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As metrópoles e o direito à cidade

Constituição estabelece responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios na promoção de moradias e saneamento. A falta de definição de atribuições prejudica ações governamentais, especialmente em áreas urbanas densas com dificuldades de acesso à moradia.

18/4/2024

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 23, IX, que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico"

Todos os entes da federação têm, portanto, responsabilidade no que concerne a garantir condições dignas de habitabilidade aos cidadãos. Mas não há clareza sobre quais sejam as atribuições de cada um, o que evidentemente prejudica sobremaneira as ações governamentais nesse setor (CONTI, 2019).

Como escopo principal de quem vive nas grandes cidades, não se pode olvidar que a maior parte dos empregos formais atraem os brasileiros para os grandes centros urbanos adensados, por terem as melhores regiões para residir com empreendimentos imobiliários inflacionados, com dificuldade de acesso para a maior parte da população. 

Não se pode esquecer que a moradia regular se tornou inacessível para a maioria da população das cidades, passando a ser comercializada a um mercado progressivamente mais restrito e elitizado, enquanto os pobres passaram a sustentar um mercado imobiliário irregular, com regras próprias (ALFONSIN; FERNANDES, 2004).

Além do mercado formal, o Estado falhou em atender à demanda por meio de políticas públicas habitacionais fracassadas. A solução informal passou a assumir várias tipologias, intensificando-se a partir da segunda metade do século XX, com maior industrialização e urbanização. A falta de alternativas legais empurrou a população pobre para locais impróprios, inclusive com risco ambiental, e periferias. 

A cidade que resulta desse processo é marcada pela "urbanização de risco", perversa para a cidade como um todo, e que se expande ilimitadamente (ALFONSIN; FERNANDES, 2004, p. 282).

A cidade informal, presente no cotidiano de todos os brasileiros, não deve ter simplesmente uma forma de se ignorar o problema e afastar a temática das discussões técnicas e acadêmicas. Ao contrário. Precisa-se enfrentar o problema da cidade informal com políticas públicas urbanas sérias e capazes de suprir o enorme déficit habitacional do país. E, em geral, a cidade informal surge nas grandes cidades, ou metrópoles. 

Por definição legal, metrópole é o espaço urbano com continuidade territorial que, em razão de sua população e relevância política e socioeconômica, tem influência nacional ou sobre uma região que configure, no mínimo, a área de influência de uma capital regional, conforme os critérios adotados pelo IBGE (BRASIL, 2015).

A metrópole é uma localização e um suporte para as relações sociais de produção, ou seja, como um espaço onde se desenvolvem as atividades produtivas e onde se estabelecem as relações sociais que permitem a produção e circulação do capital. Do ponto de vista da acumulação, a metrópole é localização e suporte das relações sociais de produção, mas seu fundamento é condição e meio de concretização do ciclo de rotação do capital, recriando lugares propícios (CARLOS, 2020a).

O que move o mundo, portanto, é a possibilidade sempre ampliada das relações sociais que constituem reproduzirem-se sob a lógica do capital em sua totalidade pela articulação/justaposição dos elementos necessários à sua concretização, a fim de superar a esfera econômica para dominar todos os níveis da realidade, englobando a reprodução de toda a sociedade. Realiza, portanto, momentos de produção, distribuição, circulação, troca e consumo de mercadorias. Trata-se da possibilidade sempre ampliada da realização do capital. Assim, os lugares da metrópole também são os de infraestrutura necessária ao desenvolvimento de cada atividade (CARLOS, 2020a).

Cada fração de capital atua de acordo com sua lógica para realizar a acumulação continuada, processo que se concretiza por meio da passagem ininterrupta de um momento a outro do ciclo de rotação do capital, ao mesmo tempo em que reúne e articula ciclos de capitais individuais (CARLOS, 2020a).

A metrópole também é vista como um meio de concretização do ciclo de rotação do capital, ou seja, como um espaço onde o capital é investido e valorizado por meio da realização de lucros.

A dimensão dos problemas urbanos que se encontram no Brasil – dentre os quais a questão da habitação – guarda correlação lógica com a situação econômico-social de sua população, de modo que é insustentável qualquer tentativa de solução dos problemas das cidades brasileiras sem a existência de políticas públicas urbanas para fins de amenização do problema social de moradia. Compete ao Estado atuar de forma a garantir a redução da degradação ambiental, bem como dos índices de pobreza, garantindo os direitos fundamentais das pessoas que vivem na cidade e, portanto, uma forma de atuar na minimização da dimensão dos problemas urbanos (MOTA; MOURA; ANDRADE, 2018). 

Torna-se, assim, um lugar propício para a acumulação do capital, pois oferece uma série de condições favoráveis à criação e circulação do valor, como a presença de infraestrutura urbana, a concentração de mão de obra qualificada e o acesso a mercados consumidores, entre outras. 

Importante salientar que o cenário é alarmante e desolador, sendo traduzido na incapacidade do sistema público brasileiro em dignificar o ser humano mesmo nos pressupostos mais básicos, além de não trabalhar em prol dos que necessitam, fazendo com que estes permaneçam sem vislumbre de um futuro melhor e sem perspectivas de melhores condições de vida (NUNES, NETTO, LEHFELD, 2023).

Há necessidade de uma mudança significativa no contexto das políticas habitacionais (as tornando mais inclusiva e abarcando novos programas e políticas públicas) e sem o direcionamento de recursos públicos e investimentos para a resolução dos problemas, a Constituição de 1988 permanecerá como "meramente decorativa" na transformação de um direito de moradia para um direito à moradia digna acessível a todos os brasileiros (NUNES, NETTO, LEHFELD, 2023).

A regulação urbanística desse processo de urbanização periférica tem sido impedida em decorrência do aumento sistemático do preço da terra urbana e das políticas públicas de habitação social, que têm produzido moradias que afirmam, e não controlam, a urbanização periférica por conta do menor preço da terra nas localidades em que essas políticas são executadas. 

Em estudo sobre regularização fundiária, expansão urbana e licenciamentos imobiliários no município do Rio de Janeiro, é mostrado que a atividade estatal voltada a impedir a reprodução das condições de irregularidade fundiária e urbanística tende a tornar-se um processo de "enxugar gelo", por deixar de voltar-se ao estoque de produção imobiliária irregular para agir como um fluxo crescente dessa produção também (SANTOS, 2020, p. 35). 

Assim é que, como agravante da situação de irregularidade fundiária, constata-se a ausência de articulação entre as políticas urbanas para levar "a cidade" até suas áreas periféricas, o que tem geralmente ocorrido como resultado da chamada cidadania insurgente (SANTOS, 2020). 

Tal forma de cidadania pode se manifestar em diversas maneiras, incluindo protestos, manifestações, boicotes, greves, ocupações de espaços públicos e invasões de terras improdutivas, tornando-se um contraponto à cidadania passiva, que se limita a cumprir suas obrigações civis e políticas sem questionar o status quo. 

Neste vértice, verificamos que o direito à cidade é um conceito que enfatiza o direito de todos os habitantes, sem discriminação ou exclusão, a participar plenamente na vida urbana, usufruir dos benefícios da cidade e influenciar suas decisões e desenvolvimento. 

Nas metrópoles, onde a urbanização é intensa e os desafios sociais são complexos, o direito à cidade se torna ainda mais crucial, pois a demanda por moradia frequentemente supera a oferta, levando ao surgimento de favelas e loteamentos clandestinos. O direito à cidade exige políticas que garantam acesso a moradias dignas e acessíveis para todos os habitantes, sem discriminação.

Na maioria das metrópoles há evidentes disparidades no acesso a serviços básicos, como água potável, saneamento, educação e saúde. O direito à cidade requer políticas que assegurem a universalização desses serviços e reduzam as desigualdades entre diferentes áreas urbanas.

O direito à cidade enfatiza claramente a importância da participação ativa dos cidadãos nas decisões relacionadas ao planejamento urbano e ao desenvolvimento das metrópoles. Isso inclui a consulta pública, a participação em processos de tomada de decisão e o reconhecimento dos direitos das comunidades locais.

O transporte público nas metrópoles muitas vezes é inadequado, caro e inacessível para muitos habitantes. O direito à cidade implica o direito a sistemas de transporte eficientes, seguros e acessíveis, que atendam às necessidades de todos, incluindo pessoas com mobilidade reduzida.

As metrópoles frequentemente enfrentam desafios relacionados à poluição do ar, congestionamento do tráfego e degradação ambiental. O direito à cidade inclui o direito a um ambiente urbano limpo e saudável, com políticas que promovam a sustentabilidade e a resiliência ambiental.

Portanto, no pós-constituição de 1988 houve grandes e sérias transformações na população brasileira, de vários prismas, como formas de emprego, ocupação do solo e adensamento populacional, que dão destaque para a urbanização informal, sendo que tal dinâmica trouxe o agravamento de uma situação de irregularidade fundiária, a criação da cidade informal e da cidadania insurgente, produzindo uma formatação adequada de importância para a regularização fundiária, havendo a necessidade de implantação de regularizações fundiárias no país com impacto socialmente relevante para a resolução de questões vitais para uma sociedade justa, digna e fraterna.

Robson Martins
Pós-Doutorando(UENP/23). Doutor(CEUB-ITE/22). Mestre(UNIPAR/2008). Professor universitário. Procurador da República. Escritor de Livros e Artigos. Pesquisador políticas públicas urbanas e REURB.

Érika Silvana Saquetti Martins
Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito. Advogada.

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