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Portador do vírus HIV e deficiência para fins de LOAS

O portador do vírus HIV pode ser considerado deficiente para fins de recebimento do benefício de prestação continuada.

14/6/2024

O inciso V do art. 203 da Constituição Federal garante ao idoso e ao portador de deficiência um benefício assistencial no valor de um salário-mínimo, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

A regulamentação do dispositivo constitucional deu-se pelos artigos 20, 21 e 21-A da lei 8.742/93 (Dispõe sobre a organização da Assistência Social) e pelo art. 34 da lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), tendo este último preceito normativo reduzido a idade mínima do idoso, para fins de obtenção do benefício em comento, para os atuais 65 anos.

Tais espécies normativas têm por escopo integrar a proteção social básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social, em consonância com o estabelecido pela Política Nacional de Assistência Social. Noutras palavras, trata-se de medida pública instituída para o atendimento de necessidades humanas essenciais (mínimos sociais como alimentação, moradia básica e vestuário), de índole não contributiva direta, funcionando como complemento ao RGPS quando este não puder ser aplicado ou se mostrar insuficiente para a consecução da dignidade humana.

Da leitura de referidos dispositivos legais, observa-se que para o recebimento do benefício assistencial - intitulado “benefício de prestação continuada” – faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos, que, para fins didáticos, podem ser divididos em requisitos subjetivos (ser maior de 65 anos ou portador de deficiência) e requisito objetivo (apresentar miserabilidade jurídica1).

No tocante, especificamente, ao requisito subjetivo “portador de deficiência”, o parágrafo 2º do art. 20 da lei 8.742/93 estabelece que “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo [duração mínima de 2 anos2] de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Não se deve confundir o conceito de deficiência com o de incapacidade laborativa.

A deficiência diz respeito à condição física, mental, intelectual ou sensorial da pessoa, ou seja, se ela possui algum tipo de impedimento que, em interação com uma ou mais barreiras, possa obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Não se confunde com incapacidade, que se refere, propriamente, à inaptidão para o exercício do trabalho de forma habitual.

O conceito de deficiência vai além da análise da capacidade para o trabalho. Noutras palavras, uma pessoa pode ter deficiência e, ainda assim, ser capaz de trabalhar e manter vida independente. Tanto é verdade que a LC 142/03 regula, justamente, a aposentadoria do portador de deficiência, isto é, daqueles que, com algum grau de deficiência, conseguiram exercer atividade laborativa.

Nos termos da súmula 77 da TNU, “o julgador não é obrigado a analisar as condições pessoais e sociais quando não reconhecer a incapacidade do requerente para a sua atividade habitual”. Quer-se dizer: como regra geral, para caracterização da incapacidade laborativa ou mesmo da deficiência não importam as condições pessoais e sociais apresentadas pelo requerente, mas apenas a existência de limitações físicas ou barreiras à integração social.

Há casos, todavia, em que tão só o exame pericial não se mostra suficiente. São, por exemplo, as hipóteses das doenças estigmatizantes, como a do portador de vírus HIV, tratada na súmula 78 da TNU:

Súmula 78/TNU - Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença.

É dizer: a ausência de incapacidade clínica ou física nos casos de doenças de elevada estigmatização social, como o soropositivo (há quem mencione ainda a hanseníase, a obesidade mórbida e doenças de pele graves), não é suficiente para a negativa do benefício previdenciário ou assistencial.

Cuidando-se de portador de HIV, mesmo assintomático, a incapacidade transcende à mera limitação física, repercutindo na esfera social do indivíduo, podendo segregá-lo do mercado de trabalho pela elevada estigmatização da enfermidade. Desse modo, para a análise da incapacidade/deficiência, faz-se necessária não somente a avaliação médica, mas também a avaliação dos aspectos “pessoais, econômicos, sociais e culturais” do requerente, é dizer, de sua “incapacidade em sentido amplo” ou do “critério social”.

Evidenciados, no caso concreto, reiterados rompimentos de vínculos de trabalho em curtos espaços de tempo, motivados pelas descobertas da doença, faz-se possível a concessão de benefício por incapacidade (auxílio por incapacidade temporária ou aposentadoria por incapacidade permanente) ou do benefício de prestação continuada (BPC/LOAS) utilizando-se do critério social, diante da dificuldade de recolocação profissional, desde que, obviamente, presentes os demais requisitos previstos pela legislação (qualidade de segurado para os benefícios por incapacidade3 e miserabilidade jurídica para o BPC/LOAS).

Os benefícios também podem ser concedidos diante de circunstâncias “pessoais, sociais, econômicas e culturais” concretamente apresentadas, como cuidando-se o soropositivo de pessoa humilde e de pouca instrução, fatores limitadores que, em conjunto com a estigmatização da doença, podem revelar ser improvável sua (re)inserção no mercado de trabalho.

Desse modo, ainda que a perícia médica venha concluir pela ausência de incapacidade ou deficiência do portador de HIV, caso reste demonstrado que o estigma social da enfermidade impede sua (re)inserção no mercado de trabalho ou, em se tratando de requerimento de benefício de prestação continuada, constitua impedimento “à sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, tem-se por devida a prestação previdenciária/assistencial, resultando caracterizado, no caso específico do benefício de prestação continuada, o critério da deficiência previsto na lei 8.742/93.

Nesse sentido, diferentes Tribunais Regionais Federais:

“[...] 3. No caso específico do portador do vírus HIV, a jurisprudência deste Tribunal vem adotando o entendimento de que, na análise para concessão do benefício, o juízo deve considerar as condições pessoais e sociais da parte, de modo a determinar ou não sua incapacidade para o trabalho e a concessão ou não do benefício, em razão do estigma social que acompanha o portador dessa patologia. 4. Os prontuários médicos juntados aos autos e a perícia médica judicial demonstram que o recorrente tem a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, causada pelo vírus HIV, sendo indiferente para a configuração da incapacidade o fato de o autor estar assintomático. Tal condição apenas revela a efetividade do tratamento antiviral. Ademais, o caso relatado nos autos permite concluir pela existência de incapacidade, uma vez que se trata de pessoa humilde, com pouca instrução, residente em cidade pequena, situação que por si só, pelo estigma social, afeta a inserção dos portadores de HIV no mercado de trabalho [...] 6. Presentes os pressupostos legais para a concessão do benefício de prestação continuada denominado amparo social à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso (art. 203 da CF/88 e art. 2º, V, lei 8.742/93), pois comprovado que a parte requerente é deficiente e que não possui meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família...” (TRF-1 - AC: 10270249320204019999, relator: DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO, Data de Julgamento: 29/9/22, Vice Presidência, Data de Publicação: e-DJF1 29/9/22 PAG e-DJF1 29/9/22 PAG)

“[...] V - O vírus HIV é patologia que inexoravelmente impõe limitações para o mercado de trabalho, diante das frequentes manifestações de quadros de infecções, que debilitam progressivamente o organismo, além de ser incurável, de forma a impor tratamento e acompanhamento médicos permanentes. VI - A situação apontada pelo perito se ajusta ao conceito de pessoa com deficiência previsto no art. 20, § 2º, I e II. [...] VIII - A situação é precária e de miserabilidade, dependendo a autora do benefício assistencial que recebe para suprir as necessidades básicas, sem condições de prover o seu sustento com a dignidade exigida pela Constituição Federal. IX - Comprovado o requerimento na via administrativa, o benefício é devido desde essa data...” (TRF-3 - ApCiv: 50057120720184039999 MS, relator: MARISA FERREIRA DOS SANTOS, Data de Julgamento: 27/6/19, 9ª turma, Data de Publicação: e - DJF3 Judicial 1 DATA: 1/7/19)

“[...] 2. Ainda que em oposição ao laudo pericial, concede-se o benefício assistencial ao portador de HIV, mesmo sem apresentar sintomas, quando sua recolocação no mercado de trabalho mostrar-se improvável, considerando-se as suas condições pessoais e o estigma social da doença, capaz de diminuir consideravelmente as suas chances de obter ou de manter um emprego formal...” (TRF-4 - AC: 50037930920214047102 RS, relator: HERMES SIEDLER DA CONCEIÇÃO JÚNIOR, Data de Julgamento: 6/6/23, 5ª turma)

“[...] 4. Acerca da incapacidade, concluiu o perito judicial: (...) "Autora é portadora do vírus HIV desde 2004 e está assintomática e sem comprometimento do sistema imunológico. AIDS é doença que causa deficiência no sistema imunológico. E, que, nesse exame médico pericial não apresentou sinais e sintomas incapacitantes". 5. A despeito da conclusão do perito judicial, restou demonstrada a incapacidade da autora, tendo em vista as diversas medicações de uso diário, necessárias à sua sobrevivência e, ainda assim, não é rara a instabilidade em seu quadro clínico, haja vista o estado avançado da doença. 6. Uma vez presentes os requisitos necessários à concessão do benefício de prestação continuada, faz jus a apelante ao seu deferimento, a partir do requerimento administrativo...” (TRF-5 - AC: 08001039420184058106, relator: desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, Data de Julgamento: 20/5/19, 1ª turma)

Conforme se infere dos precedentes acima, a vasta legislação produzida em prol da inclusão não tem o condão de afastar a assistência social do portador de HIV, tal como prevista na Constituição Federal, sendo certo que, vindo o titular do benefício de prestação continuada lograr sua (re)inserção no mercado de trabalho, o benefício deverá ser suspenso, só vindo a ser restabelecido caso extinta a relação de trabalho ou a atividade empreendedora, nos termos do art. 21-A da lei 8.742/934.

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1 Quanto ao requisito da miserabilidade jurídica, pelo critério legal originário considera-se em situação de vulnerabilidade a pessoa com deficiência ou idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo (artigo 20, par. 3º, Lei n° 8.742/1993). Há, contudo, inúmeros precedentes jurisprudenciais afastando o critério de ¼ do salário-mínimo e adotando o critério de ½ salário-mínimo, sustentando revogação tácita por leis que criaram outros programas assistenciais do Governo Federal.

2 Art. 20, Lei n° 8.742/1993 - O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família – [...] § 10.  Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.

3 Dispensada a carência pelo artigo 26, I c.c artigo 151 da Lei n° 8.213/1991.

4 Art. 21-A. Lei n° 8.742/1993[4] - O benefício de prestação continuada será suspenso pelo órgão concedente quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. § 1o  Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a qualquer benefício previdenciário, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso, sem necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21.

Gabriel Tápias
Analista judiciário na Justiça Federal de Primeiro Grau no Rio de Janeiro. Pós-Graduado em Direito Privado pela Faculdade de São Vicente - FSV.

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