pode incidir sobre os insumos utilizados na mineração, como energia elétrica, o que representa uma carga indireta significativa para os operadores. Serviços de custódia e carteiras digitais, quando remunerados, tendem a ser tributados como serviços gerais, mas a variabilidade na aplicação prática evidencia a necessidade de regulamentação mais clara.
7. Desafios e lacunas no tratamento tributário
A volatilidade das moedas virtuais impõe dificuldades substanciais na avaliação de sua base tributável. Essa instabilidade de preços, aliada à inexistência de um padrão global para definição de valor de mercado, prejudica tanto a apuração de ganhos de capital quanto a incidência de tributos indiretos. A multiplicidade de exchanges e a variação de cotações entre elas intensificam essas incertezas.
Algumas jurisdições, como o Reino Unido, adotam o método de pooling, no qual os custos de aquisição de criptoativos são consolidados em um único grupo por tipo de ativo, facilitando o cálculo de ganhos de capital. Nos Estados Unidos, é permitido o uso de métodos como FIFO ou identificação específica, desde que o contribuinte mantenha registros robustos. Tais métodos refletem esforços para lidar com a complexidade, mas a diversidade de abordagens destaca a falta de uniformidade regulatória, expondo vulnerabilidades nos sistemas tributários globais.
Eventos como hard forks e airdrops levantam questões intrincadas sobre a caracterização de eventos tributáveis. Em um hard fork, a criação de uma nova moeda digital, derivada de outra já existente, frequentemente resulta em debates sobre o momento do fato gerador. Algumas jurisdições consideram o valor da nova moeda como custo base zero, tributando-a apenas no momento de sua alienação. Essa abordagem, comum na União Europeia, contrasta com a política adotada nos Estados Unidos, onde o recebimento de tokens em um fork pode ser tratado como rendimento ordinário, gerando uma obrigação tributária imediata.
Os airdrops, que envolvem a distribuição gratuita de criptoativos, enfrentam desafios similares. A ausência de um valor de mercado claro no momento do recebimento dificulta a apuração tributária. Em alguns casos, os valores são considerados isentos até que os ativos sejam alienados, enquanto em outros são tributados como rendimentos ordinários, com base em estimativas iniciais de valor. Essa disparidade reflete a necessidade de maior clareza normativa para lidar com eventos dessa natureza.
A pseudoanominidade das transações com moedas virtuais é um catalisador para práticas de evasão fiscal, especialmente em jurisdições que carecem de estruturas robustas de fiscalização. A ausência de intermediários financeiros tradicionais nas transações dificulta a identificação de contribuintes, reduzindo a eficácia das obrigações de reporte e compliance.
Iniciativas internacionais, como a inclusão de moedas virtuais no escopo do CRS - Common Reporting Standard pela OCDE, representam esforços para mitigar tais problemas. No entanto, a implementação global dessas normas enfrenta resistência, particularmente de jurisdições que lucram com fluxos financeiros opacos. A regulamentação de exchanges e a exigência de KYC - know your customer têm avançado, mas a proliferação de exchanges descentralizadas e de carteiras auto-hospedadas continua a oferecer um terreno fértil para a evasão fiscal.
A cooperação internacional e o fortalecimento de mecanismos de troca de informações, aliados à aplicação de tecnologia avançada para rastreamento de transações, são indispensáveis para mitigar os riscos de evasão e fomentar a integridade fiscal em um ambiente econômico cada vez mais digitalizado.
8. Inovações e desafios emergentes em moedas virtuais
As stablecoins inserem uma camada de complexidade no campo tributário devido à sua concepção híbrida, que combina características de moeda digital com a estabilidade proporcionada por ativos de lastro. Sua utilização crescente em transações transnacionais, particularmente em jurisdições com sistemas financeiros fragilizados, levanta questões quanto à classificação jurídica e ao tratamento tributário. A estabilidade relativa dos valores facilita sua aceitação em transações comerciais, mas também torna as stablecoins potenciais veículos de planejamento tributário agressivo, devido à opacidade no reporte de transações e à fragmentação regulatória.
Do ponto de vista fiscal, a ausência de uniformidade no reconhecimento dessas moedas como instrumentos financeiros, ativos de investimento ou moeda de troca cria disparidades significativas na tributação. Além disso, o risco sistêmico associado à falta de supervisão rigorosa sobre os emissores e suas reservas de lastro torna premente a necessidade de regulamentação integrada, que abarque tanto os aspectos tributários quanto os de estabilidade financeira.
As CBDCs representam um esforço estratégico de governos para recuperar controle em um cenário financeiro digital dominado por iniciativas privadas. Diferentemente das moedas virtuais descentralizadas, as CBDCs estão plenamente inseridas no sistema regulatório e fiscal tradicional, sendo emitidas e geridas por bancos centrais.
Sob o prisma tributário, as CBDCs oferecem um potencial transformador, especialmente na simplificação de tributos indiretos, como VAT/GST. A rastreabilidade intrínseca das transações facilita a fiscalização em tempo real, reduzindo lacunas de compliance e aumentando a eficiência na arrecadação. Contudo, o impacto distributivo dessas moedas não pode ser ignorado. A introdução de CBDCs pode modificar profundamente as bases econômicas tradicionais, impondo desafios adicionais na alocação de receitas tributárias entre jurisdições e no combate à informalidade.
O ecossistema de DeFi - Finanças Descentralizadas revoluciona o paradigma financeiro ao eliminar intermediários tradicionais em operações como crédito, seguros e investimentos. Entretanto, essa descentralização traz desafios inéditos ao Direito Tributário, pois a ausência de uma contraparte central dificulta a identificação do contribuinte e a localização do fato gerador.
As operações de DeFi frequentemente utilizam contratos inteligentes, que são executados automaticamente no blockchain. Essa automação desafia os conceitos fiscais clássicos de renda, alienação e serviço, tornando necessário o desenvolvimento de critérios específicos para determinar a base tributável e o momento da incidência fiscal. Adicionalmente, a volatilidade dos tokens gerados ou utilizados nas plataformas de DeFi, bem como sua natureza especulativa, aumenta a complexidade na apuração de ganhos de capital.
9. Implicações para políticas públicas
O caráter intrinsecamente transnacional das moedas virtuais exige uma coordenação global de políticas fiscais para mitigar os riscos de arbitragem regulatória e evasão tributária. Uma abordagem fragmentada, na qual cada jurisdição adota critérios divergentes, apenas reforça as assimetrias já existentes e enfraquece os sistemas tributários nacionais.
A criação de um arcabouço normativo global, liderado pela OCDE em parceria com o G20, é essencial para a harmonização de conceitos como fato gerador, base de cálculo e jurisdição tributária em operações com moedas virtuais. Além disso, a cooperação multilateral deve priorizar a inclusão de países em desenvolvimento, que frequentemente carecem de infraestrutura para lidar com a complexidade tributária inerente a esses ativos.
A harmonização tributária em relação às moedas virtuais requer o desenvolvimento de padrões jurídicos internacionais que ofereçam clareza e previsibilidade aos operadores econômicos. Isso inclui a criação de normas uniformes para a classificação de criptoativos, a delimitação de eventos tributáveis e a regulamentação de plataformas descentralizadas.
A implementação de mecanismos multilaterais, como um sistema global de reporte semelhante ao CRS - Common Reporting Standard, é fundamental para garantir a transparência em transações transnacionais. Além disso, a revisão de tratados de bitributação deve incluir dispositivos específicos para prevenir lacunas na tributação de criptoativos e facilitar a resolução de conflitos de jurisdição.
A formulação de políticas fiscais para moedas virtuais deve equilibrar inovação e arrecadação, incentivando o crescimento econômico sem comprometer a integridade do sistema tributário. Isso implica o reconhecimento da singularidade das moedas virtuais e o desenvolvimento de soluções adaptadas à sua natureza descentralizada e volátil.
Recomenda-se a criação de programas de capacitação para autoridades fiscais, focados no uso de tecnologias como análise de blockchain e inteligência artificial, a fim de aumentar a eficácia na fiscalização e no combate à evasão fiscal. Além disso, políticas de incentivo à conformidade, como regimes simplificados de reporte para pequenos investidores, podem reduzir a complexidade e fomentar a adesão voluntária ao sistema tributário.
10. Conclusão
A crescente relevância das moedas virtuais impõe desafios que extrapolam as fronteiras dos sistemas fiscais tradicionais. Sua volatilidade, pseudoanominidade e natureza descentralizada dificultam a aplicação de conceitos tributários clássicos, exigindo uma reinterpretação de normas e a adoção de abordagens inovadoras.
Por outro lado, as moedas virtuais também oferecem oportunidades para modernizar a administração tributária, promovendo a adoção de tecnologias avançadas e a internacionalização de padrões regulatórios. A colaboração entre Estados é imperativa para aproveitar essas oportunidades enquanto se mitiga os riscos associados.
O equilíbrio entre inovação e regulação é crucial para o desenvolvimento de um regime fiscal justo e funcional. Regulamentações excessivas podem sufocar o potencial transformador das moedas virtuais, enquanto a falta de supervisão fomenta práticas abusivas que comprometem a arrecadação e a confiança pública.
Esse equilíbrio deve ser alcançado por meio de políticas fiscais flexíveis, mas robustas, que incentivem a conformidade voluntária e a transparência, ao mesmo tempo em que promovam a competitividade e a inclusão financeira.
Os próximos passos para o desenvolvimento de políticas fiscais incluem a expansão da cooperação multilateral, o fortalecimento de capacidades tecnológicas das autoridades fiscais e a implementação de mecanismos de monitoramento global. Além disso, é indispensável fomentar a pesquisa sobre o impacto econômico das moedas virtuais, buscando compreender não apenas sua influência nos sistemas fiscais, mas também suas interações com as políticas monetárias e a estabilidade financeira global.
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1 Para leitura do documento na íntegra acesse os sites: https://www.oecd-ilibrary.org/taxation/taxing-virtual-currencies_e29bb804-en e https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/e29bb804-en.pdf?expires=1731884393&id=id&accname=guest&checksum=68C65118FE1899737A546C1A2CD80D94