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IASP e o primeiro código de ética profissional

No Brasil, a ética na advocacia evoluiu com códigos desde 1920.

18/9/2024

Aristóteles menciona que a felicidade consiste em uma atividade da alma conforme a virtude. E, assim, em Ética a Nicômaco, menciona que uma atitude virtuosa surge da disposição de caráter que se relaciona com a escolha de ações diante de paixões. Aliás, a própria felicidade consistiria em uma atividade d’alma conforme a virtude. A partir daí, estaria alicerçada a noção do ethos como modo de ser, enquanto forma de vida. Ética, portanto, seria a forma de proceder ou do comportamento do ser humano em seu meio social, com tantos reflexos a serem vistos, assim, em tantas atividades profissionais, e, em especial, na Advocacia.

Essa lembrança vem à lume quando se observa como se deu o desenho da imperial profissão ligada às leis. Afora lembranças como as de Duarte Peres, o chamado Bacharel de Cananéia (degredado no Brasil de 1501, que, segundo alguns, poderia ser visto como o primeiro Advogado do Novo Mundo), é de se ver que, por aqui, verificou-se uma formação jurídica tardia. O bacharelismo era, então, fundamentalmente derivado da metrópole, com Coimbra, do Choupal. Foi somente com a independência que vieram, também, as escolas de direito nacionais, em Olinda e São Paulo.

Ainda assim, os tempos eram difíceis. Mesmo romanceados, os primeiros anos das academias brasileiras não foram de todo fáceis. Em 1823, o deputado José Feliciano Pinheiro principiou a discussão na ANC sobre a questão. A assembleia, que foi instalada em 3/5/1823, no Rio de Janeiro, tinha por finalidade, entre outras, debater a implantação das escolas jurídicas do país.

O deputado, constituinte do Rio Grande do Sul, e futuro Visconde de São Leopoldo, discursou, assim, em 12/6/1823, defendendo a criação de uma universidade no Brasil. Seria, esta, a maneira a acabar com as humilhações sofridas aos alunos brasileiros que precisavam estudar em Portugal após a independência. Pouco mais de um ano e meio depois, em 9/1/1825, um decreto assinado pelo ministro do Império, Estevam Ribeiro de Rezende, reacendeu o debate sobre a implantação de um curso jurídico. Mas foi somente anos depois que se firmaram as faculdades de direito de São Paulo e Olinda. Ainda, assim, sofria-se com problemas de ordem ética e de disciplina, naquele universo posto entre rábulas e bacharéis.

Foi pensando nisso que se iniciou, muito antes da criação da ordem dos advogados, a formatação dos Institutos de Advogados. E, destes, ainda no Império, sobressai a marca paulista do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Muitas foram as tentativas de fundação do IASP. Apesar dos infrutíferos ensaios das décadas de 1850 e 1860, foi somente em 1874 que se consagrou a empreitada de criação de uma associação independente, visando “promover a reunião dos Advogados do distrito da relação de São Paulo”.

Seria ela, notadamente, uma entidade onde a face científica deveria prevalecer. O agrupamento visava a corporação exclusivamente destinada à exploração da ciência, então avassalada pelo mal da literatura ligeira. São Paulo ganhara um tribunal de relação somente naqueles anos, e passava, assim, a ter maior importância. E importância devia ser dada à advocacia. O enorme número de advogados, e também rábulas, no entanto, faziam exigir um entabulamento ético mais escorrido. E assim se deu, a partir da primeira gestão de Francisco Morato (presidente do IASP, de 1917-1921; 1925-1927).

O ano era 1919. Naquela oportunidade, foi criada, junto ao então denominado IOASP - Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, comissão para a confecção de um código de ética. Era ela composta por Cardozo de Mello Júnior, José Brasiliense Leal da Costa, Renato Maia e João Octaviano de Lima Pereira. Em 11/1920, finalmente foi apresentado e aprovado o primeiro código de ética profissional do Brasil. Tanto assim o é que, no relatório de atividades do Instituto, de 1921, foi ressaltado que “o código de ética profissional foi recebido com os maiores aplausos nos meios forenses e na imprensa, sobretudo no Rio de Janeiro, tendo merecido ali as honras de ser transcrito nos anais do Senado Federal”.

Eram 35 artigos, dispostos a elucidar questões duvidosas. Tinha-se, por certo, entre outros, a condenação veemente de discussões de causas na imprensa (coisa bastante comum à época); ou, ainda, a incompatibilidade da dignidade da profissão com “todo trabalho ou esforço, direto ou indireto, que se dirija a chamar a si causas já confiadas a outros advogados ou desviar destes, por qualquer meio ou modo, serviços que lhes estejam naturalmente destinados”. Enfim, um azimute a orientar a profissão que se firmava em importância.

Houve, inegável influência de exemplos vistos na Argentina e em Nova York, onde já se verificava o balizamento da atuação profissional. Mas o impacto daquela primeira legislação foi tremendo. Foi assim que, em 1926, o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul veio a adotá-lo, enquanto em 1934 veio ele a ser a base para o código de ética da recém criada OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. Aliás, não é raro ouvir-se, aqui e acolá, que o texto de 1934 teria sido o inaugural em terras nacionais. Mas isso, unicamente, mostra o desconhecimento do que se deu em São Paulo anos antes.

Desde lá, muitas foram as faculdade e escolas de direito fundadas. Em São Paulo os exemplos vistos em Santos, Franca, na Pontifícia Universidade Católica ou no Mackenzie, são marcantes. E marcantes sempre foram as molduras éticas vistas em cursos de maior envergadura. Clássicos mestres são sempre lembrados, pelo seu conhecimento, didática, e também regramento ético.

Passados os anos, em 1994, quando da promulgação do estatuto da advocacia e a ordem dos advogados do Brasil, teve-se determinação de observação e respeito das regras deontológicas do código de ética profissional, de 1934, até ulterior legislação. E foi assim que, em 13/2/95, foi editado o código de ética e disciplina. Em 2015, foi publicado, derradeiramente, o novo código, atualmente em vigor.

Essas lembranças são marcantes quando se verifica a importância havida há mais de um século, quando a advocacia de São Paulo, por intermédio do IASP, de modo altaneiro, desenhou as primeiras linhas buscando o aprimoramento da ética profissional da advocacia. Hoje, tribunais de ética se mostram como o coração da própria OAB, dada sua vital importância para a classe profissional e para a própria cidadania.

É tarefa difícil, tão dura, ingrata e complexa ter que julgar os próprios pares, quanto absolutamente necessária. E, diga-se, não para a preservação do nobre ofício, mas objetivando fundamentalmente a proteção e valorização da cidadania e, em última análise, do próprio estado democrático de direito. O tribunal de ética não é, nem jamais pretende ser, uma corte punitiva. Ao reverso. Busca, muito mais e além disso, a preservação de valores seminais e fundamentais, tão caros ao prestígio profissional, à preservação de direitos e às suas garantias mais elementares e, também, à justiça. E, nesse aspecto, ressurge a importância do exemplo.

É, pois, de se dizer, no momento recente de apagar de luzes e sentida ausência de um pilar da profissão (que formou e mostrou-se como exemplo poliédrico, e também ético, a tantos estudantes do direito), como foi Lia Felberg, que se deve reverenciar a figura dos professores de direito também na missão do aperfeiçoamento ético. Recentemente falecida, foi ela advogada insigne, mestre e doutora em direito, e conhecida docente da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colocou o ensino acima de tudo, formando-se e aperfeiçoando-se. Durante incontáveis anos foi exemplo a gerações.

Goffredo da Silva Telles mencionava que “uma ordem ética é sempre expressão de um processo histórico”, sendo, pois, uma construção do mundo da cultura. E, assim, deu fundamento ao que Paulo Lobo pontua ao mencionar que “a ética profissional impõe-se ao Advogado em todas as circunstâncias e vicissitudes de sua vida profissional e pessoal que possam repercutir no conceito público e na dignidade da advocacia”. E, por isso, de se dizer que justamente os professores é que são as primeiras referências éticas dos jovens que se iniciam nos tribunais e seus embates.

Que os ensinamentos, exemplo e história de Lia Felberg, filha de um casal refugiado da Polônia, e que sempre priorizou o estudo, acabou por ser mestre e doutora e referência a tantos, se frutifiquem e perpetuem em memória da ética por ela sempre cultuada e decantada. Tenha-se, enfim, em conta que, em que pese toda a importância do primeiro código de ética, e do próprio IASP, sempre foi na figura do mestre que exemplos foram construídos. Esse, um culto que o Instituto reverencia e coloca acima de tudo.

Renato de Mello Jorge Silveira
Advogado Professor Titular da Faculdade de Direito da USP Presidente do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo)

Mauricio Felberg
Sócio Diretor Felberg Advogados Associados. LL.M Executive CEU Law School. Diretor Adjunto de Comunicação Projeto 150 anos e Secretário-Executivo da Comissão de Políticas e Midias Sociais do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Relator Presidente (III Turma) e Coordenador do Grupo Especial de Estudo Sobre Ética, no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. Sócio-fundador da FALP - Federação dos Advogados de Língua Portuguesa.

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