Em 2020 o mundo foi impactado pela Covid-19 que trouxe, além de uma grave crise sanitária, uma enorme crise econômica com a paralisação de diversas atividades empresariais, deixando bastante clara a fragilidade de diversos setores da economia e da sociedade frente a crises inesperadas, em especial o segmento do turismo.
Já no início daquela pandemia, em março/20, as taxas de cancelamento de viagens apresentavam índices bastante elevados, beirando os 85%; o impacto previsto naquela época era catastrófico, pois o setor de hotelaria e de parques temáticos e entretenimento eram responsáveis por cerca de 380.000 empregos diretos, em conformidade com o CAGED - Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, sem considerar a quantidade ainda maior de empregos indiretos.
Por pressão do setor, foi pleiteada a adoção de medidas urgentes para o enfrentamento daquela crise, que trazia uma iminente ameaça à manutenção das empresas do segmento de turismo e danos irreversíveis aos consumidores afetados.
Na época, foi editada a MP 948/20, que mais tarde acabou sendo convertida na lei 14.046/20, trazendo uma resposta rápida e necessária aos impactos causados ao setor de turismo e cultura, setores que foram particularmente acometidos pelas restrições de viagens, lockdown e aglomerações.
Nesta lei ficou previsto que na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, de 1/1/20 a 31/12/22, em decorrência da pandemia da covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não seriam obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurassem: (i) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; (ii) ou a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas. Somente na impossibilidade de disponibilização dessas hipóteses, é que poderia abrir a alternativa de reembolso, de acordo algumas condições temporais.
Essa medida emergencial adotada foi responsável pela manutenção de milhões de empregos diretos e indiretos, pela manutenção da atividade empresarial e, sobretudo, pela conservação de patrimônios culturais e de um dos setores mais importantes da economia nacional, o setor de turismo. Sua importância foi inegável para ajudar o setor superar essa crise e, de tão importante e indispensável, a lei teve seu período de abrangência prorrogado por mais duas ocasiões.
Tal medida também conseguiu acomodar interesses de todos os lados – empresas e consumidores – pois permitiu a remarcação de todas as reservas ao passo que a pandemia recrudescia.
E agora, superada essa crise sanitária, o Brasil novamente se volta a uma nova crise de grandes proporções, decorrente de eventos climáticos extremos que atingiram o estado do RS, afetado severamente por enchentes sem precedentes, que vêm deixando cidades absolutamente submersas e destruídas, pessoas desabrigadas, espaços públicos dos mais diversos, entre eles o aeroporto, absolutamente inacessíveis.
O RS, por sua vez, é um estado com uma cultura própria, rica e diversa, com inúmeros patrimônios culturais. Cidades como a própria capital Porto Alegre, como Gramado, Canela, Bento Gonçalves, Cambará do Sul, Caxias do Sul, entre tantas outras, fazem parte dos destinos turísticos mais procurados no Brasil, e o Turismo representa parcela relevante do PIB do estado.
O que se observa agora é que os mesmos impactos e riscos econômicos e sociais verificados na ocasião da crise sanitária da Covid-19, voltaram a assombrar o segmento do turismo com a crise climática do RS.
E, por essa razão, é que essa recapitulação da história se mostra importante e deve ser resgatada, porque diversos aprendizados puderam ser colhidos naquela ocasião, principalmente para saber como as “Instituições” podem dar respostas rápidas e efetivas para superar momentos de crise extrema, sem deixar de atender aos direitos e interesses do consumidor.
Douglas North, em sua obra "Institutions, Institutional Change and Economic Performance"1 destaca a importância das instituições na criação de incentivos e medidas para melhorar o desempenho e desenvolvimento econômico do país. Aproveitando esses estudos, há de se considerar que em um cenário de aquecimento global, que impõe eventos climáticos extremos, as Instituições devem funcionar para prever salvaguardas para mitigar esses impactos.
Assim como foi à época do Covid-19, o planejamento e mitigação de danos, a flexibilidade legal, a acomodação e proteção dos direitos e interesses dos consumidores e empresas, o reconhecimento de situações de força maior, foram medidas emergenciais imprescindíveis para a manutenção do setor e para superar os impactos trazidos a todas as partes envolvidas.
É importante que neste momento, as Instituições, assim como fizeram naquela época da crise sanitária, reconheçam a necessidade de novas medidas emergenciais, tais como aquelas trazidas pela lei 14.046/20, para apoiar o setor e permitir que as empresas do segmento de turismo consigam manter a saúde de seus resultados e das suas atividades, contribuindo para a continuidade do turismo da região, conservação e criação de empregos e a circulação de dinheiro.
A MP 948/20, sucedida pela lei 14.046/20, ofereceu um modelo valioso de como as Instituições podem adaptar e flexibilizar legislações rapidamente para lidar com crises emergenciais, protegendo tanto consumidores quanto empresas. Com as mudanças climáticas aumentando a frequência e a severidade de eventos extremos, é imperativo que as lições aprendidas durante a pandemia de Covid-19 sejam aplicadas na preparação para futuras emergências climáticas. Benefícios legais e proteções semelhantes devem ser considerados em todas as situações emergenciais, garantindo a resiliência econômica e social do país. Com relação à catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul, a adoção das medidas previstas na lei 14.046/20 se tornam imperativas.
O Ministério do Turismo iniciou a elaboração de uma MP para regular normas voltadas às vendas de produtos turísticos já realizadas e impactadas pela calamidade do RS, bem como assegurar os direitos dos consumidores2, de modo que nenhuma das partes sofram mais prejuízos ou consequências negativas além daquelas já vivenciadas. E como demostra a história, acredita-se que o êxito na aprovação e promulgação desta MP será de grande valia ao segmento, aos consumidores e à economia.
1 NORTH, Douglass C. Institutions, institutional change and economic performance Cambridge: University Press, 1990.
2 https://www.panrotas.com.br/mercado/economia-e-politica/2024/05/mtur-elabora-medida-provisoria-para-regulamentar-viagens-vendidas-ao-rs_205525.html