Aristóteles menciona que a felicidade consiste em uma atividade da alma conforme a virtude. E, assim, em Ética a Nicômaco, menciona que uma atitude virtuosa surge da disposição de caráter que se relaciona com a escolha de ações diante de paixões. Aliás, a própria felicidade consistiria em uma atividade d’alma conforme a virtude. A partir daí, estaria alicerçada a noção do ethos como modo de ser, enquanto forma de vida. Ética, portanto, seria a forma de proceder ou do comportamento do ser humano em seu meio social, com tantos reflexos a serem vistos, assim, em tantas atividades profissionais, e, em especial, na Advocacia.
Essa lembrança vem à lume quando se observa como se deu o desenho da imperial profissão ligada às leis. Afora lembranças como as de Duarte Peres, o chamado Bacharel de Cananéia (degredado no Brasil de 1501, que, segundo alguns, poderia ser visto como o primeiro Advogado do Novo Mundo), é de se ver que, por aqui, verificou-se uma formação jurídica tardia. O bacharelismo era, então, fundamentalmente derivado da metrópole, com Coimbra, do Choupal. Foi somente com a independência que vieram, também, as escolas de direito nacionais, em Olinda e São Paulo.
Ainda assim, os tempos eram difíceis. Mesmo romanceados, os primeiros anos das academias brasileiras não foram de todo fáceis. Em 1823, o deputado José Feliciano Pinheiro principiou a discussão na ANC sobre a questão. A assembleia, que foi instalada em 3/5/1823, no Rio de Janeiro, tinha por finalidade, entre outras, debater a implantação das escolas jurídicas do país.
O deputado, constituinte do Rio Grande do Sul, e futuro Visconde de São Leopoldo, discursou, assim, em 12/6/1823, defendendo a criação de uma universidade no Brasil. Seria, esta, a maneira a acabar com as humilhações sofridas aos alunos brasileiros que precisavam estudar em Portugal após a independência. Pouco mais de um ano e meio depois, em 9/1/1825, um decreto assinado pelo ministro do Império, Estevam Ribeiro de Rezende, reacendeu o debate sobre a implantação de um curso jurídico. Mas foi somente anos depois que se firmaram as faculdades de direito de São Paulo e Olinda. Ainda, assim, sofria-se com problemas de ordem ética e de disciplina, naquele universo posto entre rábulas e bacharéis.
Foi pensando nisso que se iniciou, muito antes da criação da ordem dos advogados, a formatação dos Institutos de Advogados. E, destes, ainda no Império, sobressai a marca paulista do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Muitas foram as tentativas de fundação do IASP. Apesar dos infrutíferos ensaios das décadas de 1850 e 1860, foi somente em 1874 que se consagrou a empreitada de criação de uma associação independente, visando “promover a reunião dos Advogados do distrito da relação de São Paulo”.
Seria ela, notadamente, uma entidade onde a face científica deveria prevalecer. O agrupamento visava a corporação exclusivamente destinada à exploração da ciência, então avassalada pelo mal da literatura ligeira. São Paulo ganhara um tribunal de relação somente naqueles anos, e passava, assim, a ter maior importância. E importância devia ser dada à advocacia. O enorme número de advogados, e também rábulas, no entanto, faziam exigir um entabulamento ético mais escorrido. E assim se deu, a partir da primeira gestão de Francisco Morato (presidente do IASP, de 1917-1921; 1925-1927).
O ano era 1919. Naquela oportunidade, foi criada, junto ao então denominado IOASP - Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, comissão para a confecção de um código de ética. Era ela composta por Cardozo de Mello Júnior, José Brasiliense Leal da Costa, Renato Maia e João Octaviano de Lima Pereira. Em 11/1920, finalmente foi apresentado e aprovado o primeiro código de ética profissional do Brasil. Tanto assim o é que, no relatório de atividades do Instituto, de 1921, foi ressaltado que “o código de ética profissional foi recebido com os maiores aplausos nos meios forenses e na imprensa, sobretudo no Rio de Janeiro, tendo merecido ali as honras de ser transcrito nos anais do Senado Federal”.
Eram 35 artigos, dispostos a elucidar questões duvidosas. Tinha-se, por certo, entre outros, a condenação veemente de discussões de causas na imprensa (coisa bastante comum à época); ou, ainda, a incompatibilidade da dignidade da profissão com “todo trabalho ou esforço, direto ou indireto, que se dirija a chamar a si causas já confiadas a outros advogados ou desviar destes, por qualquer meio ou modo, serviços que lhes estejam naturalmente destinados”. Enfim, um azimute a orientar a profissão que se firmava em importância.
Houve, inegável influência de exemplos vistos na Argentina e em Nova York, onde já se verificava o balizamento da atuação profissional. Mas o impacto daquela primeira legislação foi tremendo. Foi assim que, em 1926, o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul veio a adotá-lo, enquanto em 1934 veio ele a ser a base para o código de ética da recém criada OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. Aliás, não é raro ouvir-se, aqui e acolá, que o texto de 1934 teria sido o inaugural em terras nacionais. Mas isso, unicamente, mostra o desconhecimento do que se deu em São Paulo anos antes.
Desde lá, muitas foram as faculdade e escolas de direito fundadas. Em São Paulo os exemplos vistos em Santos, Franca, na Pontifícia Universidade Católica ou no Mackenzie, são marcantes. E marcantes sempre foram as molduras éticas vistas em cursos de maior envergadura. Clássicos mestres são sempre lembrados, pelo seu conhecimento, didática, e também regramento ético.
Passados os anos, em 1994, quando da promulgação do estatuto da advocacia e a ordem dos advogados do Brasil, teve-se determinação de observação e respeito das regras deontológicas do código de ética profissional, de 1934, até ulterior legislação. E foi assim que, em 13/2/95, foi editado o código de ética e disciplina. Em 2015, foi publicado, derradeiramente, o novo código, atualmente em vigor.
Essas lembranças são marcantes quando se verifica a importância havida há mais de um século, quando a advocacia de São Paulo, por intermédio do IASP, de modo altaneiro, desenhou as primeiras linhas buscando o aprimoramento da ética profissional da advocacia. Hoje, tribunais de ética se mostram como o coração da própria OAB, dada sua vital importância para a classe profissional e para a própria cidadania.
É tarefa difícil, tão dura, ingrata e complexa ter que julgar os próprios pares, quanto absolutamente necessária. E, diga-se, não para a preservação do nobre ofício, mas objetivando fundamentalmente a proteção e valorização da cidadania e, em última análise, do próprio estado democrático de direito. O tribunal de ética não é, nem jamais pretende ser, uma corte punitiva. Ao reverso. Busca, muito mais e além disso, a preservação de valores seminais e fundamentais, tão caros ao prestígio profissional, à preservação de direitos e às suas garantias mais elementares e, também, à justiça. E, nesse aspecto, ressurge a importância do exemplo.
É, pois, de se dizer, no momento recente de apagar de luzes e sentida ausência de um pilar da profissão (que formou e mostrou-se como exemplo poliédrico, e também ético, a tantos estudantes do direito), como foi Lia Felberg, que se deve reverenciar a figura dos professores de direito também na missão do aperfeiçoamento ético. Recentemente falecida, foi ela advogada insigne, mestre e doutora em direito, e conhecida docente da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colocou o ensino acima de tudo, formando-se e aperfeiçoando-se. Durante incontáveis anos foi exemplo a gerações.
Goffredo da Silva Telles mencionava que “uma ordem ética é sempre expressão de um processo histórico”, sendo, pois, uma construção do mundo da cultura. E, assim, deu fundamento ao que Paulo Lobo pontua ao mencionar que “a ética profissional impõe-se ao Advogado em todas as circunstâncias e vicissitudes de sua vida profissional e pessoal que possam repercutir no conceito público e na dignidade da advocacia”. E, por isso, de se dizer que justamente os professores é que são as primeiras referências éticas dos jovens que se iniciam nos tribunais e seus embates.
Que os ensinamentos, exemplo e história de Lia Felberg, filha de um casal refugiado da Polônia, e que sempre priorizou o estudo, acabou por ser mestre e doutora e referência a tantos, se frutifiquem e perpetuem em memória da ética por ela sempre cultuada e decantada. Tenha-se, enfim, em conta que, em que pese toda a importância do primeiro código de ética, e do próprio IASP, sempre foi na figura do mestre que exemplos foram construídos. Esse, um culto que o Instituto reverencia e coloca acima de tudo.