Migalhas de Peso

A lei da ficha limpa, rejeição de contas e controles judiciário

Lei da ficha limpa cria regras de inelegibilidade por julgamento desfavorável de contas públicas, afetando gestores e ordenadores de despesas.

6/6/2024

A lei da ficha limpa (LC 135/10) criou uma série de regras sobre inelegibilidade que se tornaram um tormento para os gestores. Dentre as várias inovações,  o julgamento das contas públicas pela casa legislativa respectiva apos parecer técnico do órgão de contas. Assim, caso haja a sugestão em relatório circunstanciado e o julgamento desfavorável pelo Poder Legislativo, pode o Presidente, o Governador ou o Prefeito se tornar inelegível (RE 132.747/DF).

Mas não somente estes, os ordenadores de despesas respectivos, como presidentes de uma das casas do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais, bem ainda presidentes de autarquias, fundações públicas ou secretários, ministros, etc, desde que sejam eles ordenadores de despesa.

O poder das análises de contas

Um órgão de fiscalização favorável ou contrário representa um elemento importante para que as contas sejam aprovadas ou não. Dilma Rousseff, por exemplo, foi impecheamada por irregularidades denominadas de pedaladas fiscais. A mesma manobra contábil foi considerada legal ao ser praticada por Michel Temer. Fora que a condenação dela causou estranheza: não foram seus direitos políticos cassados.

No mais, pode o Poder Judiciário tornar essas medidas tomadas nos relatórios dos Tribunais de Contas ou decisões das casas legislativas respectivas afastadas.

O art. 1º, I, g, da LC no 64/90 (lei das inelegibilidades), define que são inelegíveis para qualquer cargo“os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.

O Judiciário: poder contramajoritário

O controle de legalidade efetuado pelo Judiciário, que chamamos na teoria do direito de poder contramajoritário, pode livrar o gestor do peso da rejeição do controle externo dos Tribunais de Contas  e do controle político das casas legislativas.

Por que chamamos de contramajoritário? Porque o Judiciário como depósito de legalidade, pode se opor as decisões do Legislativo, que representa a esfera da vontade popular.

Desta forma, cada vez mais se torna imprescindível que os atos praticados pelo gestor sejam insanáveis e que realmente possam redundar no preenchimento de vários requisitos.

Para a jurisprudência do TSE são necessários vários requisitos:

“[...] Inelegibilidade do art. 1º, i, g , da LC 64/90. Caracterização. Rejeição de contas públicas. Presidente da câmara municipal. Omissão no dever de fiscalização. Ato doloso de improbidade administrativa. Fato superveniente. Não configuração. [...] 2. A incidência da causa de inelegibilidade disposta no art. 1º, I, g , da LC 64/90 reclama a presença concomitante dos seguintes requisitos: (i) rejeição de contas, com imputação de débito e não sancionada exclusivamente com multa; (ii) exercício de cargo ou funções públicas; (iii) irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa; (iv) irrecorribilidade da decisão; e (v) inexistência de provimento judicial que suspenda ou anule a decisão proferida pelo órgão competente [...] 4. A omissão do chefe do Poder Legislativo Municipal do seu dever de fiscalizar execução de contrato em desconformidade com os termos ajustados, ainda que firmado em gestão anterior, ensejando dano ao Erário, configura irregularidade insanável, caracterizadora, em tese, de ato de improbidade administrativa mediante dolo específico [...]." (Ac. de 15.12.2022 no RO-El 060205129, rel. min. Carlos Horbach.)

Conquista política X tapetão da justiça: Qual caminho seguir?

Não me parece ser uma estratégia política viável afastar o concorrente da disputa. Do ponto de vista estratégico já vi políticos deixarem de fazer campanha esperando que os advogados afastem do páreo o concorrente principal. Considero dois problemas nessa estratégia: 1. Não se conseguir afastar o candidato, porquanto o poder judiciário em muitos casos dá um liminar e permite concorrer sob judice; 2. Que se crie entre os eleitores penalização por perseguição judiciárias ou ainda revolta, e nem sempre a transferência de votos é possível.

Outro ponto importante é que ganhando o concorrente sob judice, sempre tenho a impressão que o judiciário somente o afasta em situações extremas, já que o propósito da Justiça Eleitoral é garantir a soberania popular.

Campo político e campo jurídico

No Brasil, o campo jurídico e o campo político parecem se confundir em tempos de eleição. Os embates entre advogados e o judiciário são corriqueiros: e casa candidato quer fazer um ou outro seu baluarte da boa sorte política.

Não somente nós, atualmente os Estados Unidos estão a voltas com o pré-candidato Donald Trump, que foi condenado recentemente e responde por outros 34 processos, entre eles por ter envolvimento com a invasão do Capitólio.

Quando a política sai do seu campo de embate e passa ao campo jurídico corremos muitos riscos. O primeiro é o que o Judiciário não representa a vontade popular, não tem a legitimidade da escolha dos seus representantes pelo povo, e afastado dele e como repositório da legalidade, muito se afasta da opinião pública. Os juízes são frágeis nesse aspecto.

Por outro, ao querer se legitimar pela aceitação social também podem se desnaturar, perder a imparcialidade e se tornar um agente político estranho (o caso Sérgio Moro retrata bem isso e o ex juiz é hoje senador).

Já sobre os Tribunais de Contas, estes são órgãos do Legislativo, seus auxiliares, por isso lhe falta a necessária independência de julgador isento, apesar do argumento técnico. Assim, é tão comum que as condenações por estes sejam afastados pelo controle de legalidade do judiciário. Já as casas legislativas caímos no lugar comum da conveniência e oportunismo político. E não estão errados, essa é sua natureza.

No Brasil, o presidencialismo está em cheque, porque com as emendas ao orçamento, os congressistas dependem menos das benesses do executivo, o que se reproduz nos Estados e municípios.

Um judiciário político, um Legislativo que julga e um executivo que administra os recursos sobre o controle e fiscalização dos dois outros poderes, parece bem confuso.

Qual a saída?

Em época de normalidade parece que sabemos onde o direito de um termina e o outro começa, mas não vivemos tempos comuns. E para tempos novos, precisamos de novas saídas.

Não achem estranho que decisões jurídicas sirvam a políticas, mas o inverso nunca é verdade...

O campo jurídico perde quando deixa de a autogestão e passa a ser pressionado pelos outros poderes ou por eles é seduzido.

Rosa Maria Freitas
Doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, professora universitária, Servidora pública, Escritório Rosa Freitas Advocacia em Direito público, palestrante e autora do livro Direito Eleitoral para Vereador.

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