Migalhas de Peso

A inafastabilidade da jurisdição e a justiça multiportas: Caminhos para o acesso à ordem jurídica justa

O artigo discute o direito de acesso à justiça, o princípio da inafastabilidade da jurisdição e a evolução da justiça multiportas no Brasil, destacando métodos alternativos como mediação e conciliação.

10/11/2024

Introdução

O direito de acesso à justiça, consagrado no art. 5º, inciso XXXV, da CF/88, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Conhecido como o princípio da inafastabilidade da jurisdição, este dispositivo visa garantir que todos tenham o direito de buscar proteção judicial contra violações de direitos. Entretanto, à medida que a sociedade evolui, também surge a necessidade de reavaliar como essa garantia é praticada e de explorar métodos complementares que ofereçam uma resolução de conflitos mais eficaz, humana e acessível. É nesse contexto que emerge o conceito de justiça multiportas.

A justiça multiportas, consolidada no Brasil com a resolução 125 do CNJ em 2010, propõe uma abordagem ampliada ao direito de acesso à justiça, permitindo que os cidadãos busquem a resolução de seus conflitos por meio de diferentes métodos — judiciais e extrajudiciais. Como enfatiza Trícia Navarro, a justiça multiportas é uma “ressignificação do acesso à justiça”, ampliando-o para abarcar alternativas como mediação, conciliação e plataformas de resolução online. Neste artigo, exploraremos as implicações da inafastabilidade da jurisdição sob a perspectiva do sistema multiportas, analisando sua relação com o acesso à ordem jurídica justa e com a pacificação social.

Acesso à Justiça: Conceito e evolução

O conceito de acesso à justiça é amplamente analisado pelos juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que identificam três “ondas” que marcaram a evolução desse direito. A primeira onda focou na assistência judiciária aos menos favorecidos, garantindo representação legal a quem não pode pagar. A segunda onda buscou a representação dos interesses difusos, como os direitos do consumidor e do meio ambiente. Já a terceira onda, que consolidou uma visão mais ampla de acesso à justiça, propôs o uso de métodos alternativos de resolução de conflitos para responder de forma mais eficiente e adequada às complexas demandas sociais.

Cappelletti e Garth afirmam que “os juristas precisam agora reconhecer que as técnicas processuais servem à função social e que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada, e que qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal, tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva” (Cappelletti & Garth, 1978, p. 12). Essa passagem destaca a importância dos meios alternativos não apenas para o desafogamento do Judiciário, mas também como instrumentos que promovem a justiça material de forma mais ajustada às necessidades da sociedade.

A Ordem Jurídica Justa de Kazuo Watanabe

O jurista Kazuo Watanabe amplia esse conceito ao afirmar que o verdadeiro objetivo do acesso à justiça é viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. Ele argumenta que “não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. Deve-se pensar na ordem jurídica e nas respectivas instituições pela perspectiva do destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o programa do acesso à justiça traz à tona não apenas um programa de reforma, como também um método de pensamento” (Watanabe, 2009).

Historicamente, o acesso à ordem jurídica justa também teve raízes na Constituição do Império de 1824, que previa uma tentativa de reconciliação prévia ao processo judicial. O art. 161 dispunha que “sem se fazer constar que se tem tentado o meio da reconciliação, não se começa processo algum”, e o art. 162 instituía o juiz de paz como facilitador desse processo. Na Constituição atual, o juiz de paz mantém uma função conciliatória sem caráter jurisdicional, conforme o inciso II do art. 98, reforçando a importância da pacificação na resolução de conflitos.

Justiça Multiportas: Origens e implementação no Brasil

A origem do conceito de justiça multiportas remonta ao professor Frank Sander, que, em 1976, propôs quatro pilares para a efetiva implementação desse sistema: (i) a institucionalização dos meios alternativos de solução de conflitos; (ii) a triagem inicial realizada por um especialista para escolha do método mais adequado; (iii) a formação adequada dos profissionais, como advogados e mediadores; e (iv) uma política pública de conscientização e destinação de recursos para fortalecer esses métodos.

No Brasil, essa proposta foi implementada com a resolução 125/10 do CNJ, que instituiu a Política Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos. Essa resolução exige a criação dos CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, considerados unidades efetivas do Judiciário para promover a mediação e a conciliação. Para Trícia Navarro, essa resolução confere “um salto enorme na democratização da solução das controvérsias”, pois representa uma ampliação do direito de escolha das partes, permitindo que elas busquem o método mais apropriado para seus casos.

A institucionalização da justiça multiportas foi reforçada pelo novo CPC de 2015, que, em seu art. 165, estabelece a criação obrigatória dos centros judiciários de solução consensual de conflitos, promovendo a mediação e conciliação dentro da estrutura estatal. O CPC também prevê, no art. 167, a criação de câmaras privadas de mediação e conciliação, além de regulamentar a atuação de mediadores e conciliadores em contextos extrajudiciais, conforme estabelecido pela lei 13.140/15.

Além disso, como pontua Kazuo Watanabe, “o objetivo primordial dos meios alternativos de solução de conflitos não é solucionar a crise de morosidade pela qual o Poder Judiciário vem passando, com a mencionada possibilidade de redução dos processos, mas sim oferecer às partes meios efetivos e adequados à solução de seus conflitos de interesse, assegurando o acesso à justiça de forma mais ampla” (Watanabe, 2009, in Tribunal Multiportas). Essa perspectiva evidencia que o sistema multiportas não busca apenas reduzir a carga do Judiciário, mas fornecer soluções que atendam de maneira eficaz às necessidades das partes, garantindo-lhes um acesso justo e efetivo à resolução de conflitos.

Humanização e comunicação na Justiça Multiportas

Trícia Navarro enfatiza que um dos avanços mais importantes promovidos pela justiça multiportas é a humanização do tratamento dos conflitos, que antes era relegada ao segundo plano em prol de aspectos formais e procedimentais. Segundo ela, a justiça multiportas busca atender às particularidades objetivas e subjetivas das relações jurídicas conflituosas, priorizando o conflito em si, e não apenas o processo judicial (Navarro, 2020, p. 3).

Navarro também destaca a teoria do conflito e a importância da comunicação na resolução de disputas. Ela explica que “uma comunicação inadequada pode fazer surgir um conflito, do mesmo modo que uma comunicação apropriada pode ajudar a resolvê-lo”. Para tanto, a justiça multiportas incentiva o uso de comunicação não violenta, uma abordagem que promove a escuta ativa e a fala consciente, com o objetivo de contribuir para uma troca que atenda às necessidades dos interlocutores (Navarro, 2020, p. 10). Esse foco na comunicação eficaz ajuda a evitar “ruídos” que podem escalar para conflitos, promovendo a pacificação social.

Mudança de mentalidade e cultura de pacificação

Para Watanabe, a mudança de mentalidade dos operadores do direito é uma necessidade premente: “A mudança da mentalidade por parte de todos os atores do mundo jurídico que possibilite a perfeita percepção dessa nova realidade é a exigência mais premente da atualidade” (Watanabe, 2009, p. 49). No Brasil, um grande obstáculo para a adoção de meios consensuais de solução de conflitos é justamente a formação acadêmica, que é voltada à solução contenciosa e adjudicada.

A implementação da justiça multiportas depende da capacitação de juízes, advogados e mediadores, bem como de uma conscientização ampla sobre os benefícios da cultura de pacificação. O CNJ lançou um movimento pela conciliação para conscientizar a sociedade sobre esses métodos, incentivando uma mudança gradual da “cultura da sentença” para a “cultura da pacificação”. Esse movimento, segundo Watanabe, representa uma transição essencial para uma justiça que se preocupa mais com a pacificação do que com a simples resolução contenciosa.

A importância dos meios consensuais para a pacificação social

Watanabe reforça que “a solução do conflito, na medida do possível, deve preservar a coexistência das pessoas envolvidas com a continuidade das relações entre elas existentes”. Esse tipo de solução só é possível com métodos consensuais, como a mediação e a conciliação, onde as partes participam diretamente da resolução do conflito. Esse envolvimento direto permite que se alcance uma solução mais adequada, pois as partes conhecem melhor suas próprias necessidades e possibilidades.

Além disso, ele afirma que “os meios consensuais de solução de conflitos fazem parte do amplo e substancial conceito de acesso à justiça, sendo critérios mais apropriados do que a sentença em certas situações, pela possibilidade de adequação da solução à peculiaridade do conflito, sua natureza diferenciada e as necessidades especiais das partes envolvidas” (Watanabe, 2009, p. 82).

Inafastabilidade da jurisdição e pacificação social

Um ponto fundamental é que a justiça multiportas não busca afastar o direito de ação. O princípio da inafastabilidade da jurisdição assegura que o acesso ao Judiciário estará sempre disponível para aqueles que precisam dele. Contudo, o art. 3º, parágrafo 2º do CPC, estabelece que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, indicando que o acesso à justiça pode incluir algumas etapas preliminares consensuais.

Navarro argumenta que essa abordagem deve ser compreendida como uma etapa de pacificação social, promovendo o diálogo e buscando uma solução mais adequada para as partes. Esse enfoque favorece um tratamento mais humanizado e democrático dos conflitos, permitindo que a jurisdição se concentre nos casos em que a atuação judicial seja realmente indispensável.

Considerações finais

A justiça multiportas representa uma evolução significativa do conceito de acesso à justiça. Ao promover métodos alternativos e consensuais de resolução de conflitos, esse sistema valoriza a pacificação social, atende às especificidades das partes envolvidas e racionaliza o uso do Poder Judiciário. Conforme ressaltado por Cappelletti, Watanabe e Navarro, o acesso à justiça vai além do simples ingresso no Judiciário; trata-se de garantir uma ordem jurídica justa, que seja efetiva, tempestiva e adequada.

O modelo de justiça multiportas não compromete a inafastabilidade da jurisdição, mas fortalece a democracia e a dignidade das partes, oferecendo-lhes escolhas e promovendo uma cultura de paz. Em última análise, esse sistema reflete um compromisso com uma justiça que não só resolve conflitos, mas também contribui para uma sociedade mais harmoniosa e inclusiva.

-----------------

Cappelletti, M., & Garth, B. (1978). Acesso à Justiça. São Paulo: Editora.

Navarro, T. (2020). Justiça Multiportas. São Paulo: Editora.

Watanabe, K. (2009). Acesso à Ordem Jurídica Justa. São Paulo: Editora

Henrique José Parada Simão
Sócio do escritório Parada Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024