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Breve nota sobre a celebração do contrato por instrumento particular na alienação fiduciária

O CNJ tem competência constitucional para alterar a legislação vigente, vedar a celebração de contratos de alienação fiduciária por instrumento particular e o acesso de títulos ao registro imobiliário?

18/6/2024

Depois de reconhecer a validade de norma administrativa do TJ/MJ que restringira o registro “dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos” apenas aos firmados por escritura pública “ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis” o Conselho Nacional de Justiça decidiu, nos autos do Pedido de Providências 0008242-69.2023.2.00.0000, vedar “a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI, pois os dispositivos legais acima transcritos, normas específicas e excepcionais não revogaram a regra geral do Direito Privado, consagrada no art. 108 do Código Civil, quanto à essencialidade da escritura pública para validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país."

Para conferir eficácia à decisão determinou a alteração do Provimento CNJ 149, de 30/8/23 e a adequação dos normativos das corregedorias gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, que passarão a vigorar, no prazo de trinta dias, acrescido do disposto no Capítulo VI, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ para o Foro Extrajudicial – da seguinte forma:

CAPÍTULO VI

Da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis

Seção I do título

Art. 440 – AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da lei 9.514/97, incluindo as cooperativas de crédito.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo;

  1. Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08);
  2. Entidades integrantes do Sistema Financeiro de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64”.

Não se encontrará na decisão comentada razões efetivamente jurídicas que a justifiquem e o argumento nuclear acolhido (toda escritura pública confere segurança jurídica e todo instrumento particular insegurança jurídica) prefigura-se destituído de comprovação fática minimamente aceitável, além de resultar desestruturado pela própria decisão que transfere a “insegurança jurídica” do instrumento particular para a ‘qualidade’ das partes contratantes:

“A respeito da atribuição de efeitos de escritura pública a instrumento particular, não se pode olvidar a importância e imprescindibilidade da tutela pública em negócios privados para conferir-lhes juridicidade e autenticidade a qual se revela pela presença nesses atos jurídicos, de instituições financeiras integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário.”

A verdade é que r. decisão afronta diretamente o espírito da lei e a intenção seguidamente reiterada pelo legislador de conferir aos negócios imobiliários celeridade, simplicidade, constituição descomplicada, custo reduzido e caráter satisfativo.

Nesse sentido, a redação original da lei 9.514/97 admitiu a utilização do instrumento particular nas operações celebradas com pessoa física, afastando – expressamente – a limitação prevista no art. 134, II do CC (art. 108, do código vigente):

Art. 38. Os contratos resultantes da aplicação desta lei, quando celebrados com pessoa física, beneficiária final da operação, poderão ser formalizados por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do CC.

Já em 2001, para contornar a interpretação enviesada de alguns autores e a resistência dos registradores de imóveis, a redação do art. 38 da lei foi alterada pela MP 2.223 de forma a arrolar os contratos abrangidos pela exceção legal, inclusive “aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis” e explicitar a não aplicação da regra geral do Código Civil, passando a viger com o seguinte texto:

Art. 38.  Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real e, bem assim, quaisquer outros atos e contratos resultantes da aplicação desta lei, mesmo aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, não se lhes aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil.    

Os mesmos motivos exigiram duas alterações no referido artigo 38 durante o ano de 2004, para ajustes e atribuição textual aos atos e contratos resultantes da aplicação da lei 9.514 do caráter de escritura pública para todos os fins de direito. A primeira delas, pela lei 10.931, em 2/8/04 e a segunda, pela lei 11.076, de 30/12/04, advindo a redação ainda vigente:

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. 

Se é verdade que a redação imperfeita do vigente do art. 38 suprimiu – de forma atécnica e indevida – a parte que atribuía aos contratos referidos o caráter de escritura pública para todos os fins de direito, não há na evolução da norma em questão, nem se depreende da leitura daqueles dispositivos, qualquer justificativa para o entendimento ou interpretação que permita pressupor que a forma plúrima elegida na origem tenha sido escamoteada pelo legislador ou limitada a instrumentos provindos do mercado financeiro.

É relevante destacar que o CNJ detém competência administrativa para fiscalizar e normatizar o Poder Judiciário e, por via de consequência, fiscalizar os serviços notariais e registrais, que por sua vez, estarão obrigados a cumprir as normas técnicas dali emanadas, de tal forma que. a decorrido o prazo estipulado no provimento minutado que integra a decisão referida, restará vedado o acesso ao registro imobiliário dos instrumentos públicos – ainda que expressamente admitidos pela lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel.

Da mesma forma, é pertinente frisar que falta ao CNJ competência constitucional para alterar a legislação vigente, que a decisão acima transcrita contraria o ainda vigente art. 38 da lei 9.514/97 e que, ao vedar o acesso do cidadão ao registro imobiliário, confronta diretamente direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

Finalmente, a decisão merece reparos sendo pertinente ponderar que não cogitou o legislador do art. 38 da lei 9.514 de revogar a regra geral do Direito Privado (art. 108 do Código Civil) e, sim, de estabelecer a exceção prevista em lei e admitida pelo dispositivo legal. Ademais, conforme já aclarado, a norma administrativa provinda do CNJ pode vedar ao agente público que proceda ao registro dos títulos apresentados em desacordo com o decidido, mas não deveria – em respeito ao princípio constitucional da legalidade – obstar “a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI”.

Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Presidente da AD NOTARE - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

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