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Litigância predatória estatal: Há algo a se fazer?

O maior litigante do país é o próprio Estado e não há nada mais assustador: os direitos são violados por aquele que mais deveria proteger. Conseguir uma nota técnica de dispensa de recurso numa procuradoria é uma saga. É algo realmente excepcional. Fazer um acordo em audiência para quem defende o Estado ou uma transação fiscal deixa até a gente sem dormir.

2/10/2024

Uma expressão ganhou destaque nos últimos meses: litigância predatória. Mas de fato o que é isso é como tem se comportado o judiciário sobre o tema? No portal do CNJ o termo tem a seguinte definição: "O fenômeno da litigância predatória tem sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas pelos Tribunais do país. Consiste, normalmente, a litigância predatória na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude".

A Recomendação n.° 127/2022 do CNJ também solicita que os tribunais estejam atentos ao fenômeno e usem medidas para coibir. E os tribunais do país num esforço conjunto para evitar a litigância predatória emite notas, provoca a OAB para punir os caisídicos e sugere até indenizações. Mas óbvio que o  conceito debubdante apresenta um conteúdo aberto e indeterminado. TJ/PE lançou o Bastião, uma ferramenta que utiliza inteligência artificial (IA) para identificar e tratar demandas predatórias.

A litigância predatória é uma prática que consiste no ajuizamento de demandas em massa, com elementos abusivos ou fraudulentos, que provocam o Poder Judiciário.  Algumas características das demandas predatórias são:

• Ajuizamento em massa de ações com o mesmo tema, em várias comarcas ou varas

• Petições quase idênticas, com modificações apenas no nome da parte e no endereço • Ausência de alguns documentos, como comprovante de residência ou relação jurídica contestada

• Capitação ilegal de clientes

Porém, o maior litigante predador seja o próprio Estado brasileiro, para prova isso verificamos que os maiores litigantes começam pela autarquia federal, o INSS, seguido pelos bancos estatais e privados.

São eles que figuram no polo passivo da maior parte das demandas, sendo litigantes habituais, conceito proposta há mais de cinquenta anos por Capelletti e Garth no livro Acesso à Justiça. Quem solicita o benefício ao INSS já o faz através de um advogado muitas vezes porque o próprio sistema do instituto é uma negação ao direito fundamental de cidadania digital. De 3 em cada 10 pedidos de benefício só são implantados pela justiça. Um nicho jurídico de especialistas com grandes e pequenos escritórios é o previdenciário. Já as grandes causas do país são causas tributárias. Barroso se irritou essa semana com o debate que se repete sobre a exclusão do PIS/COFINS da base de cálculo do ICMS. Noutro debate tivemos o retorno do julgamento da revisão da vida toda, em que o STF considerou em apertado placar a impossibilidade de revisão prejudicando milhares de segurados e como na maioria das vezes a favor do Fisco.

O próprio Alexandre de Moraes orientou a Procuradoria Federal a renunciar aos honorários advocatícios. São decisões injustas como essa que ficamos reticentes com o Poder Judiciário. Cerca de 25% dos processos que tramitação são tributários. Recentementede, no julgamento do Ato Normativo 0000732-68.2024.2.00.0000, relatado pelo presidente do CNJ e do STF, ministro Luís Roberto Barroso,  o Conselho Nacional de Justiça aprovou, por unanimidade, regras para extinção das execuções fiscais com valor de até R$ 10 mil sem movimentação útil há mais de um ano, desde que não tenham sido encontrados bens penhoráveis, citado ou não o executado.

A norma reúne um conjunto de medidas para o tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário. Quando não é o Estado que tentando "enganar" o contribuinte ao intervir de maneira ilícita através da tributação no patrimônio. E as teses tributárias são um terreno fértil para despertar a alegria dos advogados. O advogado,  muitas vezes, trabalha anos numa tese que é reconhecida pelo STF, porém, com a modulação de efeitos da decisão, não recebe nada ao final. As decisões são ex tunc, nunca ex nunc... Podemos traduzir para um leigo na seguinte maxima: ganha, mas não leva. A "loucura" do Brasil é tão institucional que temos uma gigante máquina de Justiça para julgar as causas de interesse da União: a Justiça Federal, acompanhada de todo um rol de profissionais para tal fim, profissionais esses que são necessários ao acesso à justiça. Eu não faço meia culpa e trabalho como advogada pública.

Fiz a besteira de perguntar a um colega auditor por que tinha uma certa cobrança no carnê do IPTU já que é inconstitucional, inclusive com repercussão geral. Ele me respondeu que enquanto ninguém visse ou só poucos reclamasse estaria "bom". Ganha-se desobedendo a justiça. É só matemática: se é pouco o valor, não compensa para o contribuinte individualmente propor a demanda, até porque falta o letramento dos direitos, a cidadania tributária para conhecer as ilegalidades. Segundo, os poucos que questionam não benefiam o todo e assim, o município ganha descumprindo a norma proibitiva expressa em repercussão geral. Eu não acredito que o fenômeno jurídico se possa somente ser interpretado por uma perspectiva do direito e economia. Acredito que o direito precisa ser justo, devemos fazer o certo e o compromisso é com a justiça. Mas esse não parece ser o caso de grande parte dos operadores do direito quando, e somente quando, é o próprio Estado o descumpridor contumaz das normas jurídicas, das decisões judiciais e das repercussões gerais. Somos tentados a dizer que a litigância predatória pode ser praticada pelo Estado, mas em nenhuma hipótese pelo cidadão.

Quem sabe o que debatemos (nós, os procuradores públicos) para contestar um pedido legítimo de um paciente que não foi atendido na rede pública por inércia e incompetência estatal não pode acusar ninguém de litigante predatório. O maior litigante do país é o próprio Estado e não há nada mais assustador: os direitos são violados por aquele que mais deveria proteger. Conseguir uma nota técnica de dispensa de recurso numa procuradoria é uma saga. É algo realmente excepcional. Fazer um acordo em audiência para quem defende o Estado ou uma transação fiscal deixa até a gente sem dormir. Assim, quem somos nós para apontamos o indicador para alguém por litigância predatória? Que autoridade moral temos? Nenhuma. A reforma tributária passou a estabelecer como princípios a simplicidade e a Justiça, mas ao proneter reduzir os tributos fez foi aumentar a carga tributária ampliou os custos de conformidade. Mas segue a saga dos advogados e cidadãos que não podem agir como o Estado age. Aplicamo-lhes os rigores da lei... sempre!

Rosa Maria Freitas
Doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, professora universitária, Servidora pública, Escritório Rosa Freitas Advocacia em Direito público, palestrante e autora do livro Direito Eleitoral para Vereador.

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