O objetivo do presente artigo é abordar a aplicação do CDC concernente aos contratos de planos de saúde administrados por entidades de autogestão. De forma introdutória, tratar-se-á dos termos relevantes para o assunto de forma objetiva.
A lei 9.656/98 dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. De acordo com o art. 1º, II, desta lei, operadora de plano de assistência à saúde é a pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa ou entidade de autogestão, que é o foco do presente artigo, responsável por operar o produto, serviço ou contrato, isto é, o plano privado de assistência à saúde.
As entidades de autogestão na área da saúde são responsáveis pela administração de planos de saúde, sem fins lucrativos. As referidas entidades se baseiam na solidariedade, sendo criadas e administradas pela própria instituição. Na autogestão, os beneficiários participam ativamente da gestão do plano devido ao controle que realizam referente aos serviços oferecidos de saúde.
A ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar também regula as entidades de autogestão, tendo em vista que todos os planos de saúde no Brasil são supervisionados pela agência citada.
A lei 9.656/98 disciplina que o CDC se aplica subsidiariamente, senão vejamos:
Art. 35-G. Aplicam-se subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta lei as disposições da lei 8.078, de 1990
O erro é disciplinar que a aplicação é subsidiária, tendo em vista que deveria ser complementar. Quando se fala de aplicação subsidiária, compreende-se que o uso do CDC acontecerá somente em caso de lacuna normativas, enquanto a complementar implicaria na aplicação simultânea do CDC com a lei 9.656/98, tratando aspectos que não são necessariamente regulados pela lei dos planos de saúde, o que ocasionaria uma função mais abrangente do CDC.
A súmula 608 do STJ limitou a incidência do CDC nas relações entre as operadoras de planos privados de assistência à saúde, pois “Aplica-se o CDCaos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
No REsp 1.285.483, foi decidido que o CDC não se aplica as referidas entidades porque não existe relação de consumo, observando-se que as empresas de autogestão não podem oferecer seus planos no mercado de consumo, visto que, descaracterizaria a modalidade adotada, ou seja, sem fins lucrativos, vejamos a ementa:
RECURSO ESPECIAL. ASSISTÊNCIA PRIVADA À SAÚDE. PLANOS DE SAÚDE DE AUTOGESTÃO. FORMA PECULIAR DE CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO. PRODUTO NÃO OFERECIDO AO MERCADO DE CONSUMO. INEXISTÊNCIA DE FINALIDADE LUCRATIVA. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO CONFIGURADA. NÃO INCIDÊNCIA DO CDC.
- A operadora de planos privados de assistência à saúde, na modalidade de autogestão, é pessoa jurídica de direito privado sem finalidades lucrativas que, vinculada ou não à entidade pública ou privada, opera plano de assistência à saúde com exclusividade para um público determinado de beneficiários.
- A constituição dos planos sob a modalidade de autogestão diferencia, sensivelmente, essas pessoas jurídicas quanto à administração, forma de associação, obtenção e repartição de receitas, diverso dos contratos firmados com empresas que exploram essa atividade no mercado e visam ao lucro.
- Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, por inexistência de relação de consumo.
- Recurso especial não provido.
(REsp 1.285.483/PB, relator ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 22/6/16, DJe de 16/8/16.)
Agora, vejamos um trecho do V. acórdão
Utilizando-me das palavras do eminente Ministro Massami Uyeda, retiradas do precedente citado alhures, o “tratamento legal a ser dado na relação jurídica entre os associados os planos de saúde de autogestão, os chamados planos fechados, não pode ser o mesmo dos planos comuns, sob pena de se criar prejuízos e desequilíbrios que, se não inviabilizarem a instituição, acabarão elevando o ônus dos demais associados, desrespeitando normas e regulamentos que eles próprios criaram para que o plano se viabilize. Aqueles que seguem e respeitam as normas do plano arcarão com o prejuízo, pois a fonte de receita é a contribuição dos associados acrescida da patronal ou da instituidora”. (REsp 1121067/PR, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, 3ª TURMA, julgado em 21/06/11, DJe 03/02/12)
Destarte, afastou-se a incidência do CDC em relação aos planos de saúde administrados por entidades de autogestão.
Agora, é relevante ver um posicionamento diferente, apesar de ser anterior ao julgado acima. No Recurso Especial 519.310-SP[1], fora demonstrado que não é possível afastar a incidência do CDC porque em sociedade civil filantrópica se fins lucrativos devido a atividade no mercado de consumo, mediante remuneração.
Ademais, enquadra-se como fornecedor a pessoa jurídica de direito privado que desenvolve atividade de prestação de serviços (art. 3º do CDC).Outrossim, o §2º do art. 3.º do CDC ensina que “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Percebe-se que existe remuneração nas relações contratuais de saúde concernentes às entidades de autogestão.
Excluir a incidência em relação as entidades citadas prejudica o consumidor, que é a parte vulnerável da relação consumerista. A vulnerabilidade deste se trata de presunção absoluta de fraqueza ou debilidade do consumidor no mercado, justificando a existência de normas de proteção e orientar sua aplicação na relação de consumo[2].
No REsp 519.310-SP, a Ministra Nancy Andrighi demonstrou que a natureza jurídica da operadora de plano de saúde não influencia na qualificação da pessoa jurídica de direito privado como fornecedora de serviços. É evidente a existência de contraprestação, isto é, a contribuição recebida pelos associados, que é revertida em benefícios, sendo clara a relação de consumo, pois a contribuição se enquadra como remuneração pelos serviços de assistência à saúde prestados.
A lei 14.454/2022 alterou a lei 9.656/1998 para demonstrar a incidência simultânea do CDC, vejamos:
Art. 1º Submetem-se às disposições desta lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições (Redação dada pela lei 14.454, de 22).
É cristalina a aplicação do CDC a todos os contratos de plano de saúde, incluindo nos regulados por entidades de autogestão. Consequentemente, ocorreu a revogação tácita do art. 35-G (abordado no início do presente artigo).
A respeito da Súmula 608 do STJ, não está mais de acordo com o atual ordenamento jurídico, tendo em vista que o art. 1º da lei dos planos de saúde foi alterada. Nesse diapasão, em caso de conflito entre as normas do CDC e as específicas dos planos de saúde, a normais mais favorável a consumidor deve prevalecer.
A alteração legal feita pela lei 14.454/22 representa uma ampliação dos direitos dos consumidores de planos de saúde. Espera-se que as operadoras de planos de saúde se adaptem a nova realidade legislativa, que visa garantir maior segurança aos consumidores (vulnerabilidade).
Em virtude do que foi abordado, a alteração na lei 9.656/1998, promovida pela lei 14.454/22, determinou a aplicação simultânea do Código de Defesa do Consumidor aos planos de saúde, incluindo os administrados por entidades de autogestão. Destarte, revogou-se a aplicação subsidiária prevista no art. 35-G, ampliando a proteção do consumidor, que passa a ter seus direitos assegurados de forma mais robusta. A mudança representa um avanço relevante na legislação, fortalecendo a vulnerabilidade do consumidor nas relações com operadoras de planos de saúde, e afastando a Súmula 608 do STJ, que restringia a aplicação do CDC às entidades de autogestão. A adaptação das operadoras a essa nova realidade será crucial para garantir maior transparência e segurança aos beneficiários desses planos.
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1 REsp 519.310/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/4/2004, DJ de 24/5/2004, p. 262.
2 MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de. (Org.). Direito do Consumidor: 30 anos do CDC. 1ª. Ed. São Paulo: Forense, 2020. 592 p. ISBN: 9788530991906