A coluna de hoje aborda a posição de garantidor, levando em conta o fato de que as autoridades se valem, cada vez mais, da omissão imprópria para atribuição de responsabilidade penal.
O aumento do recurso à omissão imprópria foi constatado empiricamente por Alexis Brito e João Victor Morais1, que apontam para uma expansão no volume de tais casos nas Cortes Superiores, que alcança 650% desde a década de 1980 à de 2010, sendo que, do total de acórdãos analisados, 56% versam sobre crimes cometidos em contextos empresariais:
Gráfico de Alexis Brito e João Victor Morais referente ao número de casos envolvendo crimes omissivos impróprios.2
A posição de garantidor vem sendo a pedra fundante para a responsabilidade penal dos dirigentes empresariais, tendência que enseja um alerta sobre a relevância em uma consciente estruturação organizacional da empresa e sobre o cumprimento de deveres assumidos pelos seus administradores. Em especial porque, ainda que se questionem os diversos desvios no uso da técnica, é legítima a responsabilidade penal por omissão imprópria desde que respeite os pressupostos e limites estabelecidos legalmente.
Claro que, em muitos casos, o instituto vem sendo instrumentalizado incorretamente para a imputação da prática de ilícitos penais à dirigentes pela mera posição no organograma corporativo: a nova, mas não contemporânea, forma de responsabilidade penal objetiva, isto é, quando a mera condição de dirigente torna-se elemento (i)legitimo para responder um inquérito, procedimento ou processo criminal.
Com isso, quer-se dizer que a mera prova documental (e.g. um contrato social, um organograma empresarial ou uma normativa interna que aponte o dirigente em uma posição de liderança) passa a ser, indevidamente, considerada como meio apto a fundamentar a condenação penal, com penas que vão de poucos meses de detenção até vários anos de reclusão.
Antes do mais, é preciso conceituar: afinal o que é uma omissão imprópria? Enquanto uma das técnicas de responsabilização de dirigentes empresariais, a omissão imprópria diz respeito à “responsabilização de um agente por um tipo penal que, por sua descrição, a princípio, realizar-se-ia por uma ação, atribuindo o resultado ao sujeito em função de uma omissão, quando ‘o omitente devia e podia agir para evitar o resultado’ (art. 13 do Código Penal)”3.
A omissão imprópria, como visto, encontra-se no art. 13 do Código Penal, onde em seu §2° prescreve que “[a] omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado” e elenca como fontes do dever de agir, que fundamenta a posição de garantidor, três hipóteses, considerando ser garantidor aquele que “tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância” (alínea “a”), “de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado” (alínea “b”), e/ou “com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado” (alínea “c”).
Em uma simplificação para fins didáticos (apesar do risco de toda simplificação), por meio da omissão imprópria o ordenamento torna punível, de modo equiparável ao cometimento comissivo de um ilícito, a inércia da pessoa que podia e devia agir para impedir um resultado. O impacto dessa equiparação é de extrema relevância, vejamos:
Um cidadão que, retornando para casa, assiste inerte enquanto gradualmente perde os sinais de vida e então morre um operário, que se acidentou em uma obra próxima a casa do primeiro cidadão, pode eventualmente responder pelo crime de omissão de socorro (pena de 1 a 6 meses).
O responsável pela segurança do trabalho na obra, que possuía deveres especiais de garantidor, exercendo a função de proteção em relação aos seus funcionários, se comprovada a omissão de deveres de agir para impedir a morte do funcionário, pode, eventualmente, ser responsabilizado por homicídio em função de sua inércia (pena 06 a 20 anos).
A questão assume uma sensibilidade ainda maior quando se tem em vista a figura do dirigente empresarial, que possui sob seu âmbito de organização empreitadas de grande complexidade e risco.
Ocupar, portanto, uma posição de garantidor implica em um relevante incremento de responsabilidade, que não deve ser menosprezado pelos dirigentes empresariais. É preciso que cada profissional compreenda os deveres que lhe incumbem ao assumir determinada função, bem como clareza acerca de quais os poderes para agir possui, de modo a adotar uma postura consciente sobre a necessidade de rápida adoção de medidas diante da constatação de riscos.
Por essa razão, é necessário, no âmbito empresarial, valorizar uma cultura de integridade, ciente dos desafios do Direito Penal Econômico, buscando examinar os riscos do negócio sob a perspectiva penal e não somente os riscos tradicionalmente calculados pelos juristas do Direito Civil, voltados para as repercussões patrimoniais.
1 BRITO, Alexis Couto de; MORAIS, João Victor Macêdo de. A omissão imprópria nos tribunais superiores. In: BRITO, Alexis Couto de; MARTINS, Fernanda Rocha (orgs.). A dogmática penal e os tribunais superiores. Londrina: Editora Thoth, 2023. p. 109-118.
2 BRITO, Alexis Couto de; MORAIS, João Victor Macêdo de. A omissão imprópria nos tribunais superiores. In: BRITO, Alexis Couto de; MARTINS, Fernanda Rocha (orgs.). A dogmática penal e os tribunais superiores. Londrina: Editora Thoth, 2023. p. 114.
3 PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. Responsabilização de gestores pela mera posição na hierarquia corporativa: tipo objetivo e tipo subjetivo na expansão do direito penal empresarial, p. In: Organizado por Marcelo Azevedo e Bruno Malta. Direito do ambiente em perspectiva. Belo Horizonte, São Paulo: Editora D’Plácido, 2020, p. 516.