Na última semana, a 2ª turma do STJ negou provimento ao recurso especial interposto pela Buser contra acórdão do TRF-4 que, a pedido da Fepasc - Federação das Empresas de Transporte de Passageiros dos estados do Paraná e Santa Catarina, proibiu a realização de fretamentos interestaduais por meio do aplicativo Buser no Estado do Paraná. Apesar de representar um retrocesso em relação aos avanços conquistados pelas plataformas de intermediação digital de transportes, a decisão não confere contornos definitivos ao tema, aplicando-se apenas ao caso particular do REsp 2.093.778. Assim, não há efeitos diretos sobre os demais casos em que o Poder Judiciário reconheceu a legalidade do fretamento intermediado por aplicativos digitais, tampouco representa uma posição definitiva do STJ, conforme importante ressalva do Ministro Hermann Benjamin:
“Não tenho, contudo, posição firmada a respeito da natureza deste serviço, que recebe o nome que o nome de [...] Buser. Creio que esse tipo de inovação que cria distúrbios no mercado nem sempre é um fato negativo. [...] Então toda a tecnologia, principalmente as tecnologias de organização, seja social seja do trabalho, tudo isso causa um desconforto, desestrutura, mas às vezes para o bem como foi o caso Uber e também da locação de imóveis por meio de aplicativos com isso retirando do conforto a rede hoteleira. Então não vou trazer nenhuma posição definitiva porque não tenho.”
Neste contexto, o presente artigo tem o modesto objetivo de trazer algumas reflexões críticas sobre os temas levantados na sessão de julgamento dia 19/6, a fim de fomentar o importante debate que se seguirá à decisão da 2ª turma.
E não se poderia iniciar qualquer reflexão a esse respeito sem antes fazer referência à precisa síntese de Daron Acemoglu e James Robinson, no best-seller “Por que as Nações Fracassam”: “A inovação tecnológica contribui para a prosperidade das sociedades humanas, mas também implica a substituição do antigo pelo novo, bem como a destruição dos privilégios econômicos e do poder político de alguns.”1
De fato, ao mesmo tempo em que a tecnologia incrementa o bem-estar social, há uma pequena parcela de agentes econômicos que enxergam a inovação como uma ameaça aos seus privilégios econômicos mantidos ao longo do tempo. Este tipo de conflito, que já tem sido observado nas mais variadas facetas de nossas vidas, tende a ser ainda mais intrincado nos mercados que, historicamente, são objeto de barreiras de entrada criadas pela regulação. Neste universo, a saída encontrada pelos agentes tradicionais tem sido equiparar integralmente os novos modelos às suas atividades tradicionais e, com isto, manter a inovação constrita às barreiras que lhes resguardam o domínio de mercado.
Esse intrincado conflito entre tecnologias disruptivas e agentes detentores de privilégios nos mercados tradicionais parecia ter sido definida pelo STF no paradigmático e emblemático caso das plataformas de transporte individual Uber, 99 e Cabify (ADPF 449/DF, Tribunal Pleno, rel. min. Luiz Fux).
Segundo o Supremo, “[o]s princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput), da livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170) e da livre concorrência (art. 173, § 4º) vedam ao Estado impedir a entrada de novos agentes no mercado para preservar a renda de agentes tradicionais”. Naquela oportunidade, os titulares de autorização ou permissão para o serviço de táxi, ameaçados em seus privilégios econômicos pela entrada de aplicativos de intermediação de transporte privado individual, passaram a sustentar, sem razão, que ambos os serviços seriam idênticos e deveriam se sujeitar à mesma incidência regulatória, sob pena de concorrência desleal.
Após anos de batalhas judiciais e algumas iniciativas legislativas, o STF adotou entendimento favorável à tecnologia e às liberdades econômicas. Como bem ressaltou o min. LUIS ROBERTO BARROSO “[a] proibição da atividade na tentativa de contenção do processo de mudança, evidentemente, não é o caminho, até porque acho que seria como tentar aparar vento com as mãos”. Afinal, valendo-se da frase de Roberto Campos “[t]udo o que é rigorosamente proibido é ligeiramente permitido”. A solução para os modelos disruptivos, portanto, não deve ser a pura e simples proibição.
O caso envolvendo os aplicativos de intermediação de transporte coletivo por fretamento – como a Buser – segue o mesmo roteiro roteiro.
A Buser é uma empresa de tecnologia que, dentre outras atividades, realiza a intermediação de grupos de fretamento. Neste particular, a Buser, assim como a Uber, não presta serviços de transporte. A partir de sua plataforma inovadora, promove-se a aproximação e a conexão entre (i) consumidores interessados em realizar uma viagem para determinado trecho em determinada data e horário e (ii) empresas de transporte fretado, devidamente autorizadas, que possuem interesse e disponibilidade para atender aquela demanda. Trata-se de uma aplicação clara do Teorema de Coase, reduzindo externalidades negativas, custos de transação, para que as partes negociantes (consumidores e fretadores) possam alocar de forma eficiente os seus recursos.
De forma distinta do transporte de passageiros em regime regular, não há oferta e venda de um bilhete individual e, tampouco, uma linha previamente existente. O fretamento depende da prévia formação de um grupo entre consumidores – por meio da plataforma - com interesse comum em determinada viagem. Caso haja a formação de um grupo de viagem, o frete é contratado pela plataforma em nome do grupo, rateando-se, ao final, os custos entre os seus integrantes. A inovação, portanto, é a forma eficiente e racionalizada da contratação do fretamento, o que permite reduzir custos e alcançar preços justos ao grupo de consumidores.
O modelo encontra respaldo legal. Trata-se da organização de um transporte privado coletivo privado (art. 4º, inciso VII, da lei 12.587/12), que pode e deve conviver, sem qualquer ilegalidade, com o transporte público coletivo (art. 4º, inciso VII, da lei 12.587/12). Em especial, trata-se de um transporte em caráter eventual (sob demanda) e por afretamento (art. 13, V, alínea “a” e art. 14, III, alínea “b”, da lei 10.233/01), que convive, dentro do setor de transporte, com o transporte regular (art. 13, V, alínea “e”, da lei 10.233/01; art. 14, III, alínea “b”, da lei 10.233/01). Essas duas modalidades de transporte se sujeitam a incidências regulatórias distintas, como aliás, a própria lei 10.233/01 cuidou de deixar claro.
A distinção de incidência regulatória sobre essas duas modalidades tem assento constitucional. Aos transportes, o constituinte houve por bem conferi-los tratamentos distintos, tanto como serviços de titularidade dos entes federados (arts. 21, XII, e; 25, §1º; e 30, V) quanto como atividades econômicas de titularidade privada. Para este último caso, sujeitou-os a apenas a uma ordenação nos termos da lei (CF, arts. 174 e 178), apontando para a livre iniciativa como modelo desejável de exploração2. Há, portanto, para além do transporte de linhas regulares, sujeita a maiores restrições de natureza pública e regulatória, um transporte realizado sob fretamento, sujeito a uma maior flexibilidade de organização de contratação de acordo com as possíveis inovações incorporadas pela iniciativa privada3.
A despeito deste quadro legal e constitucional, os agentes tradicionais passaram a sustentar alguns óbices jurídicos ao modelo de fretamento por aplicativos, o que foi em parte o objeto de discussão pela 2ª turma do STJ.
Circuito Fechado. O principal argumento sustentado pelas detentoras de linhas regulares é no sentido de que o transporte por afretamento estaria circunscrito ao chamado “circuito fechado” (viagem de ida e volta dos mesmos passageiros). Segundo as atuais oligopolistas do setor de transportes, as viagens intermediadas pelos aplicativos seriam realizadas para um único trecho, o que seria vedado nos termos do decreto 2.521/98 e da Resolução ANTT 4.777/15. A alegação foi acolhida pelo min. Mauro Campbell durante a sessão de julgamento.
No entanto, ao que parece, não houve um aprofundamento sobre a própria (i)legalidade da restrição de viagens fretadas ao regime de “circuito fechado” (ida e volta dos mesmos passageiros). As normas legais não distinguem o fretamento das demais modalidades de transporte pela sua constrição de viagens ao regime de “circuito fechado”. Não é vedado, por exemplo, que uma agência de viagem contrate em favor de turistas um transfer para levá-los de um ponto de encontro na cidade de Pirenópolis em Goiás ao aeroporto de Brasília. De igual modo, não se pode reputar proibido que um grupo de consumidores reunidos na plataforma digital contratem um fretamento para um único trecho de interesse comum. Uma restrição desta sorte só poderia derivar de lei (art. 5º, II, e art. 178 da Constituição Federal), não sendo suficiente a previsão autônoma do decreto 2.521/98 e da Resolução ANTT 4.777/15, tal como já decidiram o TRF-34 e o TRF25.
Concorrência desleal. Outro ponto levantado no debate seria o de que o fretamento em “circuito aberto” redundaria em uma “atuação em situação de concorrência desleal com quem presta regular serviço de transporte interestadual de passageiros”, como consignou o ministro relator durante a sessão.
No entanto, sob o viés econômico, não se afigura razoável pressupor – sem dados empíricos de suporte – que haja incompatibilidade para a convivência entre duas modalidades de serviços em um mesmo mercado. Modelos disruptivos, não raras vezes, criam uma demanda não atendida pelas modalidades tradicionais de serviço. No caso do Uber, por exemplo, após taxistas se valerem desta mesma argumentação (concorrência desleal), o Departamento de Estudos Econômicos do CADE acabou por revelar que “o Uber não ‘usurpou’ parte considerável dos clientes dos taxis nem comprometeu significativamente o negócio dos taxistas, mas sim gerou uma nova demanda.”6 Aliás, no caso particular do transporte coletivo, a SEAE - Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade concluiu que é a própria “regra do circuito fechado [que] é anticompetitiva, tendo fortes indícios de prejudicar o desenvolvimento do mercado de transporte sob fretamento.”7 Noutros termos, é a regra do circuito fechado que prejudica a justa competição entre os dois submercados do transporte coletivo de passageiros (regular e fretamento).
Já sob o aspecto jurídico, parece também ser equivocada a concepção de que eventual competição entre serviços submetidos a regimes regulatórios distintos (com maior ou menos carga de ônus regulatórios) seja ilegítima8. A experiência legislativa mostra o contrário9. No regime jurídico do setor de transporte coletivo, aliás, além da previsão legal da coexistência de modalidades de serviços com cargas regulatórias distintas (notadamente por fretamento e regular10), a lei 12.996/14, de constitucionalidade reconhecida pelo STF (ADI 5.549 e ADI 6.270), tornou induvidoso que as empresas detentoras de linhas regulares não devem ser imunizadas dos efeitos de eventual competição por qualquer outra modalidade de serviços. Isso porque as próprias linhas regulares estão sujeitas a um regime de autorização sem licitação (art. 43), sem controle de preços (art. 43, inciso II) e com liberdade de saída (art. 43, III), em um ambiente de livre e aberta competição11. Assim é que, no limite, não há qualquer ilícito no incremento tecnológico do fretamento, ainda que haja eventual diminuição da renda oligopolista das atuais titulares de linhas regulares.
Regulamentação desatualizada. O min. relator ponderou ainda que “[o] direito regulatório se mostra desalinhado em relação à atividade inovadora que esteja desequilibrando mercado, salutar se mostra a intervenção restrita do Judiciário até que sobrevenha o aperfeiçoamento da legislação pertinente.”
A preocupação do relator com a dificuldade de a regulação acompanhar a tecnologia é, de fato, uma das questões mais atuais para os estudiosos da regulação. Certamente, o tempo da regulação e das dinâmicas tecnológicas é distinto. Mas isto não pode significar que as inovações estejam condicionadas à prévia regulação ou à atualização da legislação existente. A regra em nosso sistema constitucional é a liberdade de iniciativa e de criação, e não o oposto (STF, Tribunal Pleno, ADPF 449/DF, rel. min. LUIZ FUX, j. 8.5.2019 – Uber, Cabify e 99). E é graças a isto que hoje mudamos a forma como nos comunicamos (serviços de voz do Whatsapp), nos entretemos (serviços on demand pelo Netflix), nos hospedamos (serviços de locação pelo Airbnb) e nos locomovemos (serviços de transporte individual intermediado por aplicativos). Assim, “condicionar a possibilidade do particular de inovar à existência de prévia regulamentação estatal da sua atividade não é apenas inconstitucional. É também desastroso, sob a perspectiva do desenvolvimento social, por asfixiar de modo intolerável a capacidade de inovação dos agentes econômicos, em detrimento de toda a sociedade.”12
Circuito fechado para quem?
Segundo dados disponibilizados pela Buser, já são mais de 11 milhões de usuários cadastrados na plataforma e mais de 500 mil viagens realizadas por meio do aplicativo em todo o país. Há uma parcela significativa dos viajantes com renda de até cinco salários-mínimos, com a economia das viagens podendo chegar a 60% dos preços já praticados, o que resulta no acréscimo da receita das famílias que utilizam a tecnologia. Além disso, são cerca de 20 mil empregos diretos e indiretos gerados ao longo dos anos.
A pergunta que fica, portanto, é a seguinte: para quem se fechou o circuito com essa medida? Por ora, apenas para uma parcela de consumidores que faziam trechos específicos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, para o Paraná. Estes são os maiores afetados pela recente decisão do STJ. Espera-se, ao final da celeuma, que o tema volte ao STJ e, enfim, o circuito da inovação volte a se abrir, não apenas para os usuários do Sul, mas a todos os brasileiros e brasileiras. Afinal, estamos diante de uma discussão complexa, que tem a inovação tecnológica como base e apontando para o futuro. Fechar o circuito e as portas para o novo, portanto, não é a solução.
1 ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Trad. Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 143.
2 Gustavo Binembojm, André Cyrino, Alice Voronoff, Rafael L. F. Koatz. O Fretamento Colaborativo de Serviços de Transporte Coletivo (O Caso Buser). In: Direito da Regulação Econômica: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 391.
3 Carlos Ari Sundfeld. Serviços Privado de Transporte por Fretamento e sua Intermediação por Aplicativos. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 50, p. 154-170, set./dez. 2016.
4 Decisão monocrática no Pedido de Efeito Suspensivo à Apelação nº 5001433-26.2023.4.03.0000. 4ª Turma. Relª. Desª. MÔNICA NOBRE, j. 31.1.2023.
5 TRF2, 7ª Turma Especializada, Apelação n. 5005307-11.2019.4.02.5101, Rel. Des. Fed. THEOPHILO ANTONIO MIGUEL FILHO, j. 13.12.2023.
6 Departamento de Estudos Econômicos – DEE, CADE. “Rivalidade após entrada: o impacto imediato do aplicativo Uber sobre as corridas de táxi porta-a-porta”. Disponível em www.cade.gov.br. Acesso em: 25.6.2024.
7 Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade, Ministério da Economia. Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/reg/frente-intensiva-de-avaliacao-regulatoria-e-concorrencial-fiarc/pareceres/2022-01-31-minuta_parecer_circuito_fechado-estrutura-padrao_versao-finalv10.pdf. Acesso em: 25.6.2024.
8 Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara. Terminais portuários de uso privativo misto: as questões da constitucionalidade e das alterações regulatórias. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, ano 10, n. 37, pp. 9-26, jan./ mar. 2012.
9 Pense-se, por exemplo, na competição entre terminais inseridos dentro porto organizado, sujeitos a títulos habilitantes e cargas regulatórias mais afetas ao direito público, e os terminais de uso privado (12.815/2013), dotados de maior liberdade.
10 A convivência entre empresas de linhas regulares e empresas autorizadas para fretamento em regime regulatório distinto já era tratada bem antes da existência da Buser. Veja-se, por exemplo, Floriano Azevedo Marques Neto, Nova regulação dos serviços públicos. Revista De Direito Administrativo, n. 228. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002, p. 13–30: “A maior transformação neste cenário parece ser mesmo a introdução da competição em um mesmo serviço com distintas incidências regulatórias, ou seja, com a concomitância entre prestadoras sujeitas ao regime público e ao regime privado, ainda que ambas subordinadas a restrições de acesso para exploração da atividade econômica específica (necessidade de prévia licença - concessão, permissão ou autorização, conforme ocaso). É o que ocorre hoje no setor de telecomunicações entre concessionárias e autorizatários do serviço de telefonia fixa; no setor de energia elétrica, onde deveriam competir concessionárias e autorizatárias na geração; e comercialização de energia ou, ainda que precariamente, no setor de transporte intermunicipal de passageiros onde competem permissionárias e empresas autorizadas a explorar, em regime regulatório mais brando, tal modalidade de transporte mediante autorização para "fretamento".
11 Gustavo Binembojm, André Cyrino, Alice Voronoff, Rafael L. F. Koatz. Fretamento Colaborativo de Serviços de Transporte Coletivo (O Caso Buser). In: Direito da Regulação Econômica: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 393.
12 Daniel Sarmento. A Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O “Caso Uber”. In RAFAEL VÉRAS DE FREITAS et. al. Regulação e Novas Tecnologias. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 314.