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O Édito de Valério e o reconhecimento fotográfico: Que se condene o mais feio

O reconhecimento fotográfico do réu é controverso no processo penal e a sua correta aplicação é imprescindível, sendo inadmissíveis juízos estéticos ou condenações baseadas em percepções pessoais e subjetivas.

27/6/2024

Introdução

No mês de maio deste ano, a 5ª turma do STJ, ao analisar um habeas corpus impetrado em favor de Carlos Edmilson da Silva, decidiu, por unanimidade, absolvê-lo de quatro das doze condenações que lhe foram impostas pela prática de delitos de estupro. O julgamento em questão alcançou destaque midiático não apenas por envolver cenário delitivo relacionado ao então apelidado “Maníaco da Castelo Branco”, mas sobretudo pelas heterodoxas circunstâncias que permearam o juízo de condenação que lhe foi imposto.

Os fatos delitivos em questão ocorreram no período de 2010 a 2012 e dizem respeito à prática de diversos crimes sexuais contra mulheres nos perímetros das cidades de Barueri e Osasco. O criminoso abordava as vítimas à beira da rodovia Presidente Castelo Branco quando, então, após rendê-las, perpetrava as ações delituosas.

Após algumas investigações e ilações baseadas em fatos pretéritos envolvendo a pessoa de Carlos Edmilson da Silva, a autoridade policial concluiu que ele poderia ser o responsável por tais ações criminosas. Em passo seguinte, a fim de averiguar a autoria delitiva, foi, então, apresentada uma foto do investigado a algumas das vítimas, as quais, em uma cadeia procedimental assimétrica e indutiva, o teriam reconhecido como o autor dos crimes. A seu turno, a defesa questionou o reconhecimento efetuado pelas vítimas, assim como a insuficiência dos relatos apresentados. Todavia, em uma das ações penais, o promotor de Justiça oficiante consignou que “o que mais existe nesse país são condenações de estupradores e ladrões com tipo físico e rosto comum”. Acrescentou, ainda, que “poucas devem ser as vítimas estupradas pelos sósias do Brad Pitt, do Daniel Craig e do George Clooney”.

Na sequência, diante das confirmações apresentadas por algumas das vítimas, a persecução penal avançou e resultou na condenação de Carlos Edmilson da Silva a mais de 170 anos de prisão. Em todo o período, o acusado sustentou a sua inocência, porém a tônica acusatória se concentrou na identificação realizada e desconsiderou a realização de outras provas relevantes para a sua absolvição, tal como o confronto com o material genético colhido de algumas das vítimas.

Passados doze anos em que Carlos Edmilson da Silva cumpria pena pelos referidos estupros, em uma acentuada reviravolta, o STJ esquadrinhou a marcha processual e, diante dos substanciais vícios encontrados, sedimentou a absolvição integral do acusado, conforme inicialmente noticiado. A prova pericial ilidiu os reconhecimentos anteriormente realizados e indicou a prática dos delitos por outra pessoa. É importante ressaltar que tal mudança teve por elemento propulsor a iniciativa do promotor de Justiça Eduardo Querubim, do Ministério Público de Barueri, que procurou o Innocence Project Brasil para que medidas fossem tomadas visando o reexame do caso, com especial atenção à heterodoxia procedimental e probatória evidenciada1. A atuação da referida entidade não só no STJ como também em revisões criminais no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi primordial para a revisitação das falhas nos julgamentos e da verificação do erro judiciário.

No entanto, a despeito do importante êxito alcançado, a casuística em questão não constitui um evento jurídico isolado, mas sim está inserida em um contexto mais profundo de subjetivismos, predisposições e estereótipos que historicamente marcam a persecução criminal, conforme se explanará nas seções seguintes.

Juízos estéticos e o Édito de Valério

As condenações de Carlos Edmilson da Silva foram impulsionadas, nas palavras de sua defesa, por “erros em cascata” nos reconhecimentos realizados. É certo, pois, que a claudicação processual convergiu substancialmente para as suas injustas condenações, mas deve-se ponderar também a presença de um elemento anímico que permitiu a aceitação de tão dissonantes anomalias processuais. Junto à referida precariedade procedimental e probatória existiu também um componente sensorial que levou ao arrefecimento do controle das garantias legais e abriu espaço para uma atuação subjetiva-solipsista por parte do aparato estatal. Este componente foi lastreado precipuamente em um juízo estético. Vale dizer, partindo-se de uma percepção sensorial pela qual se permitiu concluir que uma pessoa com determinadas características estaria mais propensa a cometer aqueles crimes, tolerou-se uma precipitação na certificação probatória e melhor averiguação dos fatos. A fisionomia do acusado propiciou a relevação das garantias processuais e a prolação de um juízo condenatório indutivo. Tal raciocínio, contudo, não é inédito na práxis criminal, tendo, inclusive, a sua gênese catalogada em estudos criminológicos.

Nesse contexto, a compreensão do fenômeno desviante tem sido examinada pela criminologia. Ao longo dos séculos diversos autores e escolas se debruçaram em estudos biológicos, antropológicos e sociais visando entender a razão da prática de certos delitos. No entanto, sem a pretensão de fazer uma digressão histórico-acadêmica a esse respeito, para fins deste artigo deve-se destacar que critérios biológicos e estéticos já foram diretamente reconhecidos como fatores criminógenos. Em um fase reputada como pré-científica da criminologia, entendeu-se que a prática de delitos estaria relacionada à estética do indivíduo. Giambattista della Porta publicou em 1585 o livro De Humana Physioanomonia, no qual apresentou material visual para correlacionar características humanas e animais (Jenksinon, 1997). A partir de técnicas de observação, della Porta tentou estabelecer a “expressão física como uma extensão da alma”. De acordo com essa compreensão, a estética passa a ser erigida como elemento distintivo entre os bons e os maus.

Merece destaque, nesse contexto, a proposição do magistrado napolitano Marquês de Moscardi, o qual, lastreado nas convicções populares e compreensão criminológica da época, considerava a beleza e a feiura como elementos importantes para proferir um julgamento. Shecaira (2020) relata ter o Marquês elaborado o “Édito de Valério”, o qual dizia que “quando se tem dúvida entre dois presumidos culpados, condena-se sempre o mais feio”. Para tanto, em seu iter procedimental consignava que “ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa e visto o rosto e cabeça do acusado, condeno-o (...)”.

É certo, pois, que a influência e os impactos históricos na distinção entre o belo e o feio na composição social foram tantos que Humberto Eco (2010) investigou nas obras “História da beleza” e “História da feiura” a complexidade e transformações dos conceitos, assim como os desdobramentos que advêm de cada um. Em suas palavras, “as coisas feias também compõem a harmonia do mundo por meio de proporção e contraste. A beleza nasce desses contrastes, e também os monstros têm uma razão e uma dignidade no concerto do criado, também o mal, na ordem, torna-se belo e bom porque dele nasce o bem, e junto a ele refulge o bem”.

Por mais sem sentido que tais proposições possam parecer para os tempos atuais, sobretudo ao se condenar, na dúvida, o mais feio, o fato é que ela permeou o pensamento investigativo de uma determinada época e, ao que parece, ainda que hodiernamente não goze qualquer aceitabilidade científica ou acadêmica, parece resistir no imaginário sensorial de agentes estatais atuantes no sistema penal brasileiro.

Precariedade do reconhecimento do réu e a presunção de Valério

Nas ações penais centrais deste artigo não se externaram expressamente as premissas constantes no Édito de Valério. Contudo, o menosprezo à realização de uma maior investigação probatória, sopesada em conjunto com as premissas estéticas consideradas pelo Promotor oficiante para embasar a emissão do juízo condenatório denotam uma repristinação, por via oblíqua e sensorial, das premissas criminogênicas fisionômicas acima mencionadas.

Ao julgar o habeas corpus o ministro Reynaldo Soares da Fonseca consignou que as condenações foram embasadas nas palavras das vítimas que reconheceram o acusado, fotográfica e pessoalmente, sem observância das disciplinas legais, e nos depoimentos dos policiais que apontaram o seu envolvimento em outros crimes da mesma espécie. Esclareceu-se que em alguns procedimentos de reconhecimento do acusado, este foi colocado ao lado de um policial que já era conhecido da vítima e de outras pessoas com características físicas completamente distintas das suas. Apontou-se, ainda, o reconhecimento pela vítima por show up fotográfico, isto é, após ter sido exibida uma única foto do acusado à vítima. Por fim, destacou-se a perda da chance probatória nos feitos, sobretudo diante do material genético que havia sido coletado das vítimas, o qual, após a devida análise pericial, não identificou o perfil genético do paciente, esvaziando, assim, o precário e heterodoxo reconhecimento pessoal anteriormente efetuado, assim como as presunções fisionômicas asseveradas.

Deve-se considerar, nesse panorama, estar consolidada a jurisprudência do STJ de que o procedimento elencado no art. 226 do CPP - Código de Processo Penal não se trata de uma mera recomendação. A esse propósito, pesquisa realizada pelo ministro Rogério Schietti Cruz2 apontou que em 2023, das 377 decisões do STJ que revogaram prisões provisórias ou absolveram os réus em razão de falhas no procedimento de reconhecimento, 74,6% do total tiveram como fundamento a ocorrência de erros na identificação por meio de fotografias, seja ela por meio de imagens despadronizadas, extraídas de redes sociais, desatualizadas ou acompanhadas de fontes não confiáveis.

As condenações envolvendo Carlos Edmilson da Silva, conforme acima mencionado, resultaram de uma cascata de erros, imbuídas em um contexto de anomalia procedimental e juízos sensoriais. A afirmação externada pelo agente ministerial de que os estupradores teriam um “rosto comum no Brasil” e que poucas eram as vítimas violentadas por sósias do “Brad Pitt, do Daniel Craig e do George Clooney” adentra em aspectos completamente alheios ao devido processo legal. Nesse aspecto, Lenio Luiz Streck (2017) censura a subjetividade que resulta em juízos solipsistas. Em suas palavras, “o sujeito solipsista no Direito age desse modo autoritário porque está escorado em uma institucionalidade, falando de um determinado lugar. Uma vez inserido em uma cotidianidade – para além desse lugar e sem os atributos desse poder de fala – perde-se no entremeio de outras institucionalidades”.

Aplicando este raciocínio ao caso em questão, a precariedade procedimental na condução das ações penais permitiu a vazão de pronunciamentos solipsistas. Em termos de dinâmica probatória e averiguação de fatos delitivos não se pode admitir uma pretensa sabedoria individual que outorgue a determinado operador do Direito uma capacidade de distinguir rostos, supostamente oriunda de anos de sua própria observação pessoal. Em uma perspectiva lúdica, “o quadro probatório não pode ser um quebra-cabeça, no qual peças são forçadas a encaixar tão somente no afã de completar a imagem” (Palazzo, 2022)

No caso sob análise, aparentemente a precariedade procedimental foi superada por critérios semelhantes aos do Édito de Valério. Todavia, não se tratou expressamente do réu mais feio, mas de um “rosto comum” no Brasil que não se assemelha a astros de Hollywood. Os números não deixam dúvidas de quem é o “rosto” seletivamente comum no sistema penal pátrio: 68,2% da população carcerária é negra (FBSP, 2023). Assim o foi com Carlos Edmilson da Silva quando um precário reconhecimento fotográfico e pessoal foi elevado por suas condições físicas em detrimento, inclusive, da realização de uma análise genética que poderia oportunamente evitar uma injustiça. Os números demonstram uma perigosa combinação entre a falibilidade de reconhecimentos fotográficos realizados sem as devidas cautelas legais e as predisposições de juízos fisionômicos e sensoriais contra determinados grupos raciais e sociais no país.

Sobre a capacidade de discernir rostos, atemporal é a lição de Friedrich Nietzsche (2017) que assim se manifesta e ironiza:“Os antropólogos entre os criminalistas dizem-nos que o criminoso típico é feio: monstrum infronte, monstrum in animo. Mas o criminoso é um décadent. Sócrates era um típico criminoso? Ao menos isso não seria contrariado pelo famoso juízo-fisionômico que apareceu chocante aos amigos de Sócrates. Um estrangeiro, que entendia de rostos, disse certa vez na cara de Sócrates, ao passar por Atenas, que ele era um monstro e escondia todos os vícios e desejos ruins em si. E Sócrates respondeu simplesmente: ‘Vós me conheceis, meu Senhor!’”

Conclusão

O caso de Carlos Edmilson da Silva é emblemático no sentido de empiricamente identificar a clara realização de atos processuais sem observância das fórmulas legais, um açodamento e indução das vítimas em reconhecer pessoa que não cometeu o crime, a adoção de critérios subjetivos e sensoriais e o desprezo à realização de provas de alto relevo para o desvelar da responsabilidade criminal. Doze anos Carlos Edmilson da Silva ficou preso. Um erro judiciário de difícil, senão impossível, reparação.

O reconhecimento pessoal constitui uma corriqueira prova nas persecuções penais. O caso em questão reforça o alerta há muito tempo traziado por doutrinadores sobre o cuidado que se deve ter em realizá-lo em conformidade com os ditames legais. Em outra oportunidade pude analisar a persistência dos “ecos de Lombroso” (Palazzo, 2018) em nosso sistema em um paradoxal caso envolvendo a emissão de um juízo atávico, baseado em um desvirtuado exame criminológico, que indeferiu a progressão de regime de um reeducando em virtude de traumas relacionados a um defeito no pé. Com as recentes condenações envolvendo Carlos Edmilson da Silva, verifica-se que juízos fisionômicos, biológicos e sensoriais ainda gozam de amplo espaço na persecução criminal no Brasil. Ainda que tais compreensões sejam objeto de absoluta desconsideração no meio científico, a prática forense parece revelar um cenário paralelo em que tais juízos ainda gozam de velada aplicação, a qual precisa ser urgentemente superada, sob pena de se perpetuarem injustiças e resultados deletérios às pessoas envolvidas.

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1 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17052024-Quinta-Turma-absolve-homem-condenado-por-estupros-que-ficou-12-anos-preso-injustamente.aspx

2 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17052024-Pesquisa-no-STJ-mostra-ainda-resistencias-a-jurisprudencia-sobre-reconhecimento-de-pessoas.aspx

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Eco, H. (2010). História da Beleza. Record.

Eco, H. (2014). História da Feiura. Record.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023). 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/.

Jenkinson, J. (1997). Face Facts: A History of Physiognomy from Ancient Mesopotami to the End of the 19th Century. In Journal of Biocommunication, 24(3), 2-7.

Nietzche, F. (2017) Crepúsculo dos ídolos.

Palazzo, F. P. (2021). Ecos de Lombroso: O exame criminológico, a reincidência e o “defeito no pé”. In Revista Jurídica Luso-Brasileira. 5, 557-567.

Palazzo, F. P. (2022). A volta ao mundo em 80 dias e a prova indiciária. In Boletim IBCCRIM. 352, 19-21.

Schecaira, S. S. (2020). Criminologia. Revista dos Tribunais.

Streck, L. (2017). Dicionário de Hermenêutica. Casa do Direito.

Fernando Procópio Palazzo
Assessor jurídico. Mestre em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent. Membro da CSSN/Brown Univeristy (EUA) e da European Society of Criminology.

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